O Coração Equivocado
Estava retornando de madrugada da faculdade. Sentindo o odor de um transeunte fumando erva. Carros solitários lentamente passando diante de mim. E o medo da noite de pessoas com passos rápidos de cabeça baixa.
Apressadamente queria me livrar do tormento que a noite me transmitia. Estava angustiado, pois diante da faculdade havia uma lanchonete que foi retirada e como gosto muito de massas, agora me vejo obrigado a me deslocar quilômetros para comer num bom estabelecimento.
Porem, próximo da faculdade, havia um restaurante reaberto, a Pizzeria do Gino Sóbrio. Famosa por sua massa italiana e clientela assídua. Chamou-me bastante atenção, num dia vi um glutão sendo levado por uma ambulância, aquilo me encantou os olhos e desejei desse dia a diante poder comer até estourar.
Ao nascer do sol, cheguei bem cedo a pizzeria. Estava somente um singelo grupo de senhoritas de branco devorando um pedaço de pizza perto do balcão. Nada fora do comum, somente queria chegar bem cedo e escolher uma mesa ao centro do restaurante. Não me agrada ficar num lugar tão povoado, por isso a escolha do horário. Abri o cardápio e perdido fiquei diante da grande variedade de sabores. Depois de passar meus olhos por Margherita, fixei-me numa pizza que prendeu minha atenção. Mas o que seria a Pizza Estrela do Mar?
Poucos minutos depois de ter feito o pedido, o garçom trouxe uma pizza que de estrela nada se assemelhava. Tinha o formato de um meigo e convidativo coração. Confesso que aquilo me tocou profundamente e recordei dos suculentos pratos que a minha mamãe fazia com tanto amor. Garfo e faca nas mãos, não tive coragem de fatia-la. Aqueles saborosos olhos de azeitonas me seduziam e a comia em pensamentos luxuriosos. A saboreava somente em sonhos e em sentimentos perturbadores e proibidos, a chamava somente por Miriam…
Deixei gorjeta e pagamento sobre a mesa. Sai cabisbaixo da pizzeria, sem no minimo prova-la ou mostrar meu valor a aquele pedaço de pecado gastronômico. Indignei-me totalmente contra a minha fragilidade. Não esperava que no mundo gourmet eu seria fisgado novamente por um prato tão saboroso. Não me entenda mal, somente gostaria de come-la, prova-la, nada além disso. Mas essa minha fraqueza no mundo dos sabores me mostrou que tenho muito a aprender.
Todos os dias passava diante da Pizzeria do Gino Sóbrio e na vitrine havia uma pizza com um cartaz “procura-se um dono com muito amor”. Era a minha estrela do mar, minha proibida Miriam. Quão estupido fui em alimentar sentimentos por ela. Era irreverente, ansiava constantemente por liberdade, queria ser comida com muito prazer, no entanto, a achava muito estranha; tudo por causa que se assemelhava a meu psicodélico modo de ser.
As vezes entrava no estabelecimento somente para conversar com aquele louco coração pingando a queijo derretido. Morava naquele espaço apertado da vitrine. Numa semana era enfeitado por uma folha de louro, noutra por manjericão, mas no fundo eu sentia que ela vivia solitária. No momento que o dono da pizzeria desconfiava do meu excêntrico comportamento, disfarçava minha conduta e saia, sem nada justificar.
Estava até enviando mensagens por zapzap para ela de madrugada, mas não recebia respostas, somente apreciava seu sorriso de tomate seco na foto do perfil. Cheguei a chorar numa certa noite, tinha recordado que já havia perdido a oportunidade de experimentar diversos pratos apetitosos da culinária italiana e francesa, sobretudo me apaixonava pelo aroma, formato e conteúdo desses pratos. Porém, decidi que aquele coração delicioso de queijo derretido deveria me provar primeiro, pois antigamente somente eu demonstrei desejo por essas iguarias. Então, resolvi me arriscar...
No fim da tarde o sol já dormitava no poente e as margaridas fechavam-se com grande sonolência. Adentrava na Pizzeria do Gino Sóbrio e via ocupando a minha mesa favorita um grande e inchado homem com a minha Miriam em mãos pronto para devora-lá. Por respeito aos porcos, fazia tempo que não encontrava uma aberração tão inusitada; era gorduroso e volumoso, temia que aquele leitão viesse a explodir a qualquer momento.
O grande pançudo enviou-me palavras desrespeitosas que jamais poderia acreditar que seriam pronunciadas contra mim. Disse-me que aquele coração de pizza já tinha dono. Tentei explica-lo que neste caso a provaria primeiro e no fim o devolveria as bordas. Bem, acreditei que era meu direito na ordem da fila. Entretanto, a massa de gordura, cuspiu asneiras para minha direção acusando-me de louco, chegou ao cúmulo de me recomendar comer um hambúrguer. Respondi ao troglodita ogro que era difícil compreender suas expressões de tão elevada ignorância. Disse ainda que me interessava por ela e que aspirava o mesmo desejo dele de devora-la com todo prazer e gula que eram-me de direito.
O Montanha de Colesterol me pediu desculpas e disse que estava testando as minhas intenções com Miriam. Bem, me senti muito aborrecido com a situação, foi tão constrangedor que nem mais sabia o que sentia por ela. Somente fiquei observando aquela montanha de gordura salivando-a, sugando seu sabor enquanto a aproximava da boca, babando aos montes, rasgando-a com os dentes, deixando o caldo de queijo escorrer pela língua como forma de ameaça a minha pessoa. Ele a comia com desejo animal como se para ela aquela rotina fosse natural, a via até sorrir com seus lábios vermelhos de tomate seco. Miriam demonstrava gostar daquele circo de horrores, ela dependia daquele prazer proporcionado a ela, era a sua felicidade. Enfim, notei que ela se transformava numa rameira nos lábios daquele glutão, se vendia aos seus caprichos, pois de outro modo não seria possível seleciona-la no cardápio. Como ele dizia "é o dono dela"...
Saí transtornado e desiludido do restaurante. Tinha a esperança de me perder profundamente nos sabores de uma nova iguaria. Tinha até me apaixonado por um instante. Não buscava nem me comprometer ao seu apetitoso sabor, não, somente queria come-la. Ou talvez, mudar a sua receita original e adicionar um toque especial, algo personalizado, perfeito para nós dois.
Essa foi a história da Pizza Estrela do Mar, Miriam, que naufragou profundamente no Mar da Gastronomia Italiana...