O HOMEM SEM CORPO.

Acordei com o barulho da chuva no telhado. Estava bem escuro ainda. A chuva se acalmando porém, parecia uma cantiga de ninar de forma que dei mais um cochilo. Quando abri os olhos o dia estava claro e levantei-me num salto. Eram apenas seis e quinze. Após fazer minha higiene matinal, saí de casa rumo a padaria. Da minha casa até a padaria dava uns dois quarterões. A rua molhada e as árvores velhas que por ali existiam emitiam um cheiro muito agradável. Cheiro que me lembrava a infância no sítio onde cresci. Ao passar por um pé de Jequitibá Rosa em frente a mansão de um juiz amigo meu, ouvi claramente uma voz que não pude entender. Parecia que alguém me chamava.

Segui adiante e cheguei a padaria "Quitudes da Vovó". Era uma fila grande mas valeria a pena esperar. As gostosuras que vendiam ali eram de dar água na boca. A minha frente uma senhora conversava com seu netinho. Um homem a frente dela se metia na conversa o tempo todo a ponto de pensarem que ele era parente dela. Mas eu sabia que não. A senhora e o netinho eu conhecia. Mas ele era completamente estranho.

Atrás de mim a fila continuava crescendo. A frente diminuia com certa rapidez. Logo chegou a minha vez. O netinho da senhora passou correndo por mim e quase me atropelou. Ela desculpou-se pelos modos do menino e eu apenas sorri. Fiz meu pedido: Brioches, amanteigados, Muzzarella, as broinhas que meu filho gosta muito, manteiga, leite e o jornal local.

Paguei no caixa e segui pela rua a ler as últimas notícias. "Um trem descarrilhara mas não havia feridos ... Um assaltante levara uma boa sova da população indignada com assaltos a luz do dia... Um aposentado morreu ao ser atendido no Pronto socorro local com sintomas desconhecidos. Uma doença esquisita que provocava um sono que levava a morte já tinha levado muitas pessoas além dele... O governo prometia resolver a questão dos assaltos. O preço da gasolina iria subir 12%. ..."

Esbarrei em um poste bem a tempo de não ser atropelado, pois a esquina acabava ali. Naquela rua por onde eu passaria, estava a árvore onde ouvi a voz. Ao passar por lá senti chamarem-me outra vez. Achei que era paranóia minha e segui pra casa.

Em casa, minha nora havia feito um delicioso café e me aguardava com o lanche da manhã.

_Bom dia Nino!

_Bom dia minha filha!

_Notícias boas no jornal?

_Nada que se aproveite. Onde está Junior?

_No espelho.

_Esse menino parece que tem parte com Narciso!

_Deixa ele. Gosta de se cuidar.

_Mas precisa ficar tanto tempo assim no banheiro todo dia?

_E a Larissa que tem que laçar pra tirar do banheiro?

_Tem a quem puxar. Eles não estão atrazados?

_Não, já estão vindo.

_Bom dia Pai. Bom dia amor. - Disse Junior dando um beijo na esposa.

_Bom dia Mãe. Bença Vô!

_Bom dia Deus abençoe vocês dois!

_Mãe, O seu Antenor da quitanda está mal do hospital. Dizem que ele tá com Mal de Alz heimer. Ontem de manhã eu conversei com ele e ele parecia bem. Só disse uma coisa esquisita sobre uma árvore falar com ele. Acho que ta caducando.

_Como assim filha? Árvore falante? - perguntei curioso já pensando na tal árvore que falou comigo.

_Ele falou que ia pra padaria e uma árvore tinha convidado ele pra entrar nela. Vejam que coisa mais caduca!

_E ele está internado no hospital hoje? Quem te falou Larissa? - Perguntou Sílvinha com cuidados de mãe.

_A mulher dele. Pediu orações pelo WhatsApp.

_Acho difícil que seja essa doença. Ontem mesmo conversei com ele e estava calmo, entabulamos uma conversa e até jogamos uma partida de damas na praça com o Silva do 412. Dizem que esta doença deixa a pessoa nervosa e ela vai perdendo as faculdades aos poucos. Ninguém morre dela de um dia para outro.

_É mesmo pai. Todos que eu sei que morreram assim demoraram muito pra acontecer o fim.

Meu filho e minha neta sairam e eu fui para a rua saber noticias do Antenor. Ninguem estava entendendo o que estava acontecendo com ele. Simplesmente não acordou de manhã e a mulher se desesperou. Parecia estar dormindo mas a pressão sanguínea estava caindo vertiginosamente. Os médicos não davam esperanças. Fui pra casa e procurei o jornal pois tinha certeza de que li algo sobre alguém que morrera assim ontem.Mas minha nora já havia jogado no lixo e o caminhão já havia recolhido.

Fui até a rua da padaria e me aproximei da árvore com cuidado. Ouvi claramente uma voz que me chamava. Não dei ouvidos a ela e voltei pra casa. Escrevi tudo o que está acontecendo numa carta pra Larissa, guardei numa caixinha onde ela sabia que eu guardava meus tesouros mais preciosos, para ela achar se me acontecesse alguma coisa, e voltei pra rua.

Aproximei me da árvore e deixei ela falar de novo. Não tardou nem um minuto. A voz dizia claramente:

_Entre, a casa é sua.

Mas eu não entraria ali.E perguntei:

_ Onde estão os outros que vc convidou pra entrar?

_Eles estão dormindo mas o homem não pode entender.

_Não estão mortos?

_Não. Vão acordar quando chegar a hora.

_Mas estão sendo enterrados!

_O homem é ignorante! Salve-os dos homens!

_Como?

_Desinterre-os!

_É loucura! Vão me prender por violar túmulos!

_Então durma também. Entre aqui!

_Não quero isso.

_Quero ver você antes. Saia daí.

_Estou preso. Não posso sair daqui.

_Porque?

_Este mundo pra mim não é real.

_Não é deste mundo?

_Sim mas não exatamente assim.

_Como assim?

_Aqui, mas em outra forma.

_Como veio parar aqui?

_Não estou aqui.

_Énhim?!?

Assustei-me com aquilo que ele disse. Acho que foi o tom que ele usou e por isso saí correndo dali. Passei a tarde em casa sem vontade fazer nada. Achei que estava ficando doido. Fiquei com medo de dizer a alguém tudo o que aconteceu e virar outra vítima daquela árvore ou de quem quer que estivesse dentro dela. Nem almocei. Silvinha me levou um lanche no quarto mas eu não comi. Precisava reagir mas se eu saisse de casa alguma coisa me puxaria pra lá e eu não queria isso.

Acodei tarde no outro dia e ouvi Silvinha dizer a Junior que era melhor ele me levar ao médico pois achava que eu não estava bem.

Mas tomei café e comi o pão que ele comprou. Assim eles tranquilizaram-se. Depois que eles sairam sai também . Fui de ônibus pra cidade vizinha onde a notícia do jornal dizia que o tal homem tinha sido sepultado.

Falei com o coveiro e perguntei pelo homem. Ele falou que o tal estava mole. Não tinha endurecido como os outros defuntos. Isto era grave. E se ele estivesse vivo realmente?

Esperei que o homem fosse almoçar e tentei abrir o túmulo . Ele não lacrara o túmulo pois sempre que o defunto estava mole ele fazia isto. Era uma gastura dele. Abri o túmulo e o outro estava lá. Nem um pouco pálido, mole como no dia do velório. Não tinha pulsação. Mas seu olho estava vivo. Tinha brilho. Muito esquisito.

Perguntei ao coveiro se havia outros casos de pessoas que estavam moles ao serem enterrados e ele respondeu que nos últimos dias havia um monte de pessoas assim. Ele não lacraria o túmulo ao menos até que começassem a cheirar mal mas nehum estava assim ainda. O túmulo ficava com uma fresta e o caixão levemente fechado com uma pequena fresta também. Ele desinfetava em volta pra evitar insetos e ficava aguardando os acontecimentos. Agradeci a ele por isso e disse-lhe que achava o mesmo que ele. As pessoas podem estar vivas. Breve vão achar a cura para essa doença misteriosa e ele seria um herói.

Voltei pra casa tranquilo. Na minha cidade não tem cemitério e assim se isso acontecesse a mais alguém este estaria seguro. Precisava ajudar meus amigos que haviam "morrido".

Precisava entender quem era aquele ser dentro da árvore. Por isso, mesmo correndo risco de "morrer", fui até lá. Era um Jequitibá Rosa como qualquer outro com a diferença de que ele era muito velho e por isso era gigante. Já havia estourado a calçada e até o muro do juiz mas ele se recusava a deixar cortar a árvore. Tinha razão em parte. Ela era mesmo muito linda.

Eu ainda não tinha compreendido porque não pegara a doença do sono mas imaginava que era porque não "entrara" nela. Então perguntei a ele:

_Onde estam as pessoas que estão dormindo na verdade?

_Estão aqui comigo.

_ E seu corpo está onde?

_Não sei.

_Como se chama? Qual seu nome? É humano?

_Sim sou humano. Ou era. Mas só me lembro do meu apelido. Era o mestiço.

_Morava em que cidade?

_Nesta cidade mesmo.

Este nome não me era estranho. Sabia que conheci alguém como este apelido mas não conseguia me lembrar de onde.

_O que aconteceu com você?

_Aquele que morava na árvore me chamou e eu entrei aqui. Mas por causa do meu último desejo não consegui mais sair.

_Qual era seu último desejo?

_Pedi pra morrer pois não aguentava mais a vida que eu vivia.

_E porque não pode voltar a seu corpo?

_Aquele que morava aqui tomou o meu lugar.

_Que horror! Então ele está no seu corpo?

_Até que eu encontre ele e o faça devolver. Por isso fico chamando todos pra entrarem aqui. A maior parte é egoista e não quer me ajudar. Só poderei sair quando alguém ficar em meu lugar mas cada vez que alguém entra e vejo que não sou eu e que não quer me ajudar o mando embora. Mas acontece alguma coisa com eles depois que saem daqui. De certa forma sugo a força vital deles. Juro que não quero isto.

_Quero ajudar. Como eu o reconheço?

_Terá que descobrir sozinho não tenho como lhe mostrar.

_Vou tentar te ajudar mas apenas porque sei que estarei livrando outros da sua sina. Mas me prometa uma coisa, não vai chamar ninguém mais até eu voltar. Promete?

_Prometo. Estarei torcendo por você.

Saí dali com esperança e ao mesmo tempo preocupado. Tinha que encontrar o outro. Mas o que fazer pra encontrar alguém assim. Um mestiço com atitudes diferentes. Como reconhecê-lo? Voltei ao cemitério e o Coveiro me disse que não havia "morrido" ninguém mais. Olhei todos os que estavam guardados no túmulo, com a ajuda dele e não notei nada de diferente neles. O coveiro sorriu um sorrizo estranho de quem andava desconfiado de mim. Ele também era mulato entre muitos outros na cidade. Despedi-me dele e voltei pra casa pois já estava anoitecendo.

_Onde andou Nino? Jesus! Já estava preocupada! Seu filho ligou duas vezes e não conseguiu lhe falar. Já chegou e disse que iria tomar banho e chamar a polícia.

_Cama Menina, tudo bem! Só me enrolei pela rua um pouco a mais.

_ Que bom que está bem! Vai se banhar e logo o jantar estará servido.

_Onde está Larissa?

_ No quarto estudando.

Entrei no quarto da minha neta e puxei conversa com ela. Ela tinha a mente aberta e quem sabe poderia me ajudar. Perguntei-lhe se conhecia alguém esquisito que não se encaixava na aparência e ela respodeu:

_Olha vovô, sabe que ontem mesmo eu tava pensando nisso? Conheci um homem da cidade vizinha e ele era muito estranho. Estava apressado e disse que tinha que voltar pro cemitério. Ou ele era coveiro ou era maluco. E observei que ele andava com as pernas abertas como se estivesse saindo de dentro dele a qualquer momento. Coisa doida não? Nem falei pra mami, ela ia me internar. E riu um riso frouxo

Acompanhei a menina na risada e sai dali avisando que o jantar estava pronto. Mas as palavras dela me fizeram ver o quanto eu estava sendo estúpido. Era o coveiro é claro! Ele era mesmo esquisito. Mestiço e com certeza aquele era o corpo do prisioneiro da árvore. Só ele sabia que eles não estavam mortos.

O jantar estava delicioso pois Silvinha era uma eximia cozinheira. Conversamos e levei um pito do meu filho. Ficou preocupado comigo. Prometi não sumir mais.

O dia amanheceu lindo. Nem sinal de chuvas. Rumei pra padaria logo cedo e antes de chegar a ela parei na árvore e cochichei baixinho pra ele ouvir. Fica tranquilo achei você. A padaria estava até tranquila pois acordei mais cedo que os outros moradores. Comprei o lanche e fui pra casa pra não levantar suspeitas. Depois do café fui até lá e expliquei o que estava pensando ao Mestiço. Contei-lhe tudo. Ele falou que fazia sentido. Se ele realmente estivesse com seu corpo não enterraria ninguém pois reconheceria que elas estavam vivas. Havia um teste e eu precisaria fazer pra ter certeza de que era mesmo seu corpo.

_Leve um espelho inteiro e outro quebrado ao centro bem pequeno. Não deixe que ele veja o espelho. Veja o reflexo dele no espelho quebrado. A imagem que vai aparecer será de um lado do espelho a minha, mas a metade do espelho será a verdadeira imagem dele. Veja se é diferente um lado do outro. Se for diferente é ele mesmo, aponte o espelho inteiro pra ele e diga bem alto estas palavras:

_Dominus Dei Agnes di Mundi retorne ao corpo aquele que o deixou. Assim vai me libertar.

Parti pro cemitério e fingi estar rezando em um túmulo quando o coveiro chegou do café. Ele me ignorou. A imagem do espelho ficou esquisita. Realmente era ele. Metade era aquilo que eu via nele e a outra metade era outra pessoa. Quando vi que era mesmo ele, apontei o espelho pra ele e disse bem alto :

_Dominus Dei Agnes di Mundi retorne ao corpo aquele que o deixou.

O Homem deu um grito de pavor. Na minha frente, foi ficando pálido e se contorceu inteiro. Desmaiou e eu fiquei pensando o que teria acontecido com ele. Mas em poucos minutos ele acordou e eu tentei fugir pois fiquei com medo dele. Ele sentou no chão entre os túmulos e me disse: Ei espere! Por favor. Me ajude! Onde estou?

A voz do homem me deu um arrepio. Não de pavor mas de um estalo na alma. Aquela voz era muito familiar. Voltei correndo e ele então me falou:

_É você mesmo Zezé?

_Eu? Mas quem é você?

_Juca. Não lembra?

Sua voz estava trêmula e eu fiquei mais trêmulo ainda. Era o Juca mesmo. Como eu pude não reconhecê-lo antes? Era o meu tio que desapareceu quando eu ainda era menino. Na época ele era menino também. Julgávamos que ele havia fugido de casa afinal era muito espoleta. Ele estava velho mas era ele mesmo. Ajudei-o a se levantar e caminhamos a té o portão. Ouvimos de repente vozes que gritavam desesperadas. Elas vinham dos túmulos. Corri pra ajudar . Meu tio estava fraco e quase não pode ajudar. O jeito foi falar o mais alto que pode pra terem paciencia e calma, que a ajuda já estava indo e que continuassem falando pra sabermos onde estavam. Ele não lembrava pois não era ele quem os colocou ali. Mas eu sabia mais ou menos pois já os visitara antes com o coveiro. Alguns conseguiram levantar a tampa e sair sozinhos mas os mais frágeis esperaram a ajuda.

Saimos do cemitério mais ou menos trinta pessoas. Eram 14 idosos e doze rapazes entre dezesete e vinte anos de idade. Eles estavam muito felizes e nos chamavam de heróis. Não fomos até suas casas mas imaginamos a alegria dos parentes ou o susto de vê-los de volta. As cidades ficaram em polvorosa. Eles falaram da árvore. E combinamos que iríamos queimála antes que ele convidasse outros para entrarem. Até nos encontramos no dia seguinte mas começou um baita temporal e nos obrigou a voltar pra casa.

Em casa eu soube noticias do Antenor. Ele voltara pra casa como se nada tivesse acontecido deixando a todos embasbacados.

O temporal durou até a noite e nos segurou em casa. Combinamos que depois da chuva, no dia seguinte incendiaríamos a árvore. Mas nem precisamos fazer isso.

Acordei com estalos muito fortes. Eram duas horas da madrugada. A chuva já tinha parado mas havia um burburinho enorme na rua. Saimos de casa , eu e meu filho, que acordou também com o barulho. Havia uma multidão e dois carros dos bombeiros na casa do juiz. Um raio caiu sobre a árvore e ela pegou fogo. A casa incendiou-se também e não sobrou nada. Ainda bem que eles estavam de férias em outro lugar e ninguém se feriu. Os vizinhos da casa estavam molhando o muro com muita água com a ajuda dos bombeiros pra evitar que o incêndio se propagasse até suas casas. E conseguiram. Não pegou fogo em nada deles. A mansão do Juiz era grande mas tinha um terreno grande dos lados. Só pegou fogo pois a fiação que vinha pra casa passava dentro da árvore. A vizinhança ficou a salvo pois a energia foi desligada logo. Mas o Pé de Jequitibá virou cinzas. Cinzas que levavam dentro delas o homem prisioneiro que queria outro corpo. Assim estávamos livres dele pra sempre.

Nunca contei esta história antes pois não queria publicidade mas as pessoas"mortas" espalharam a notícia e logo todos ficaram sabendo que era eu quem as tinha salvo e assim resolvi escrever um livro no qual eu conto o que realmente aconteceu, pra evitar ter que repetir a cada esquina a todos que querem saber a história do homem sem corpo e dos mortos que estavam vivos.

Nilma Rosa Lima
Enviado por Nilma Rosa Lima em 11/08/2015
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