O desabafo de Dom Camilo
O DESABAFO DE DOM CAMILO
Miguel Carqueija
Naquela noite, esgotado mais moral que fisicamente, Dom Camilo aproximou-se do grande crucifixo na parede, em seus aposentos, e por alguns minutos nada falou, como se lhe custasse dizer qualquer coisa.
Por fim foi o próprio Cristo que rompeu o silêncio:
— O que houve, Dom Camilo? Você perdeu a fala?
— O Senhor sabe que não; mas as palavras que hoje eu tenho são tão amargas que hesito em pronunciá-las.
— O que você tem de tão amargo em seu coração, hoje?
— O desânimo, Senhor. Desânimo de ver, no crepúsculo da minha vida, a desagregação dos valores, de todos os valores nos quais acreditei e por toda essa vida.
— A desagregação dos valores? Nada me dói mais do que isso, Dom Camilo. Mas não esqueça aquilo que, há dois mil anos, eu mesmo afirmei aos meus apóstolos: “As portas do inferno não prevalecerão”.
— Sei disso, Senhor. Quando chegar o Dia do Juízo Final, elas não prevalecerão. Mas enquanto isso, neste mundo , estão prevalecendo.
— O Papado está de pe; a Igreja está de pé; os santos ainda existem.
— Senhor, a maior parte das pessoas perdeu a santidade de vista e até zomba dela.
— Continua fazendo a tua parte, Dom Camilo. Lembra da fábula do passarinho que, ao ver a floresta pegar fogo, pôs-se a voar entre o rio e o incêndio, pegando água no bico e jogando-a nas chamas. Quando disseram ao pobrezinho que, sozinho, jamais poderia apagar o incêndio, ele respondeu sabiamente: “Estou fazendo a minha parte. Que cada um faça a sua.”
Dom Camilo pensou um pouco antes de responder:
— Senhor, e eu não tenho feito a minha parte? E aqui, em Reggio, ainda sou forçado a bater de frente com esse prefeito vermelho.
— Pois é, Dom Camilo. Peppone seria bem pior sem a sua benéfica influência. Pense bem em tudo isso e durma com a consciência em paz.
O Crucificado silenciou. O velho sacerdote fez o sinal-da-cruz e retirou-se bastante apaziguado.
NOTA: Dom Camilo, pároco de pequena cidade italiana do Vale do Pó, é personagem fictício criado em livros pelo escritor Giovanni Guareschi (1908-1968), em 1950. Sempre às turras com o prefeito comunista, Dom Camilo conversa com Jesus por meio de seu crucifixo. Livros: “Dom Camilo e seu pequeno mundo”, “A volta de Dom Camilo”, “O camarada Dom Camilo” e “Dom Camilo e os cabeludos”, entre outros.
Apareceu em filmes e em seriados de televisão, inclusive no Brasil. No cinema foi vivido pelo ator francês Fernandel e pelo italiano Terence Hill; no Brasil, na televisão, por Otelo Zeloni.
imagem de Fernandel como Dom Camilo
O DESABAFO DE DOM CAMILO
Miguel Carqueija
Naquela noite, esgotado mais moral que fisicamente, Dom Camilo aproximou-se do grande crucifixo na parede, em seus aposentos, e por alguns minutos nada falou, como se lhe custasse dizer qualquer coisa.
Por fim foi o próprio Cristo que rompeu o silêncio:
— O que houve, Dom Camilo? Você perdeu a fala?
— O Senhor sabe que não; mas as palavras que hoje eu tenho são tão amargas que hesito em pronunciá-las.
— O que você tem de tão amargo em seu coração, hoje?
— O desânimo, Senhor. Desânimo de ver, no crepúsculo da minha vida, a desagregação dos valores, de todos os valores nos quais acreditei e por toda essa vida.
— A desagregação dos valores? Nada me dói mais do que isso, Dom Camilo. Mas não esqueça aquilo que, há dois mil anos, eu mesmo afirmei aos meus apóstolos: “As portas do inferno não prevalecerão”.
— Sei disso, Senhor. Quando chegar o Dia do Juízo Final, elas não prevalecerão. Mas enquanto isso, neste mundo , estão prevalecendo.
— O Papado está de pe; a Igreja está de pé; os santos ainda existem.
— Senhor, a maior parte das pessoas perdeu a santidade de vista e até zomba dela.
— Continua fazendo a tua parte, Dom Camilo. Lembra da fábula do passarinho que, ao ver a floresta pegar fogo, pôs-se a voar entre o rio e o incêndio, pegando água no bico e jogando-a nas chamas. Quando disseram ao pobrezinho que, sozinho, jamais poderia apagar o incêndio, ele respondeu sabiamente: “Estou fazendo a minha parte. Que cada um faça a sua.”
Dom Camilo pensou um pouco antes de responder:
— Senhor, e eu não tenho feito a minha parte? E aqui, em Reggio, ainda sou forçado a bater de frente com esse prefeito vermelho.
— Pois é, Dom Camilo. Peppone seria bem pior sem a sua benéfica influência. Pense bem em tudo isso e durma com a consciência em paz.
O Crucificado silenciou. O velho sacerdote fez o sinal-da-cruz e retirou-se bastante apaziguado.
NOTA: Dom Camilo, pároco de pequena cidade italiana do Vale do Pó, é personagem fictício criado em livros pelo escritor Giovanni Guareschi (1908-1968), em 1950. Sempre às turras com o prefeito comunista, Dom Camilo conversa com Jesus por meio de seu crucifixo. Livros: “Dom Camilo e seu pequeno mundo”, “A volta de Dom Camilo”, “O camarada Dom Camilo” e “Dom Camilo e os cabeludos”, entre outros.
Apareceu em filmes e em seriados de televisão, inclusive no Brasil. No cinema foi vivido pelo ator francês Fernandel e pelo italiano Terence Hill; no Brasil, na televisão, por Otelo Zeloni.
imagem de Fernandel como Dom Camilo