893-O ÚLTIMO PAPA -
Deitado num colchão arruinado, estendido no chão do amplo salão, o Papa se retorce em dores causadas por um mal terminal. É atendido por dois padres que, agachados ao lado do enfermo, tentam apenas consolar o velho homem, reduzido a um farrapo humano, que se retorce e geme fracamente. No seu desespero, mastiga a franja do lençol imundo que o cobre.
Quando tosse, expele algo parecido com pequeno pão, muito branco, que rola pelo chão.
—Um pires, um pires! — pede um dos padres, que sai engatinhando, tentando agarrar os nacos da sagrada massa gosmenta expelida pelo ancião.
Do outro lado do grande salão (que realmente é uma catedral vazia de bancos) está a figura gigantesca de uma entidade antropomórfica: deve medir três metros de altura, cabeça completamente despida de pelos, olhos estreitos e sobrancelhas arqueadas, nariz adunco e boca cerrada num rictus maligno; feições cruéis e diabólicas no rosto acobreado. O corpo musculoso é coberto por uma vestimenta justa, de uma cor entre castanho e cobre; calça botas de cano até a canela. Mantém os braços cruzados em pose ereta, visivelmente de desafio.
Ao ver o satânico personagem, o velho e alquebrado papa levanta-se de repente, impulsionado por uma força sobrenatural, e de um salto, se coloca ao lado do altar feericamente iluminado, onde brilham peças douradas: cálices, patenas, cibórios e paramentos bordados com pedras preciosas e fios dourados.
Apoiando-se num dos lados da mesa do sacrifício, ele olha para cima e recebe do gigante um olhar de desdém. Murmura palavras sinistras, como se fossem (e realmente são) maldições. Consome na suas invectivas todo o resto de energia e cai ao chão. Tomba com um estrondo e o corpo frágil e minúsculo desaparece numa fumaça azulada.
O Gigante gargalha. Imediatamente, nuvens douradas suspensas num céu de translúcido azul, descem sobre a catedral e nela penetram, transformadas em névoa negra.
Antes de sermos totalmente envolvidos pela névoa negra, uma senhora de pele escura, cor de azeitona, se aproxima de mim e diz:
— Não seu preocupe. Você e sua mulher serão salvos pelo amor que os une.
A névoa penetra por todo o ambiente e há uma escuridão total.
Tento desesperadamente acordar, abro os olhos, mas a escuridão é a mesma. Sem saber o que fazer, fecho os olhos, pensando que o sonho acabara.
Num panorama externo, constituído de campos, montanhas e uma larga passagem atapetada por flores rasteiras, tudo intensamente colorido e iluminado, vejo a aproximação de uma multidão que chega cantando mantras. Os trajes são orientais: mantos cor de laranja de monges budistas, vestes compridas e brancas de pessoas orientais, sarongs e vestuários de habitantes das ilhas do Pacífico, indianas com sáris, árabes de longas vestes brancas e turbantes.
Uma onda humana vinda do Oriente se aproxima e com sua chegada, desaparecem o Gigante Acobreado e seus adeptos. Sem tardança, a multidão (extremamente organizada tendo em vista a quantidade de pessoas) se espalha pelas áreas vizinhas e começam a ensinar novos conceitos de espiritualidade. Somos separados em grupos de cinco ou seis pessoas que recebem informações de um dos orientais recém-chegados.
Acabada a “aula” (que foi realizada no campo, os alunos sentados no chão) meu Mestre me guia por uma praça muito arborizada e enorme, talvez do tamanho de um campo de futebol. Ao seu redor estão numerosas lojas, com vistosas vitrines.
— Aqui são as lojas das religiões. — Me diz o Mestre — Cada loja é de uma religião diferente. São padronizadas, não tem uma diferente da outra. Não há ostentação nem tentativa de aliciamento ou conversão para as diversas religiões. Como pode ver, as religiões não passam de negócios e aqui exercem suas atividades.
Vejo uma vitrine com mostruário de peças da religião judaica (um volume da Tora e um candelabro de sete braços, entre outras), passamos defronte a uma loja de evangélicos, outra de budistas.
Ao passarmos defronte à loja da religião católica, o Mestre abre a pequena porta ao lado da vitrina e grita para dentro:
— Nossa Senhora está aí?
Mas eu o puxo pela toga, dizendo-lhe:
— Deixa prá lá, não acredito mais em nada disso.
Acordo, então. O que parecia a principio ser um pesadelo termina em um sonho bastante significativo.
ANTONIO ROQUE GOBBO
Belo Horizonte, 24 de março de 2015.
Conto # 893 da série 1.OOO HISTÓRIAS
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