Lupinos (Parte 2)

Nunca mais avistei o velho índio vendendo artesanatos na praça perto do meu trabalho. Desde o nosso último encontro não esqueço mais o que conversamos. "O lobo negro vai aparecer! Basta que alimente apenas um grão ao lobo negro para que ele se torne Alpha".

Depois de toda essa conversa tentei voltar ao meu normal ao máximo afinal de contas eu nunca mais tinha tido aquela alucinação com lobos e nem mais dores. Todos meus exames davam que meu corpo era extremamente saudável.

Recebi um convite de meus amigos para sair com eles a noite para alguma balada dessas que eles costumam ir. Mesmo sendo homem, jovem e animado, eu não gostava muito desse tipo de diversão. Mesmo assim, disse que encontraria-os às 23:00 horas no local.

Me arrumei apenas com o intuito de tentar livrar minha cabeça de toda aquela história de lobos e do resto dos problemas que se acumulavam em minha vida. Eu não queria saber de nenhuma garota, meu coração ainda pulsava por uma só pessoa.

Tarde da noite lá estava eu descendo a rua para me encontrar com meus amigos. No meio deles estava ela, Luna, minha ex-namorada. O circulo de amigos era o mesmo, o que fazia manter-me afastado a fim de não trombar com ela exatamente do jeito que acontecia agora.

Respirei fundo e resolvi encarar. Um dia só numa casa noturna tão grande não ia dar errado. Era só cada um ficar na sua, afinal de contas somos maduros.

- Que bom que veio Thiago, achei que nunca íamos tirar você de casa! - Paulo me abraçou com seu clássico tapinha nas costas.

- A cabeça anda cheia... - abaixei a cabeça para que Luna não encarasse meus olhos - Não ando muito bem!

- Então relaxa, vamos nos divertir! hoje nada de ruim vai acontecer! - Paulo disse me dando mais um tapinha nas costas.

Luna evitava também que seus olhos encontrassem com os meus. Ela não havia deixado de ter sentimentos por mim quando terminamos. Eu tinha deixado de ser quem ela amava, deixado de estar lá por ela...Ela usou todas as forças que teve para continuar comigo mas aquilo só a machucava.

Virei de costas engolindo um choro pela falta dela, entreguei os documentos para o segurança liberar a entrada e peguei minha comanda, guardando-a na carteira. Paulo e Caio vieram logo atrás de mim já me levando para pegar uma bebida.

- Você ta bem? - Caio esperou Paulo se afastar.

Caio era quase um irmão pra mim. Mesmo não nos falando muito, sempre que nos encontrávamos a sensação de irmandade era completa.

- Cara...Você sabe que minha vida ta de cabeça pra baixo e do avesso - Eu suspirei olhando para o chão.

- Eu sei. To falando da Luna estar aqui...

- Não, sinceramente, não - coloquei a mão sobre os olhos apertando-os de leve - Não dá pra eu ficar encontrando ela...Vocês podiam ter me avisado né?

- Eu não sabia, foi o resto da galera que chamou - Ele pôs a mão em meu ombro me puxando para um abraço - Eu sei o quão difícil é pra você, da pra ver em seus olhos Thi.

Correspondi ao abraço e logo senti que alguém me olhava. Agradeci o abraço e me virei encarando Luna bem nos olhos. Me afastei de Caio para que ela não pensasse que ela estar com os amigos dela me incomodava. Eu era o peixe fora d'água ali, não ela.

Sem que eu precisasse falar mais nada Caio também entendeu, ele me direcionou para que fôssemos para o segundo andar da casa noturna. Eu tentava me divertir mas a ideia de estar dividindo o mesmo espaço, de estar perto da Luna e não poder ver, não poder sentir. Ela não era mais minha.

Tomei a bebida num gole só querendo que todos os sentimentos fossem deglutidos com ela. O som da música se tornou insuportável aos meus ouvidos e não sei como consegui isolá-lo, colocando-o em segundo plano. Naquele momento um arrepio súbito percorreu meu corpo inteiro.

Eu só conseguia pensar nela e uma fúria tomando conta do meu corpo. Luna se propagava em todos os meus pensamentos. Seus sorrisos, seus carinhos, seu cheiro. De repente seu cheiro era só o que eu podia sentir. Sai andando com a respiração extremamente forte, bufando. Sentia meu corpo muito quente, como uma febre bem alta.

Desci as escadas da casa noturna apenas seguindo o cheiro dela. Meu coração batia mais forte do que eu pudesse contar. Eu precisava achar ela e agora. Eu podia escutar Caio e Paulo descendo atras de mim, assustados, falando algo que eu não podia e nem queria escutar.

Cheiro da Luna estava cada vez mais próximo, olhava a multidão dançando e em segundos eu sabia que ela não estava ali. Abri a porta do fumódromo passando quase levando junto o segurança que guardava a porta. Desci até o fim do fumódromo e como eu quis que eu nunca tivesse feito isso.

Lá estava ela, sentada com outro cara ao seu lado bem próximo. Eu não era idiota, eu sabia exatamente o que estava acontecendo la. O sangue fervia cada vez mais. Eu só sentia o cheiro dela. Olhei dentro dos olhos dela tremendo excessivamente o corpo todo.

- Não acredito - Eu disse segurando as lágrimas e sentindo as palavras saírem da minha boca quase como um rosnar.

O cara que estava ao lado dela se levantou passando a mão pelas pernas dela e dando um pequeno beijo em seus lábios ali na minha frente dizendo que já voltava. Fazia o que? 1 mês que havíamos terminado?

A dor no peito começou a aparacer novamente. Tudo que eu sentia era ódio, raiva, sensação de que eu poderia matar qualquer um naquele lugar e ah como eu queria fazer isso!

- Não era pra você ver isso... - Ela me disse olhando em meus olhos.

Eu respirei fundo já caindo diversas lágrimas, eu precisava sair dali. O mundo acabara de cair sobre minha cabeça. Qualquer sanidade que ainda me restava acabara naquele momento. Me virei com uma dor alucinante em meu peito, empurrando Caio com toda a força para que ele saísse da minha frente, não escutando nada do que ele falava.

Entrei na frente de todo mundo do caixa e paguei minha comanda. Sai completamente desnorteado do lugar e fui descendo a rua cheia de casas noturnas. A unica imagem que vinha à minha mente era daquelas mãos deslizando por aquele corpo que há tão pouco era meu. Era meu porto seguro, era minha esperança, era minha vida. Luna me fazia querer a vida.

Fui descendo a rua arrancando todas as lixeiras dos postes, chutando tudo que eu podia ver pela frente. Imagens dela com o outro cara foram se propagando pela minha imaginação e aquilo estava me cegando. Eu não enxergava mais nada, apenas o ódio pleno.

A dor no peito aumentou mais ainda e acabei perambulando para um beco escuro paralelo. Caí ao chão derrubando uma lata de lixo barulhenta e pude ver um gato sair correndo dali. Eu devia estar com quase 50°C de febre porque não era possível aquele calor todo que emanava de mim.

Eu tinha a exata certeza do que estava acontecendo ali. Por mais que eu não acreditasse no que eu tivesse visto da primeira vez no reflexo do meu espelho aquele dia em meu quarto. Era o lobo. Só que dessa vez eu só sentia ódio.

Foi então que tudo aconteceu novamente, urrei de dor quando meus ossos foram completamente quebrados um a um, minha pele se rasgava caindo pela rua suja e escura do beco, urrei novamente quanto todos os ossos se reagruparam num só instante. Lá estava eu, arfando como um grande lobo em suas quatro patas.

Respirei fundo pelo meu longo focinho. Luna. Tudo voltou a minha mente de uma vez só. O cheiro, as mãos, as palavras dela, o que eu tinha visto e tudo que minha imaginação havia me fornecido. Rosnei enrijecendo meu corpo todo e os pelos se arrepiaram. Eu queria a cabeça daquele cara.

Em um pulo ágil, meu corpo novo saltou pelo muro e novamente para o telhado de uma das casas noturnas da rua em que eu estava antes. Não ia ser difícil. Eu sentia o cheiro dele de longe. Meu coração acelerado e em combustão pelo ódio me moviam pelos telhados das casas.

Alguns metros de beco, eu estava no telhado da casa noturna onde minutos atrás eu era apenas o Thiago. Me esgueirei pelas sombras a fim de que eu pudesse tentar encontrar aquele idiota. Consegui avistar a parte não coberta do fumódromo. Quieto e nas sombras, puxei o ar pelas minhas narinas.

Não era preciso enxergar. O cheiro dele invadiu minhas vias respiratórias. Mesmo de olho fechado eu sabia exatamente onde ele estava. E sozinho. Tudo passou novamente pela minha cabeça. Minha consciência e lado humano simplesmente se calou. Eu era apenas um enorme lobo e cheio de ódio.

Em um só salto cai sobre o chão lotado de bitucas de cigarro e imundo daquele lugar. Podia ouvir gritos de pessoas assustadas e correndo para dentro do lugar, mas novamente o som era abafado. Eu havia isolado o som para escutar apenar o bater do coração de quem eu estava prestes a dilacerar.

Fui descendo encurralando-o contra um portão. O Cara estava apavorado, com as mãos encostadas no portão sem dizer uma palavra. Ele chorava de pânico ao olhar o imenso lobo a sua frente. Olhei bem nos olhos dele, queria gravar aquele momento. Mostrei mais ainda os dentes e rosnei mais alto investindo contra ele. Ele gritou pedindo à Deus e se chocando mais contra o portão e fechando os olhos.

Era instintivo tudo que eu fazia. Abaixei o corpo repleto de pelos arredios a fim de pegar impulso para pular diretamente em sua garganta. A única coisa que eu queria era fazer aquele cara em pedaços. A Luna era minha.

- Meu Deus!! - A voz apavorada e mesmo assim doce ecoou pelo local em que eu estava.

Eu conhecia bem demais aquela voz para ignorar. Olhei para trás e seus olhos encararam diretamente os meus. Óbvio que ela não fazia ideia de que o lobo era eu.

- Por favor, não me machuque - Ela pediu se afastando um pouco.

Eu sentia ódio dela por tudo que acontecera antes, por ela não ter ficado ao meu lado em tudo que eu estava passando. De ter me deixado ir embora e ela sabia que essa seria a minha ruína. Rosnei mostrando os longos dentes investindo contra ela. Luna bateu as costas na parede e arfou de dor. O tal babaca nesse momento estava desmaiado lá no portão.

Minhas enormes patas se colocaram a frente do corpo dela que se deixava cair talvez não mais se segurando em pé de medo. Me preparei para investir contra aquela que havia me feito tanto mal nos últimos tempos. Luna olhou em meus olhos de um jeito que nunca mais vou esquecer.

O medo em seus olhos me fez congelar. Ela me encarava como uma presa quando não há mais para fugir e sabe exatamente o seu destino. Era aquilo que eu era? Um monstro? Eu estava machucando quem eu mais amava e estava prestes a machucar mais ainda.

Enquanto ela chorava em choque ainda fitando a besta à sua frente, desviei o olhar. Aquilo doía demais. Eu era quem ela mais temia. Encarei a silhueta que se refletia na parede espelhada da casa noturna. Meu corpo todo era coberto por pelos mais escuros que a própria noite. Eu era o lobo negro.

O ódio cessou. Encarei a pequena menina à minha frente, em choque, estarrecida pelo medo. Encaixei meu focinho à sua clavícula. Enquanto ela fechava os olhos temendo por sua vida, eu sentia o cheiro dela. Uma última vez. Uma última vez senti-la tão perto, quase como quando ela me abraçava. Rocei o focinho na pele macia como se eu pedisse desculpas.

Me afastei com a cabeça mais baixa, meu longo rabo também baixo para demonstrar que não iria machucá-la. Ela fitou meus olhos mais uma vez. Por alguns segundos tive a sensação de que ela sabia enquanto analisava meu olhar. Eu pedia perdão mentalmente, eu não podia falar naquela forma. Meu olhar pedia perdão.

Ela estava amedrontada ainda mas me fitava. Eu nunca mais conseguiria chegar perto dela ou vê-la sem me lembrar do jeito que ela me olhou antes.

Pulei novamente para o telhado e sumi nas sombras o mais rápido que pude, eu podia escutar as sirenes da polícia se aproximando enquanto eu corria por cima das casas. Voltei para o mesmo beco escuro. Desci ao chão do jeito mais silencioso que meu enorme corpo permitiu. Deitei nas sombras daquele lugar pensando a unica coisa que me fazia sentido naquele momento. Eu era um monstro e devia ficar o mais longe possível de todos.

Meu peito se encheu estufando os pelos. A dor emocional fez com que um arrepio me percorresse. Uivei o mais alto possível a fim de colocar toda aquela dor para fora. O uivo melancólico ecoou pelo bairro todo enquanto eu desfalecia voltando à minha forma humana.

Giuliana Joia
Enviado por Giuliana Joia em 14/07/2015
Código do texto: T5310172
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