833-O OURO DO ARCO-ÍRIS

— No pé do arco-íris tem um pote de ouro. Quem for lá e achar, fica rico por demais.

Assim dona Filomena terminou de contar a história. Os alunos, garotos e garotas de cinco e seis anos permaneciam de boca aberta, em puro êxtase ao ouvir a narrativa da fantasiosa lenda, na voz suave e ao mesmo tempo determinada da professora.

— É verdade, fessora?

— É sim. Mas é impossível achar o pé do arco-íris, onde as cores se encontram com o chão, pois ele se afasta quando a gente corre para encontrá-lo.

As crianças se levantam do chão onde estavam sentadas e vão para o pátio da escola. Menos o Clésio, que continua sentado, o olhar sonhador, pensando em sabe-se lá o quê.

— Pronto, Clésio, acabou-se a história, vai brincar la fora.

— Hã? — Parecendo acordar de um sonho, piscas os olhos, levanta-se e sai da sala.

Preciso dar mais atenção ao Clésio. Ele vive no mundo da lua — pensou a professora.

Clésio morava na fazenda onde seu pai, era retireiro e cuidava do pequeno rebanho do patrão. Chegava bem cedinho, meia hora antes de a aula começar, pois aproveitava a carona do caminhão que trazia o leite da fazenda para a cooperativa. Mas na volta, caminhava quase dez quilômetros para retornar à fazenda.

Era um sonhador. Nas conversas com os colegas acreditava em tudo o que lhe contavam, como acreditava piamente nas histórias que ouvia, narradas pela professora. Muitas pessoas pensavam que ele fosse retardado, mas estavam enganadas. Crédulo, sonhador, tinha imaginação e inventava também suas histórias.

— Isso é mentira! Fessora, o Crésio tá mentindo! — gritavam os colegas, quando ele “exagerava” ao contar os acontecimentos da fazenda.

— Meninos! Isto não se diz! — Dona Filomena zangava com os pequenos. — Clésio não conta mentiras, só que ele vê as coisas diferentes de vocês.

Foi crescendo e revelou-se um adolescente simplório e quando adulto essa característica não o ajudou em nada. Porém, como ficou na fazenda, trabalhando com o pai, o velho Quinca Retireiro, não lhe fazia mal a falta de senso crítico.

Porém, a história do pote de ouro no pé do arco-íris, ouvida há tantos anos, persistia em sua mente como realidade. Nunca deixou de acreditar no que a professora contara com tanta ênfase e convicção.

Era ver um arco-íris e a lembrança voltava.

Ainda vou encontrar esse tal de pote de ouro. – pensava.

Por uma ou duas vezes saiu correndo pasto afora, na direção do local onde pensava encontrar o pote de ouro. Mas inutilmente, claro.

Casou-se com Marianinha e passou a morar numa casa de colono da fazenda. Viviam tranquilos, pois os trabalhos da fazenda, embora cansativos ao corpo, não exigiam muito de sua mente simplória.

As estações se sucediam, bem marcadas, principalmente o ”tempo da seca” do “tempo das águas”. E era na estação das chuvas que Clésio ficava “atacado”, pois vivia olhando para as nuvens, aguardando as chuvas. Esperando pelo arco-íris, que geralmente era visto na parte da tarde, quando as nuvens prenhas de água, iam se afastando e deixando o chuvisqueiro onde os raios do sol eram decompostos nos mais lindos arcos-da-chuva.

E num entardecer, estando Clésio numa colina e a chuva já indo embora, apareceu no céu as cores maravilhosas do arco-íris. Clésio firmou a vista e olhou bem na direção aonde as cores chegavam ao chão. Sem titubear, saiu correndo de maneira desenfreada, pulando cercas, arranhando-se nos capões de mato, mas mantendo a linha reta.

É na pedreira abandonada, na pedreira... na pedreira — pensava entre as tomadas de ar.

A pedreira era onde a exploração de pedras fora abandonada há muito tempo, e pelo chão escalavrado só restavam os calhaus inaproveitáveis. Uma poça d água escura no centro, com má fama de sumidouro, tornava o local sinistro. Ninguém ia lá.

Ou porque correu como um louco ou porque o chuvisqueiro persistia, Clésio chegou à pedreira – e viu!

Toda a pedreira iluminada, vibrando com a luminosidade do fenômeno. A poça de água refletia as cores com intensidade fantástica.

Então, Clésio, os olhos mais aberto do que nunca, viu mais! Não um pote de ouro, mas as pedrinhas, os calhaus por sobre os quais a luz colorida batia, eram amarelos, dourados.

— É ouro! E ouro! É ouro! — girou Clésio, que, sem se deter na carreira, entrou por debaixo do arco-íris e começou a pegar as pedras.

Clésio não era tão simplório que não soubesse que aquelas pedrinhas eram de ouro. Não duvidou um só momento. Era a confirmação da história ouvida há tanto tempo, mas que permanecia em sua lembrança, como se a tivesse escutado ontem.

Virou um dançarino maluco, pegando as pedrinhas, jogando para o ar, meio cego debaixo de tanta luz colorida. Ele mesmo se tornou um ente fantástico, as luzes mesclando-se no seu corpo como se fosse um boneco multicolorido.

Pulou e jogou pedrinhas para o alto até que a chuva se fosse e levasse consigo o arco-íris. Cansou-se de tanta euforia.

Olhou para o chão: estava forrado de pedras amarelas, brilhantes.

— Quanto ouro!

Ele não tinha sequer a noção do que valeria aquele tesouro. Encheu os bolsos de pedras e voltou ao lar.

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Marianinha já estava preocupada, pois quando ele chegou já era noite. Zangada, perguntou ao marido:

— Onde ce tava, Crésio? Fiquei aqui, maginando coisa.

Tropeçando nas palavras, ele contou o acontecido e colocou as pedras sobre a mesa rústica. A mulher, mesmo vendo o brilho das pedras à luz parca da lamparina, não acreditou.

— Cê ta doido, Crèsio? Ou andou bebendo na venda do seu Carlim?

Dia seguinte, nem bem amanheceu, Clésio procurou o pai, que morava na mesma fazenda.

— Agora num posso, tenho de acabar de tirar o leite das vaca. Depois vou lá ver se o que ce ta me falando é verdade, disse o Velho Quinca, achando que o filho tinha abirolado de vez.

Quando viu as pedrinhas, o pai ficou admirado.

—Onde ocê achou isso?

—Foi no pé do arco-íris.

—Deixa de sê besta, fio. Cê encontrou mais foi um veio de ouro. Vamo levar uma pedrinha só pro seu Ivo, o relojoeiro da cidade, que ele entende disso. Sabe diferenciá um relógio de ouro de verdade de um relógio foiado a ouro.

E dirigindo para Marianinha:

— Isconde isso bem iscondido e fica de bico calado. Num fala com ninguém.

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Ao examinar com a lupa a pequena pedra, uma lasca de uns três centímetros, o relojoeiro afirmou:

— Parece que é ouro sim. Posso fazer um teste com o material que uso para provar que é ouro mesmo?

— Uai, craro que pode. — Disse o pai, já que Clésio estava ainda bestificado.

Daí alguns minutos, o relojoeiro volta de seu quartinho de testes, dizendo, alegremente:

— É ouro sim! Do mais puro. Vinte quatro quilates.

E olhando para o velho, pergunta:

—Onde foi que o senhor encontrou esta pepita?

O velho, que não era tonto, desconversou:

—Ara, seu Ivo, fais tanto tempo que tenho essa pedrinha, que nem me alembro mais onde foi que eu achei.

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Voltaram, pai e filho, para a fazenda.

— Oia, meu fio, num faiz nada, purinquanto. Vamo pensá direitinho cumo é que a gente vai aparecê cum esse ouro. Quando a noticia corrê que ocê achou ouro na pedreira, vai sê uma confusão por aqui. Amanhã, nois dois vamo na pedreira.

No dia seguinte, antes de sair como pai, Marianinha olhou para o marido e exclamou:

— Cruz, Crésio, cumo ce ta marelo. Será que pegou maleita?

— Ara muié, deixa de besteira, num tou sintindo nada. Maleita dá tremura, dá febre. Tenho nada não.

E foram os dois na direção da pedreira. Prevenido, o pai levava um embornal dependurado ao ombro.

O velho Quinca ficou bestificado com o que viu: no centro da grande área aplainada para a manobra dos caminhões que antigamente buscavam pedras, um circulo de uns 5 metros de diâmetro estava forrado de pedras amarelas.

— Virge Maria! Isso tudo é ouro?

Os dois se aproximaram e começaram a catar as pedrinhas. Clesio colocava nos bolsos da calça e o pai enchia o embornal.

— Pelo peso, é ouro sim, disse o velho, quando o embornal já estava pela metade. Vam’bóra, por hoje chega.

Ao chegarem, o almoço já estava pronto. Quando se sentaram nos banquinhos, Clésio encostou-se na parede e disse:

— Tou numa canseira danada. Acho que hoje nun guento trabaiá, não.

Marianinha espantou-se com a aparência do marido:

— Mais CE ta amarelo qui nem safrão!

Seu Quinca também olhou pro filho:

— É memo, meu fio! Deve ta com amarelão ou com itirícia.

E dirigindo-se à Marianinha:

— Faiz um chá de picão que é bom pra itirícia.

Antes mesmo que a mulher saísse para catar uns pés de picão, que abundava ao redor da casinha, Clésio caiu do banquinho, esparramando-se pelo chão.

— Virge Nossa Senhora! Vamo levá ele prá cama.

Quando deitaram o desmaiado, o pai olhou para as mãos do filho.

— Oia só que coisa! As unha dele tão brilhando que nem as pedrinhas.

Seu Quinca esqueceu-se das pedras. Saiu em seguida, dizendo à nora:

— Vou buscar Nhá Bina. Ela é raizera, conhece de tudo quanto é erva. Móde saber o que Crésio tem.

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Deitado na cama, Clésio permanecia desmaiado. Deu sinal de vida quando Marianinha passou um pano molhado pela testa e rosto.

—Ai, que dor no corpo. Parece que levei uma surra. Num posso nem mexer.

A mulher tentou sentá-lo, mas ele gritou de dor.

—Nossa, seu corpo ta duro.

Crésio tentou movimentar os dedos, a mão, mas sentiu que estavam ficando duros. E sentia dores a cada tentativa. Ficou quieto.

Quando, quatro o cinco horas depois, já anoitecendo, chegou Nhá Bina, com um grande embornal de ervas e objetos só por ela conhecidos, a rigidez do corpo de Crésio era quase total. Conseguia abrir um pouco a boca, murmurando coisas incompreensíveis. As pálpebras também se mantinham entreabertas, quase fechadas sobre os olhos. A respiração era curta.

— Parece que é ictirícia. Já deu chá de picão?

— Já faiz um par de horas. Mas agora ele nem consegue mais engulir.

A velha Nhá Bina observou que o amarelo estava intenso, como ela jamais vira antes. As unhas dos dedos das mãos, os cabelos e a barba rala brilhavam intensamente. A pele também ia se tornando brilhante, principalmente a testa. Mesmo à parca luz da lamparina, podia-se confundir cabelos, barbas e unhas com o dourado das pedrinhas colhidas de manhã.

Mas a velha não sabia — e jamais soube da história das pedras de ouro do arco-íris, pois o velho Quinca proibiu a nora de falar qualquer coisa sobre o achado.

Crésio morreu – ou melhor, enrijeceu totalmente naquela madrugada, ante o pai, a esposa e a raizeira, todos estupefatos. Pois quando não notaram mais sinais de vida no corpo de Clésio, este estava completamente rígido, as partes visíveis douradas como se de ouro fossem.

— Não consigo levantar ele, disse o pai, quanto tentou abraçar o filho imóvel. Tá pesado demais...

Nem as três pessoas ali conseguiram. Pesava tanto o corpo como se fosse de metal. Quando desabotoou a camisa, o corpo inteiro era dourado. Horrorizado, o velho Quinca falou entre os dentes:

—Ele virou uma image de ouro!

Na impossibilidade de movimentar o corpo, pelo peso incalculável — mais de vinte arrobas, pensou o pai ¬— tiveram que pedir ajuda ao dono da fazenda, Seu Gervásio. Já amanhecia quando ele chegou à casa modesta e viu o corpo.

— Mas é uma estátua... DE OURO!

— Nois num sabemo cumo é que foi acontecê...

Homem acostumado a tomar decisões, Gervásio falou:

— Não dá prá levar pra cidade e fazer enterro normal. Melhor a gente escolher um canto aqui por perto e enterrar ele aqui mesmo.

O pai e a esposa acenaram com a cabeça, afirmativamente. A dor e o espanto haviam tolhido as palavras.

— Vou mandar o Serapião e o Tonho fazer uma cova debaixo do sassafrás, aonde ninguém vai, é um lugar muito ermo.

E assim foi. Levaram o corpo enrolado em lençóis, para que ninguém mais visse Crésio transformado em ouro. E entre as pás de terra que eram lançadas sobre o corpo, Quinca Retireiro jogou os embornais com as pedras.

Maldito ouro! Num quero saber disso, é coisa do Diabo.

Depois do sepultamento, o fazendeiro convidou o retireiro para sua casa, dizendo:

—O senhor tá muito abatido, seu Quinca. Vamo lá prá dentro, conversá um pouco.

O esperto proprietário iniciou a conversa e dentro em pouco pediu à Malvina, empregada, que trouxesse uma garrafa de licor e outra de cachaça, “... que é pra gente conversá melhor, sem medo de falar a verdade”.

Ante a simpatia do patrão, e depois de umas tantas doses de bebida, Quinca acabou por falar nas pedrinhas de ouro, na pedreira, enfim, no segredo que pretendia levar para o túmulo.

— Pode ficar sossegado, seu Quinca, que essa conversa morre aqui. Não vou falar com ninguém, isto é coisa para não se mexer. — disse, batendo afavelmente no ombro do empregado, que mal se aguentava nas pernas.

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Contudo, naquela mesma tarde, Gervásio mandou arriar seu alazão e, desviando caminho, para não ser percebido, dirigiu-se à pedreira.

Seriam umas quatro da tarde, o sol ainda iluminava o mundo com raios quentes e brilhantes, quando Gervásio se assomou á beira da pedreira. Nada viu de diferente. Fez a montaria descer pela trilha forrada de calhaus, e chegou até a beira do poço.

Que coisa! Aqui não tem nada do que o Quinca falou! Só lascas de pedras.

O alazão assustou-se com algo invisível, deu um pinote e lançou ao Gervásio ao chão. Batendo com a cabeça sobre uma pedra de quinas vivas, o fazendeiro teve por momentos a mesma visão que teve Crésio: o chão forrado de pedrinhas de ouro. Um brilho intenso que, originando-se do chão da pedreira, elevava-se até o céu, fundindo-se com a luz do sol.

— É ouro! O Ouro do Arco-Íris.

E exalou seu último suspiro.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 16 de março de 2014

Conto # 831 da Série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 29/06/2015
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