O que não Mata, Engorda
Serafina era uma mulher “grande” – se eu dissesse “gorda” levaria um tapa na cara. PLAFT. Tudo bem... iniciaremos a história de outro lugar. Um menos perigoso...
Certa vez, um médico chamado Cleber, amigo da família, foi até a casa de Serafina. Como morava perto, fora entregar os exames que a mulher fez no hospital. O homem, com seu jaleco branco de quem acabara de chegar do trabalho, olhou para Serafina com certa ferocidade.
- As notícias não são boas, Serafina. O motivo de estar tão... – pensou um pouco. – “Inchada” é que tem diabetes.
A notícia tonteou Serafina. Seu filho, um menino de 15 anos com cabelo tigelinha, segurou a mãe para não deixa-la cair no chão. Um tombo e provocaria um maremoto, sorte que o garoto foi rápido – e também forte.
- Diabetes? Aquela doença de gente gorda? Cruzes! Tenho isso não, doutor, deve estar errado. Exijo que refaça os exames! Se não refizer, vou a outro hospital! Tenho certeza que está errado...
A perna do médico estava impaciente, um tique fazia-a tremer quando se irritava. Como explicaria a uma pessoa gorda, que pensa que não é gorda, que ela é gorda? Teve de encontrar outra solução.
- Não é necessário a pessoa ser “gorda” para ter diabetes. Pode ser genético – o dela era além de genético.
- Tem certeza, doutor? Nunca alguém da minha família foi obeso – olhou em sua volta. A casa era decorada por fotos de seus familiares. Um avô, uma avó, sua mãe, seu pai, primos, tios, tias… Um mais gordo que o outro. Seu avô era o vencedor, mal cabia nas fotografias de tão grande.
- Absoluta! Terá de cortar boa parte dessas besteiras que come. Nada de salgados. Nada de doces. Nada de comida em excesso. – ao mesmo tempo, Serafina tirava um pão de queijo todo amassado, e já ia em direção da boca aberta. O doutor puxou rapidamente o pão de sua mão. – Queijo é altamente calórico. Nada de pão de queijo também!
- Mas doutor, só como aquilo que disse! Sem isso, o que comerei?
O médico retirou um pequeno bloco de anotações do bolso.
- Esqueci meu lápis, tem algum para mim?
A mulher observou-o desconfiada, mas acabou pegando o objeto. Ele abriu em uma das folhas do bloco e apoiando encima da cômoda começou a rabiscar. Serafina tentou espiar, mas antes que conseguisse, o médico já havia acabado. Destacou a folha e entregou.
- Aqui está o número de um nutricionista. Ligue e diga que é minha amiga, ele lhe dará um bom desconto na consulta a qual marcará para amanhã.
- Nutricionista?! - voltou a tentar discutir. – Já disse, não sou gorda, doutor!
- Não teime! Já expliquei o porquê de fazer dieta, se reclamar de novo, lhe faço ir à academia!
E então ela se calou. Fazer dieta era péssimo, mas academia pior ainda. Detestava exercícios físicos mais que qualquer outra coisa. Ficava o dia inteiro em casa, comendo e assistindo TV. Muito pouco organizava a casa, deixando-a uma bagunça. Seu marido, o tolo, é quem trabalhava, ganhando dinheiro para sustentar as banhas de Serafina.
O médico Cleber deixou aquelas como suas palavras finais e, antes que suas pernas tremessem ainda mais, foi embora. Já Serafina, continuou no mesmo lugar, segurando a folha, olhando para o número e pensando se ligaria ou não.
Por que pararia de comer? Comer era bom, a fazia se sentir viva. Se fosse ao nutricionista retiraria tudo que mais gostava. As coxinhas, os chocolates, os panetones, as pizzas...Tudo seria substituído por “capim”. Aqueles vegetais verdes e asquerosos, com gosto amargo e sem graça alguma. Isso não! Amassou o papel e jogou no lixo.
Foi até a cozinha, estourou pipoca amanteigada - aquelas bem gordurosas - no micro-ondas. Foi à sala de estar, ligou a TV e deitou-se folgadamente sobre o sofá macio, enquanto assistia a um programa qualquer. Até ai tudo bem, estava tranquila. As coisas só foram complicar quando mudou de canal, indo para a Globo. Lá passava um filme na Sessão da Tarte, não sabia o nome dele, mas o compreendia; era sobre um acampamento para garotos gordos.
O início do filme não a incomodou tanto. As atividades físicas eram poucas e os meninos escondiam guloseimas em suas cabanas. Dessa forma daria para viver, não teria problema algum. Porém, na metade do filme, o dono do acampamento acabou sendo substituído por outro - e esse era doido. Os garotos passaram a quase se matar com tantos exercícios. Tomaram as guloseimas e as esconderam. Todas as guloseimas foram tomadas e escondidas. O lugar havia virado um verdadeiro inferno.
Temendo que o mesmo acontecesse consigo e fosse enviada ao tal acampamento, levantou-se do sofá, foi ao lixo e retirou o papel ali jogado. Observou bem as letras feias do médico, com empenho as entendeu, "Dr. Nero", mais abaixo estava seu número de telefone. Será mesmo que ligaria?
Pensou bem… Então teve uma ideia. Ela poderia sim ir até o nutricionista, mas não seria obrigada a cumprir as recomendações. Caso seu médico passasse e perguntasse sobre a dieta diria que "estava indo muito bem". Mas é claro, seria mentira, quando sozinha, comeria tudo de mais calórico existente.
Retirou o telefone do gancho e discou o número, logo uma voz feminina atendeu do outro lado.
- Clínica Nutricionista Santo Agostinho, boa tarde, com quem falo?
- É com Serafina. O médico Cleber me recomendou uma consulta com o Dr. Nero.
- Ah sim, o doutor já esperava sua ligação. Para qual horário deseja marcar a consulta?
- Amanhã às 13 horas - até lá teria comido muito e depois comeria ainda mais.
Na manhã seguinte levantou 12:30. Como já estava atrasada, escovou os dentes e ficou sem comer. A pressa era grande. Já se preparara mentalmente para a consulta, não faria isso outra vez, outro dia.
Com o carro dirigiu até o consultório. Por sorte, não havia trânsito, fazendo-a chegar a tempo. Ainda assim, não era tão “a tempo” era “encima da hora”. Subiu as escadas do prédio correndo, suando muito e fedendo a uma lagarta morta.
O Dr. era simpático, apesar de estar aguentando o fedor de sua paciente. Pensou que ela seria mais chata e teimosa, aconteceu o contrário. Atenta, ouviu e aceitou comer todos os vegetais recomendados - até os mais amargos. Foi uma boa consulta, despediu-se acreditando ter ajudado mais um ser humano - estava enganado.
Saiu do consultório pensando nos salgados que iria comer, nos doces, nas carnes gordurosas. Em sua viagem à clínica, havia visto uma churrascaria com um frango enorme estampado na vitrine. Talvez o comprasse, mesmo tendo mais uns três desses em casa.
Não comprou o frango, mas lembrou das delícias de sua geladeira. A barriga roncava de fome, comeria qualquer coisa que tivesse. Porém, quando chegou a seu recinto, lembrou-se do filme assistido. Crianças gordas em um acampamento. Não, não queria aquilo. Não queria ir para aquele lugar. Não se mataria de fazer exercícios. Isso não. Não!
Deitou-se em sua cama, esperando os pensamentos passarem. Um problema, pois sempre voltavam e voltavam e voltavam. Torturavam sua mente. Queria mandá-los embora. Então como última opção, decidiu dormir. Quem sabe os sonhos seriam melhores…
Não dormiu, seu corpo não relaxou o suficiente. A cada segundo os olhos se abriam. Não parava de se revirar na cama. Sentou-se em um pulo. Preciso comer, pensou. Em seguida outro pensamento ocorreu, Acampamento para gordos.
Levantou-se da cama, foi até a gaveta da cômoda e retirou um calmante. Seu marido quem usava quando não conseguia dormir - Serafina nunca precisou. Colocou três cápsulas na boca, mastigou e engoliu sem ao menos usar água. Deitou e dormiu.
Sonhos vieram à tona. Serafina andava por um lugar escuro. Não conseguia enxergar nada, nem onde pisava; parecia flutuar na escuridão. E para onde ia? Ah, isso ela sabia. Era o cheiro de queijo. Em algum lugar um queijo Parmesão cheirava fortemente; estava derretido, sabia disso. Mas onde estava o queijo? Continuava andando, a procura.
Minutos depois sentiu o cheiro de frango. Hummm, frango! O mesmo que viu na churrascaria quando passou de carro. Saliva escorria por seus lábios grossos passando pelo queixo redondo e caindo sobre os gigantes seios. Agora era batata frita! Pastel! Churros! Onde? Onde? Onde? Eu quero.
Os cheiros intensificavam; estava próxima. Viu uma extensa mesa com todas as guloseimas desejadas e muitas outras. Bandejas de todos os tipos de carne, pudins dourados brilhavam sobre seus olhos, gelatinas de todas as cores e formas. O queijo estava lá também! Seu cheiro era inconfundível, um aroma nada enjoativo, ao contrário, delicioso. Pedia para ser comido. Todos os alimentos pediam para serem comidos. Gritavam para Serafina “Me coma! Me coma! Me coma!”. Ah, mas eu vou comer mesmo!
Quando próxima, já diante da mesa preparando-se para agarrar a comida, caiu em um buraco. Não teria como saber onde estava; era tudo negro. A única coisa a avisar sua queda foi o corpo despencando e espatifando. Não, isso não! Preciso pegar a comida! Preciso! Tentou escalar o buraco, mas havia nenhuma rocha alguma para agarrar. Batia na escuridão em sua volta, ela agora era sólida - mas foi em vão. Não sumia, continuava ali, sem deixá-la passar. Morreria ali, infeliz e com fome - era isso que sentia. Não, não, não, não! Não! NÃO!
Sentiu os olhos abrirem e avistou a face de seu marido. Ele estava encima dela, sacudindo seus braços.
- Por que está gritando, mulher? Sonhou com um fantasma?
- Fantasma… - ela delirava… as palavras de seu pobre marido eram sem nexo. Mesmo aquilo sendo um sonho, a baba ainda escorria por sua boca. - Que fantasma?
- É só modo de falar, mulher! Fica gritando e chorando que nem uma doida enquanto dorme. Com o que diabos sonhou?
- Sonhei? Estava sonhando? Com o que? - e então se lembrou de toda a comida; aquelas guloseimas deliciosas. Fome, fome, fome, fome e mais baba escorrendo. Agarrou seu marido pelo colarinho e levantou-o, usando a força acumulada em suas banhas. - Eu preciso comer!!
O marido, assustado com a ferocidade da esposa, mencionou a pior coisa que poderia dizer a uma mulher gorda.
- Mas você não estava de dieta?
- Dieta? Dieta?! Não estou fazendo dieta!! - jogou-o no chão com força, quase o desmaiando.
Como um animal selvagem, ia até a cozinha derrubando todos os móveis e objetos pela frente. E quando chegou lá, gritou com intensidade:
- Comida!!
Chutou a mesa do centro da cozinha - que também estava em seu caminho. Foi até os armários, puxou suas portas quase as arrancando e se surpreendeu, estavam vazias. Vazias! Inacreditável! Ficou espantada, estava prestes a chorar, partiu para sua última tentativa de achar comida: a geladeira. E adivinha? Também desocupada - além do vento gelado subindo como fumaça.
Agora sim chorava, abria a boca aos berros. Não acreditava que sua comida havia sumido. Nunca imaginaria isso. O que aconteceu? Só podia haver uma possibilidade: alguém roubou sua comida.
Toda a tristeza se transformou em ódio. Foi até seu quarto baforando de fúria. Seu marido estava deitado na cama com cara de assustado, como quem diz “Não me mate! Não me mate!”. Novamente puxou o marido pelo colarinho.
- O que aconteceu com a comida?
- Se acalme, querida! Se acalme!
Deu um tapa na cara dele.
- Diz! Agora!
- O Dr. Cleber… - choramingou hesitante.
- Dr. Cleber? O que tem ele?! - o sacudiu.
- E-e-ele passou aqui - disse desesperado. - E pediu para que entregasse a comida, toda ela.
- Fez o que?! “Toda a comida”?! E você fez?!
- Eu fiz - choramingou mais. - Ele disse para ajudá-la na dieta. Não sabia que ficaria tão brava!
- Não sabia? Você é um marido incompetente! - novamente, foi lançado contra a parede.
A criatura furiosa saiu do quarto e pegou a chave do carro. Não era uma boa motorista, mas sabia o básico; qual seria esquecido. Logo ao dar a ré, bateu na caixa de correio jogando-a para longe. Aquilo não a impediria, nem um muro de concreto.
Virando rapidamente sem olhar para os lados, entrou na pista seguindo para direita. Sua intenção era achar algo aberto. Seria difícil, pois já anoitecera. Quebrara os limites de velocidade, mesmo assim, conseguia enxergar quaisquer estabelecimentos; parecia um falcão em busca de sua presa.
Conforme passava por lanchonetes e churrascarias conhecidas, o desespero batia mais forte. Estava tudo fechado. As portas estavam abaixadas e bem trancadas, não daria nem para invadir - sim, isso passou por sua mente. O coração pulsava, seu corpo suava e descontrolava. Precisava achar algum lugar aberto, precisava!
Foi à outra cidade, esta ficava nas redondezas; poderia haver algum lugar 24 horas. Novamente, um erro. Avistou nada aberto. Seu estômago roncava e as mãos batiam no volante. MEU DEUS, O QUE EU FAÇO? Deus enviou-lhe uma salvação. Avistou um mercado em um dos pontos da cidade qual passava, as luzes estavam acesas e as portas feitas de vidro.
Parou o carro no meio da rua e iniciou sua corrida em direção ao mercado. Seus seios sacudiam e a terra tremia. Deu um leve tropeção e machucou um joelho ao cair - isso foi insuficiente para impedi-la. Logo se levantou e correu ainda mais que antes, ficando bem próxima da porta. Colocou a mão na maçaneta e girou-a desesperadamente, não abria.
Um grito ecoou de sua garganta partindo os tímpanos de meio mundo. Seus gordos braços foram levantados para o alto, descendo com os punhos fechados com toda força, socando o vidro. Entretanto ele nem se mexeu, era grosso demais, daqueles à prova de balas. Mais gritos e socos. Nada abalava o vidro e abria a porta. As janelas eram todas gradeadas, não tinha como entrar; a porta dos fundos também trancada.
Os punhos já sangravam. Sua testa também - isso aconteceu quando se distanciou da porta, saiu correndo e bateu com a cabeça no vidro. Por pouco não desmaiou; tonteou. Não queria desistir da comida, mas nem aguentava mais se mover. Nunca em sua vida praticou tanto exercício físico. Os braços perdiam o movimento, as pernas também. As dores dominavam a enorme extensão de seu corpo.
Deitou-se acomodando as costas na parede do mercado. Ali, ficou parada com o corpo imóvel, mas com a mente em plena circulação. Queria comer, queria comer. Queria comer muito. Precisava. Sua mente entrou em estado de choque. O que mais desejava não poderia ter, estava longe de seu alcance. Não adiantava persistir, não teria como fazer nada. Mas queria comer. Queria o queijo, o frango, o pudim. Queria comer tudo, tudo que fosse mais gorduroso.
Torturou-se a noite inteira; atiçando sua fome. Nem prestou atenção no amanhecer, chegava lentamente clareando tudo, só pensava em comer. O sol não dava para comer, então não era importante. Exatamente às 7:30 da manhã chegava o primeiro funcionário do mercado.
O homem, com uma camiseta contendo o nome do mercado, olhou para Serafina deitada sobre o chão. Pobre mendiga! Pensou estar dormindo, nem se importou de entrar no estabelecimento com ela ali. Um grande erro seu. Ao abrir a porta fora jogado para longe. A “mendiga” havia levantando e estava faminta.
- Moça, não entre aí! Está muito cedo - disse o funcionário caído no chão. Serafina nem ouviu suas palavras, entrou demolindo tudo que houvesse pela frente.
O que não era comestível, ela destruía jogando para longe; o que era, abria o conteúdo e engolia sem ao menos mastigar. Primeiro comeu todos os doces e balas do caixa. Depois foi para prateleira de salgadinhos, onde enchia as mãos e enfiava tudo na boca. Era uma nojeira a forma qual comia, sua boca mais se mantia aberta do que fechada, em volta dela era infestada de sujeira.
- Pare com isso, moça! - disse o funcionário tentando segurar os braços da mulher. O coitado, assim como o marido, foi jogado para longe, batendo com a cabeça na parede e caindo inerte.
A próxima ala devorada fora a de bolachas. Comeu as doces e salgadas, acabando com cada pacote. Consumiu também os cereais que amava se deliciar no café da manhã. Nunca foi de demorar para comer, porém nesse dia, fazia ainda mais rápido - rápido mesmo. Ia de prateleira em prateleira pegando tudo o que encontrava.
Deliciava-se e sorria enquanto comia. Aquilo era um sonho para si, as índias com todos os tesouros que buscava encontrar. E agora usufruía de sua conquista; comendo. Porém, quanto mais comia, mais algo acontecia. Era algo estranho, um tanto “anormal”. Como se não bastasse suas gorduras, pareciam acumular cada vez mais. Comia; o tamanho de sua barriga, braços e pernas aumentavam. Comia; aumentavam mais. Comia, comia e comia.
Seu tamanho era absurdo, crescera de forma exacerbada. Nunca existiu uma criatura tão grande e gorda. Agora sim, literalmente, andava e fazia terremotos. As banhas de seus braços batiam na barriga enquanto andava. As pernas se moviam lentamente - a cada passo dado as duas roçavam. Qualquer indício de pescoço sumiu.
Por que se importaria de estar gorda? Comer era bom, queria isso, a fazia feliz. Continuou a comer e comer sem se importar com consequências. Uma dor começou a incomodá-la. Não se importava, continuava a comer. A dor aumentava. Comia. A dor era insuportável. Comia. Então, de repente, uma explosão aconteceu.
Esse dia ficou marcado na história. Hiroshima era nada comparado com aquilo. O mercado foi totalmente destruído, sendo alagado por uma massa viscosa amarela de comida dissolvida misturada com sangue. Uma chuva caiu naquela manhã. Chovia frango, bolacha, salgadinho, doces; tudo em formato líquido, como se tivesse sido batido no liquidificador. Ninguém quis sair de casa, o ar fétido fazia vomitarem.
Não haveria enterro, pois não havia corpo. Nada sobrou de Serafina. Nada. Nada além de sua gula - esta foi mais forte que sua vontade de viver. E agora, ela que tanto gostava de comer, não poderia mais. Pois, explodiu.