LÁGRIMAS TRANSPARENTES QUE SE TORNARAM VERMELHAS

Nada acontece ou termina por acaso. Nem a criação do mundo nem um caso de amor. Um pensamento apenas torna-se real quando um outro alguém o traz para o mundo concreto das ações.
O dia de trabalho daquela cidade estava terminando com mais um melancólico pôr-do-sol que contrastava com a correria de múltiplas pernas na direção de carros, táxis, ônibus e daquele metrô. A porta estava quase se fechando quando uma mão feminina a segurou com pressa e ansiedade, mas aquele segurar durou apenas milésimos de segundos, logo a porta já estava se fechando novamente, claro, se não fosse uma mão masculina a impedindo com uma notável arrogância.
Finalmente o metrô pôde enfim partir daquela estação central. No interior do vagão não havia espaço para um deslizar de pernas sequer. Tudo era deliberadamente apertado e desconfortável. Homem e mulher tão comprometidos e ao mesmo tempo tão distantes encontravam-se frente a frente com suas bocas quase grudadas, não fosse uma pequena parede de ar responsável por suas respirações. A conversa inquietante seguiu-se regida por sussurros, caras, bocas e leituras labiais nem sempre precisas. Ali, desejando, mas não encontrando o mínimo de privacidade, homem e mulher pediram em pensamento que fossem surdos e tivessem o dom da língua de sinais, mas ouvintes tinham nascido e não se podia mudar sua real natureza.
- O que está havendo com você?
- Eu vou embora.
- Embora? Não faça ameaças que você não pode cumprir.
- Você prometeu tantas coisas há 5 anos atrás e até agora nada da sua palavra de “homem”.
- Você não pode me deixar. Eu amo você.
- Você ama mais você do que eu.
- E você não?
- Sim, por isso estou indo embora. Por que eu te amo mais e isso não é vida pra ninguém.
- Fica, por favor.
- Não. Eu vou embora.
- Pra onde? Você não tem pra onde ir. Sua família, sua única família sou eu.
- Não mais.
- Você arranjou outro?
- Não diga bobagens.
- Então me diga pra onde você vai.
- Você sabia que a NASA prepara uma missão prevista para 2013? Ela vai enviar uma nave para Marte (no exato instante em que a palavra Marte foi pronunciada, mesmo sussurrada, olhares estranhos miraram com medo e incredulidade) e eu vou junto.
- Pra Marte?
- É. Vou garantir meu lugar.
- Fazer o que em Marte? Não existe vida lá.
- Muito provavelmente sim. Foi confirmada água em Marte. Isso significa que um dia a atmosfera do planeta foi mais espessa, havia o efeito estufa e o planeta era mais quente, condições muito favoráveis à vida.
- Como você sabe disso?
- Eu li. Eu leio revista sabia? Eu sou uma pessoa culta.
- Mesmo que tenha existido vida em Marte, nunca te deixarão subir na nave.
- Não custa tentar.
- Marte é um planeta primitivo. Se existe água lá é muito. No máximo peixinhos.
- Eu posso virar peixe. A água de Marte pode ser a minha água. Serei uma criatura habitante do planeta vermelho.
- Você não está bem. Não existe água em Marte. Esses cientistas mentem. O homem é manipulador.
- Eu sei como as águas surgiram.
- Sim claro. E como foi?
A mulher ficou em silêncio sorrindo como se o que ela fosse contar fosse a história mais famosa do mundo.
- De acordo com uma crendice mundial, a terra é redonda comparada a uma laranja. Marte também é redondo, vermelho parecido com uma maçã. Num certo tempo em algum lugar lá em cima, uma família alienígena (os olhares das pessoas no vagão pareciam confabular em meio a tantas revelações ou bobagens) passeava pela via Láctea.
- Você está me surpreendendo.
- O filho do casal como toda criança gostava de doce. Estavam eles então passando sobre Marte, quando o menino apontou para o planeta e gritou.
- Pai! Mãe! É um chiclete de morango!
- Onde filho? Aquilo não é um chiclete. Aquilo é uma maçã.
- Não mãe, é um chiclete.
- Filho, se aquilo fosse um chiclete ele seria meio mole. Ele é duro e tem até buraquinhos feitos pelo bicho da maçã.
- Mas pai eu quero o chiclete.
A mulher cortou o pensamento se achando ridícula naquela situação.
- É melhor eu parar de delirar. Você não está interessado. Além do mais, nós não temos mais nada pra conversar. A nossa história acabou.
Por um instante a crise do casamento pareceu estar superada para aquele homem, que não mostrava mais nenhum interesse em continuar com aquela mulher. Ele só queria terminar de ouvir aquele papo absurdamente sem nexo.
- Continua. Como foi que isso acabou?
- Esquece. Eu não vou continuar.
De repente se virou e sentiu múltiplos olhos dentro do metrô fuzilando-a como quem exigissem mais explicações. Sentiu-se pressionada, desconfortável e sem saída, a não ser continuar a narrativa.
- Bom, o menino acreditava tanto que Marte era um chiclete e não uma maçã, que ele começou a chorar de desespero. E chorou tanto que suas lágrimas não couberam na nave e começaram a cair. Lágrimas transparentes que logo se tornaram lágrimas vermelhas junto ao solo de Marte, formando assim as águas daquele lugar.
- O que aconteceu com a família?
- Deve ter se afogado com tanta água na nave.
- Como deve ter se afogado?
- Eu acho, sei lá. Eu não estava lá.
- Quem te contou essa história?
- Um marciano disfarçado de terráqueo que eu conheci esses dias lá na praça perto da nossa casa.
Os olhos de todos no metrô voltaram-se para a mulher como num misto de fúria e medo, embora pra ela aquela reação fosse sem motivo aparente. Estava apenas conversando com o seu marido que nem marido mais era.
- Espere aqui. Eu vou lá e já venho. Preciso saber a verdade dessa história.
- Mas é apenas uma história.
Não houve tempo pra completar o raciocínio. O metrô parou na estação seguinte, a porta se abriu e do vagão saiu somente o homem, fato estranhado na hora por ela. E falando consigo mesmo ironizou.
- Não existem ETs. Se existissem com certeza nós humanos não estaríamos mais aqui.
Naquele instante a mulher percebeu o quanto os seres humanos eram tolos e ingênuos apesar de mal intencionados. Que a humanidade era apenas assim. Os homens acreditavam em histórias e elas ficavam para a posteridade.
Os olhos de todos ali naquele vagão continuavam a fitá-la, agora com uma complacente pena. De quem fala o que quer, sem pensar nas reais conseqüências.
Todos os olhos brilharam translucidamente e em segundos um enorme clarão tomou conta de todo aquele espaço apertado. Quando a luz se dissipou, todos continuavam ali, exceto a mulher, que havia sumido como uma história nunca contada ou como um caso de amor nunca existido.
Kadu Leayza
Enviado por Kadu Leayza em 15/07/2015
Código do texto: T5311935
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