Anotações

O caderno falava sobre monstros e como eles convivem conosco desde os tempos mais remotos. Criaturas imensas com as quais repartimos o mesmo espaço, mas em tempo e universo separados.

Sua mão doía desde a noite passada, mas isso não o impediu de fazer novamente a pequena caminhada pela cidade naquela manhã. Na verdade, eram realmente poucas as ocasiões que o faziam ficar em casa quando o sol estava prestes a nascer. Aprendera a detestar cada momento que passava entre as paredes cor de oliva de sua própria residência pensando no que fizera de errado e por onde estaria seu filho, e somente o ato de caminhar aliviava o peso. Observar os pássaros executando os primeiro sons do dia. Os raios de sol pioneiros se desprendendo por de trás dos edifícios. A neblina matutina que roçava os telhados. A mão que latejava no meio da escuridão azulada.

Ele era a figura solitária perambulando aquelas ruas, a silhueta cabisbaixa que circundava as calçadas. E quando andava o suficiente sempre terminava sendo a imagem desfocada que observava a praia. Tirava os sapatos e caminhava sobre a areia macia até onde a água batia em seus pés na forma de ondas provocantes. Observava o mar calmo e repleto de silêncio com pouquíssimo interesse. Na verdade, Evandro nunca gostou da água. O mar sempre foi seu ambiente menos favorito.

Era o caderno que lhe conduzia até lá, completamente adverso a sua própria vontade. O caderno lhe transportara para cima e para baixo nos últimos meses, sua capacidade de julgamento estava adormecida em um canto seguro, deixando cada página falar mais alto.

As ondas estremeciam e Evandro imaginava o que causava aquilo. Tentava enxergar o que o filho pensava haver no meio da água.

Mario tinha dezessete anos e estava desaparecido a pouco mais de três meses. Evandro lembrava perfeitamente da ultima vez que havia visto o filho, recordava com uma clareza teimosa de tudo naquela manhã. A maneira como ele acordara mais inquieto do que nos outros dias simbolizava algo, e o pai sabia muito bem disso. Mesmo que nos meses anteriores a seu desaparecimento, o garoto estivesse agindo da mesma maneira incomum, mas Evandro sabia que algo naquela manhã dizia que tudo iria piorar.

Um vazio. A ausência que se alastrou em sua vida estava modestamente mais insuportável. Chegar em casa e não haver ninguém para conversar era o suficiente para lhe fazer perder a cabeça por qualquer motivo. Explodir. Até que não aguentara mais e resolvera quebrar o espelho do banheiro, foi um golpe certeiro, sem pensar muito, em seguida enrolara um trapo velho sobre os cortes, como uma luva encardida de pugilista.

As perguntas vinham, e nada as impedia de ficar. Todos os milhares de questionamentos que poderiam vir em três meses estavam amontoados a sua sombra. A maioria deles tirava seu sono da mesma forma que uma criança puxa um peixinho para fora do aquário. Com mãos curiosas que tiravam o animal de seu mundo estável.

Evandro considerava-se um homem sensato. O “cabeça no lugar” de qualquer grupo de amigos de fim de semana. Mas o caderno... o maldito caderno estava devorando todos os motivos que ele tinha para pensar isso. Restando-lhe um descontentamento azedo.

Os tais monstros que existiam ao nosso redor.

As páginas escritas à mão que estavam por todas as partes de seu dia a dia.

Lembrava-se de seu filho como sendo o garoto absurdamente comum que ele era. Um pouco mais centrado e cuidadoso que a maioria dos meninos da atualidade, mas ainda assim era um garoto humildemente normal. O típico filho de país caretas, e isso tornava quem Mario um dia foi.

Primeiramente ele parou de se comunicar tanto com o pai, parecia sempre estar preocupado ou atordoado. Mas qual seria a maior definição da adolescência do que isso? Trancar-se no quarto a maior parte do tempo em silêncio enquanto o dia transcorria sem problemas maiores. Foi o que marcou as primeiras semanas.

As ondas se chocam com mais força à medida que o sol ilumina a areia e esquenta a pele de Evandro. Os ventos também se animavam e sacodiam as árvores mais próximas.

Seu filo passara a não trocar mais do que dez palavras por dia com Evandro, e isso o preocupava. O mundo pertencia à paranoia, e tudo é sinal de que as coisas podiam piorar. E de fato, elas pioravam. Mario estava seguindo de olhos vendados para um caminho estranho, e Evandro pressentia isso na pele. Todo aquele silêncio e aquela aparência adoentada deveria significar algo. Drogas talvez. Sim, provavelmente eram as tais drogas que os outros pais e a televisão viviam advertindo.

Três meses atrás as drogas haviam se tornado a cicatriz chamativa em sua vida. Mas as coisas podiam piorar, elas sempre pioram quando podem.

Os sapatos de caminhada estavam sujos em sua mão, fediam a suor e calos secos. Nem mesmo os cheiros de poluição trazidos diretamente do mar pelo vento abafavam aquilo. E Evandro imaginava se o odor seria realmente de todo o óleo e plástico despejado nas águas em todos aqueles anos. Se não havia algo maior e mais ameaçador o observando por entre as ondas.

Mario era um bom menino, de um modo que Evandro não conseguia puxar na memória algo para se queixar quando encontrava-se com os outros país . Talvez as notas da escola pudessem ser um pouco melhores, ou ele poderia ser um pouco mais organizado com suas tarefas. Nada preocupante, nada extraordinário. Uma boa forma de se vangloriar discretamente por ser pai solteiro. Viúvo. Uma boa forma de conseguir oportunidades para conhecer mães solteiras que também pensavam da mesma forma que ele.

A vida era assim até Evandro começar a receber telefonemas de alguns amigos de seu filho perguntando se algo estava acontecendo com ele. Garotos e garotas interrogando se Evandro havia percebido a atitude estranha do filho.

Um suor frio passava por sua coluna cada vez que o telefone tocava e uma garota com voz infantil perguntava por sei filho. O mesmo tom de voz prestativo.

O rugido das ondas se tornava mais forte, como uma fera invisível que flutuava sobre o mar insolentemente, sem preocupações. A tal criatura que habitava as páginas do caderno que infernizavam sua nova e vazia vida.

À medida que o tempo discorria as primeiras pessoas também começavam a cruzar pela praia, eles o observavam e passavam por Evandro, uma forma de perceber que não ele estava invisível aos humanos. Ainda era um deles, ocupado e ignorante. Era um dos corredores viciados em saúde ou um dos atarefados vendedores de bugigangas que transcorriam suas extensões de areia macia. Ele era um deles, mas vivia apenas com a cabeça um pouco mais ocupada com loucuras.

Um filho desaparecido pesava em seus ombros, o empurrava para o dentro da areia. Engolindo o homem desolado, forçando-o a lembrar de alguns dias atrás quando o telefone tocara e um detetive educado advertia que talvez eles houvessem encontrado Mario. O detetive parecia absurdamente atencioso, e isso soava como uma coisa ruim. Talvez fosse o momento em que ele pedira para Evandro identificar um possível cadáver de adolescente.

Mas talvez Mario já estivesse morto antes de ter desaparecido três meses antes, alguma coisa no modo como ele se sentava a mesa para comer sugeria isso. Uma feição abatida e inteiramente perturbada. Não era seu filho. Cada vez que ele abaixava o olhar para observar a comida já fria no prato lembrava um defunto. Definitivamente não era seu filho.

O mar. A criatura invisível. O corpo de um garoto que não era seu menino. Após identificar o jovem morto na mesa metálica do necrotério numa manhã mórbida, Evandro não se reconheceria caso viesse a se encarar num espelho. Sequer poderia pensar que estaria vendo o reflexo de um humano.

O cheiro do formol parecia entranhado nele, o conduzindo a fazer alguma besteira. O levando a se sufocar com o vazio da casa nos próximos dias. O forçando a arrebentar o próprio reflexo no espelho e contemplar milhares de lascas reluzentes cortarem seu punho. O garoto morto no necrotério sempre seria a sombra de seu filho, e sempre estaria por dentro dos cortes entre seus dedos.

Dormir após isso era uma ideia marota, somente uma lembrança ultrapassada. Uma memória advinda de um rapaz que passara um mês inteiro sem sair do quarto, sem trocar palavras ou qualquer outra frivolidade com mais ninguém. Era uma razão que o assombrava mais do que a raiva que passara a nutrir naqueles dias. O pequeno e inofensivo desgosto que sentia pelo filho cada vez que ele pegava um copo com água e voltava ao quarto em silêncio. O esqueleto maltrapilho enfiado nas camisas de marca que desfilava pelo corredor escuro.

O que é ser um pai? O que deveria significar tudo aquilo? Quem sabe o que diabos poderia sair daquele quarto caso ele não fizesse nada a respeito. Não sabia que criatura poderia brotar daquela fechadura e voar com seu filho entre os dentes.

Drogas, essa era a resposta mais adequada. Narcóticos pesados. Tinha que ser a resposta que traria os pontos finais para tudo.

Mas o caderno era a resposta verdadeira, mas Evandro ainda não sabia de nada relacionado ao artefato. O caderno surgiria depois, trazendo todas as aberrações colossais a mente de um pai aflito.

As ondas já o alcançaram, ele então recua um pouco mais, como se estivesse provocando o mar a pegá-lo. Seus dedos dos pés se enterram gradativamente na areia molhada, e isso trazia um ligeiro sossego.

Certa noite ele ouviu um choro baixinho, e em silencio ele se esgueirou até a porta do quarto de seu filho. Colou o rosto na madeira e ouviu seu filho soluçar desimpedidamente. Ele parecia realmente abatido, como se a maior tragédia do mundo tivesse acabado de tocar sua vida juvenil e despreocupada. E no mesmo instante o homem pensou em bater na porta, seu punho se levantou no ar e parou a poucos centímetros da madeira escura.

Algo lhe impedira de bater na porta. Uma contraparte entrara em cena e o fizera reconsiderar. Aquilo provavelmente era somente uma falta de coragem em confrontar seu garoto e descobrir o que o estava envenenando por dentro. E isso o machucou profundamente, feriu sua confiança de maneira irremediável.

Ficou em silêncio no corredor escuro e deu meia volta até o seu quarto.

O caderno que um dia pertencera a seu filho falava sobre criaturas gigantes que existem ao nosso redor. Ele não havia dado um nome para os seres, apenas descrevera alguns em cada página maltratada do caderno.

O silêncio e a escuridão daquele corredor diziam tudo a respeito do caderno, mesmo que Evandro não tivesse ideia da existência do mesmo naquela época. Mas todo o sentimento negativo que havia crescido naquele momento se perpetuou no momento em que havia encontrado a peça surrada no meio das coisas de Mario, um mês após seu desaparecimento.

Estava entre algumas caixas que ele deveria ter se desfeito há muitos anos, um pedaço de rabisco e sujeira que havia sido esquecida. Evandro folheou com interesse cada página antes de começar a ler, admirando a caligrafia agitada e imprecisa de seu filho. Garranchos e mais garranchos. Rabiscos e mais rabiscos.

Talvez houvesse enfim uma pista mínima sobre o que ocorrera com o garoto.

O sangue esquentava por baixo do curativo improvisado de gases e esparadrapos, aquecia seus dedos e fazia suas juntas latejarem. E isso lhe fazia se indagar do porque vinha todos os dias para a praia. Olhava de um lado ao outro, e acabava voltando às atenções para o horizonte limpo sobre a água.

Socando o espelho mais uma vez. Partindo seu próprio rosto refletido na estrutura.

O caderno havia sido usado pelo garoto nos meses que se seguiram após sua mudança repentina de comportamento. Era como um diário de exploração, cheio de notas e esboços amadorísticos. Quando as páginas foram todas preenchidas ele provavelmente não encontrara mais utilidade no mesmo, e quem sabe isso o fizera esquecê-lo entre as caixas.

A primeira página dizia a respeito de uma ocasião estranha. Evandro sentou-se a mesa com uma xícara de café a uma mão de distância. Seus olhos se atentaram ao padrão de escrita do filho. Logo ele estava lendo de forma obstinada a primeira e a segunda página, mas logo voltara para o início e recomeçara a leitura. E mais uma vez. E novamente. E em pouco tempo já tinha decorado a maior parte dos primeiro parágrafos.

O mar não parava de avançar, sempre confrontando quem estivesse lhe encarando.

Evandro rapidamente esqueceu o café, se perdeu inteiramente no que o caderno estava lhe contando. A princípio havia uma história curiosa que envolvia seu filho e uma forte dor de cabeça que o fez enxergar algo que não deveria existir. Um ser magnânimo que estava de pé entre os prédios mais distantes do centro de sua cidade, totalmente adverso ao observador assustado a vários quilômetros de distância.

Na descrição dizia: “Não há nada como aquilo. Nada que possa ser dito com apenas uma única vida! Estou inteiramente apavorado só de imaginar que algo assim seja possível.”

Um monstro imenso que flutuava despropositadamente por entre as construções da cidade. Os olhos calmos e brilhantes focavam uma cidade totalmente ignorante a seu respeito. Seus muitíssimos braços passavam a centímetros dos prédios, movimentando-se de forma graciosa e única. Uma criatura incomensuravelmente gigante que não fazia nada além de existir em seu espaço confortável, roçando nas nuvens baixas de poluição e tapando o sol escasso daquela época do ano.

Se olhasse demais para o monstros, acabaria perdendo a cabeça, explicava Mario. Era necessário certo cuidado ao encarar o ser, antes que seu cérebro virasse uma “pasta de nada”.

O caderno de seu filho afirmava enfaticamente que a criatura em questão não possuía a menor semelhança com nada que houvesse em nosso mundo. Nenhum animal vivo ou já extinto poderia ser usado como comparação. Para seu filho, era como se ele tivesse descoberto uma nova cor. Algo que nós sequer conseguiríamos pensar a respeito antes que realmente pudéssemos encarar verdadeiramente. Ou, como ele escreveu em seu caderno: após ter observado com clareza o outro lado.

O outro lado, a verdade no fim de um corredor escuro.

As ondas o alcançavam, batiam em seus pés gelados. Evandro reage ao susto repentino recuando novamente, o suficiente para poder observar com mais atenção o mar aberto. A distância vasta e brava que assustava seu filho.

Após vários dias de leitura, Evandro encontra uma passagem que lhe despertara um interesse particular. Poderia muito bem não estar lendo as divagações preocupantes de seu filho desaparecido, mas apenas um livro fascinante de aventura fantástica. Provavelmente foi na forma como encontrara a escrita do fato que lhe chamara tanto a maldita atenção.

Imaginava seu filho sentado à beira da praia escrevendo sobre aquilo. A aparência frágil e apreensiva enterrando os pés na areia fria enquanto apoiava o caderno no colo. Gastando horas de seu dia arriscando representar uma de suas criaturas por meio de desenhos obsessivos, mas que aparentemente ele nunca conseguia fazer como queria, sepultando a ideia com riscados irritados sobre as ilustrações. Apagando algo que ele sequer conseguia descrever para si. E seu pai podia mensurar o tamanho de sua frustração.

Mario encontrou algo na praia. Outra de suas criaturas gigantescas opressoras, que também dizia ser igualmente complexa como a que habitava o centro da cidade, mas que de certa forma era diferente da primeira. Fascinantemente diferente, acrescentou no final da descrição.

Ela se movia livremente como se estivesse nadando no ar. Movimentava suas pernas imensas e articuladas feito um cão atravessando uma piscina, mas com movimentos singelos que lembravam uma girafa caminhando na savana. Todas as centenas de membros independentes agindo em sincronismo fantástico, conseguindo, de algum jeito, impulsionar a forma abusivamente vasta de seu corpo sobre o mar pouco agitado. Com suas patas passando a poucos metros da água, tocando ocasionalmente uma onda que estava se formando. Até mesmo o mar parecia respeitar a entidade incomum que passeava acima dele.

Evandro quase podia visualizar seu filho prendendo as lágrimas ao observar sua criatura transcendental naquela mesma areia.

Quem sabe ele também pudesse vê-lo se esforçasse a mente em sua direção. Poderia estender sua compreensão em direção ao filho. Achá-lo perto de um dos monstros.

Esperava que um dia, Mario sentisse a necessidade de rever a criatura do mar, e isso o conduzisse até seu pai. Os dois sentariam na areia e observariam por todo um dia algo que ambos não compreendiam. Uma presença descomunal que não se importava com nada que viesse deles. Buscariam conforto em uma criatura que sequer sabia de suas existências, e provavelmente não esperava nada das formas e vida minúsculas que habitavam aquele planeta confuso.

Um pai irrequieto acorda naquela manhã com a mão dolorida e machucada, os olhos inchados e irregulares, pensando no dia que teria. Um pensamento vazio que preenchia seus minutos particulares antes de se levantar para se vestir e ir caminhar até a bendita praia. Onde passaria sua manhã infrutífera até a hora de voltar para casa e seguir sua vida.

O caderno que sempre ficava ao lado de sua cama falava sobre seres colossais que vivem ao nosso redor desde os confins dos tempos. Formas de vida que estavam lá para lembrar-lhe o quanto sua existência era insignificante.

E tudo acaba com um golpe nervoso sobre a imagem tola de um humano desesperado.

Gabriel O Espindola
Enviado por Gabriel O Espindola em 11/09/2015
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