Coisas assim ela achava

As mais fáceis e as mais difíceis de todas. Ela era uma pianista virtuosa que nunca tocou no marfim, porque violentamente atacaria seu piano por este não atender com precisão à sua personalidade meticulosamente justa e alinhada ao equilíbrio do cosmos. Nunca transpareceu cálculo ou intenção. O grito grave e agudo dela e do piano ecoou até a curva final de tudo e ficou gravado em um filme silencioso. Esse ataque melódico não destruiu o piano estupendo e nada tirou dela. Ocorreu um concerto que ultrapassaria fronteiras físicas e temporais conhecidas, imaginadas ou não. Ela pensava que uma artista, quando contrariada, deveria responder com genialidade às adversidades.

Onisciente de que aquela mulher era genial, o universo respondeu com duas chaves. Dependendo de qual ela escolhesse, a mensagem seria ou não, a existência da mensagem dependeria desse ato inicial. Ela a encontrou mas naquele momento não teve como entender, porque não estava escrita. Pensou: “não ficarei eternamente sem entender”. Sentiu então uma vibração estranhamente peculiar. Onde estava, afinal de contas?

Também não importava qual chave a artista escolhesse. Isso não iria dizer ou indicar algo sobre sua verdadeira personalidade e não iria fazer diferença nenhuma. Não lhe importava a persona. O que ela sempre dizia era algo assim: “vocês é que são as pessoas que brincam com seus tribunais de bolso e literalmente se divertem julgando tudo”. “Vocês” é ninguém em especial e também é você, literalmente, para colocar as coisas em termos óbvios. Ela sempre se dirigia ao mundo quando falava, independentemente de com quem estivesse conversando.

Sem saber, foi ainda protagopianista de uma ilusão construída com combinações de palavras. Visão e ficção eram limitadas onde ela estava. Os habitantes desse lugar pitoresco são relativamente incapazes de perceber e conceber a complexa relação entre infinitas variáveis presentes mesmo em mistérios simples, que acontecem em fendas temporais curtíssimas. Ela é, mesmo se esforçando ao máximo, obviamente incapaz de incorporar à sua própria natureza a dimensão temporal flexível da ficção, sua sensibilidade existe porque percebe a beleza da visão integral, que está na possibilidade de inventar, distorcer e transformar qualquer coisa ou ideia naquele e em quantos universos o criador/inventor/qualquer pessoa quiser. Veementemente pode-se afirmar que ela não era extraordinariamente diferente de nada ou ninguém, ao mesmo tempo em que era sim, de uma maneira absolutamente brilhante.

Palavras poderiam ser escolhidas obstinadamente como alguém em paranoia faria escolhendo feijão atentamente, um grão por vez. Quando ela compunha e fazia bruxaria com seus ritmos, selecionar campos harmônicos e melodias mágicas não bastava, foi preciso posicionar, medir, meditar sobre a precisa intenção de cada som, pois não apenas nos universos dos neurônios encontrar a sequência mágica é preciso.

Para salvar o mundo, por exemplo, uma vez ela respondeu, quando perguntaram sobre o futuro: “perceba você que a forma como a nova era se revela é necessariamente como alternativa - a outra possibilidade seria a de que era nenhuma acontecesse”. Então foi que um bloco maciço se desprendeu de um guincho se arrebentando no chão de concreto, com um som forte, massivo e desorientador. Obviamente foi uma confirmação. Aqui não se fala em mágica porque é mais fácil lidar com aqueles que não a compreendem dessa maneira. Foram dados detalhes suficientes.

Então, o que realmente interessa é que o futuro se apresentou para ela em uma visão, um símbolo que parecia uma sobreposição parcial de duas letras posicionadas de modo que vagamente recordava o sinal de somatória espelhado. Uma delas está invertida como se fosse refletida por um espelho cujo efeito de inverter a imagem parece não atingir o primeiro signo, que remete aos conservatórios pelos quais ela passou. “Eles se pareciam com o mundo?”

A questão é que metade de uma visão é a visão em si e a outra metade é a interpretação. Nesse caso, por um tempo se pensou que a ciência naturalmente seria quem melhor poderia descrever com o quê se parece o mundo. Uma verdadeira pessoa da ciência seria capaz de criar e inventar laboratórios satisfatórios à sua prática em qualquer lugar. O laboratório está na mente do cientista e está, portanto, em qualquer lugar. Temos cientistas e música em nosso inconsciente coletivo. Tudo, objetos sujos, desenhos obscenos rabiscados em sulfites aleatórios enterrados pela lama, os berços, as flores, os discos de vinil e os escorregadores dos parques vieram do mesmo lugar que isto aqui, eu, nós e você.

Foi tendo esses pensamentos que ela, heroína que involuntariamente ostenta esse título revolucionou a ciência quando passou a pregar que o que realmente interessava estava fora do campo científico e não o negava, apropriava-se dele como quisesse, com ou sem o aval da própria ciência. Criativa. Anônima.

O único registro audiovisual dela era um trecho de uma entrevista em que dizia: “A expressão cultural é a transformação da criatividade coletiva em um ato, uma arte intencional que contribui para esse desenvolvimento [das criações artísticas individuais e coletivas universalmente]. Quando crio me embebedo da maleabilidade que o universo sonoro imaginado permite. Em qualquer arte tudo pode mudar de dimensão e formato, porque tudo existe no mesmo plano, o imaginário humano. A liberdade à qual cada ser humano tem direito deve permitir a cada pessoa a possibilidade de desenvolver em sua imaginação quantos universos quiser”.

Ela achava coisas assim. Todos teriam gostado de conhecê-la e respeitá-la.

Um incêndio no acervo bibliofonofilmográfico responsável pela manutenção de seu legado destruiu para sempre o registro daquele e de outros milhares de momentos, porém.

São Carlos, 11/06/2015

Luiz Gustavo Silva
Enviado por Luiz Gustavo Silva em 11/06/2015
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