A visitante

A VISITANTE
Miguel Carqueija

— Vivian, espere!
A menina, porém, corria em meio a uma névoa cinzenta que se tornava mais e mais espessa. Dulce tentava correr mas sentia-se estranhamente tolhida. A menina ainda olhou para trás, sorriu para ela... e sumiu-se em meio à névoa.
— Vivian! — gritou Dulce, desesperada. Correu o mais que pôde, queria ultrapassar aquela neblina, localizar a sua filha, mas já não conseguia avistá-la.
Dulce acordou sobressaltada, com a fronha banhada por suas lágrimas.

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A jovem terminou por se levantar e saiu para o corredor, indo até o quarto de Vivian — o quarto mantido como um santuário. Caminhou em volta da cama da menina, coberta com um lençol cor-de-rosa. Sentou-se numa cadeira e olhou em volta, observando móveis e objetos familiares. Brinquedos deixados sobre a cômoda...
— Herman... — murmurou ela, e as lágrimas retornaram, abundantes.
Passaram-se alguns minutos. Então, num intervalo entre os soluços, ela julgou ouvir a campainha. Achou que tinha se enganado, que estava ouvindo coisas, dado o seu estado de perturbação. “Deus, quantas lágrimas já derramei? Será verdade que os anjos enchem baldes com as lágrimas das mães?”
A campainha tocou de novo, agora inequívoca. Espantada, Dulce ergueu-se e saiu para o corredor, movendo com rapidez os pés descalços. Chegando à sala, tratou de espiar pelo olho mágico. Já era tarde para visitas e o porteiro nada avisara. Portanto, quem poderia ser?
Avistou uma menina. Uma criança loura com ares de dez anos, aproximadamente. A idade de Vivian...
Dulce abriu a porta. A garota vestia um costume sóbrio, com saia e blusa discretas e um chapeuzinho, além de sapatos e meias e uma bolsa. Era roupa de andar na rua.
— Que foi? — indagou Dulce. Não conhecia a garota.
– Desculpe, acordei você?
Deus, ela parecia um pouco com Vivian, tinha a mesma altura e até a voz era semelhante!
— Não, que nada, eu estava acordada...
— Eu também não consigo dormir. Será que eu posso ficar aqui um pouco?
— Como assim? E os seus pais?
— Eles não estão. Eu estou muito sozinha, assim como você. Por que você está sozinha, não está?
Dulce sentiu a estranheza de tudo aquilo. Olhando bem a menina, os seus olhos azuis, sentiu-se como atraída por um vórtice... sacudiu a cabeça, tentando raciocinar com objetividade.
— Ei, ei! Você está bem?
— Hein? Eu estou, sim. Mas onde vocês moram?
— Lá no 406, tem pouco tempo.
Aquele apartamento — assim pensava Dulce — estava vazio há meses. Não soubera de nenhuma mudança.
— Pode me mostrar seu apartamento?
— É claro. Vem comigo.
Ela pegou Dulce pelo pulso esquerdo e a conduziu pelo corredor. Aí pegou uma chave da bolsa, abiu o apartamento e puxou a moça para dentro, acendendo primeiro a luz da sala de entrada. Era um apartamento bem mobilado, e Dulce ficou admirada.
— Bem, qual é o seu nome?
— Me chamo Clara. Bem, eu posso ficar no seu apartamento?
— Eu não sei...
— Isso quer dizer sim. Vem, Dulce!
Pegou outra vez a moça pelo braço e a foi levando; fechou a porta do 406 e prosseguiu em direção ao 414.
Dulce, cada vez mais estupefata, lembrou-se de indagar:
— Como é que você sabe o meu nome?
— Devo ter ouvido alguém dizer.
Clara não parecia muito interessada em explicar tudo. Uma sensação de irrealidade começou a envolver Dulce. Estaria de fato acordada? Aquela insólita menina era real?
Vendo-se de volta ao seu apartamento, Dulce lembrou-se de ser hospitaleira:
— Clara, você quer fazer um lanche comigo?
— Sim, eu gostaria muito, Dulce.
Deus, como parecia com Vivian! Mas não, era outra menina, mas podia ser sua irmã, um pouco mais velha, talvez. Cada vez mais perplexa Dulce lembrou-se que, logo antes da Vivian, perdera uma gravidez. Uma menina...
“Que na verdade existe, sua alma já existia naquele corpinho em meu ventre. E agora ela e Vivian devem ter se conhecido...”
— Dulce!
A moça sacudiu a cabeça, alisou os cabelos soltos sobre os ombros.
— Você está sentindo alguma coisa?
— Não, não...
— Não diga isso. Você chorou muito. Os seus olhos estão vermelhos de tanto chorar.
— Clara...
A menina abraçou-se a ela, com ternura.
— Não precisa me falar nada agora, fale quando quiser.
— Está bem. Vamos lá na copa?
— Dulce, se eu vou ficar aqui, posso tirar os sapatos?
— Sim, sim, mas é claro. Vem cá.
Levou a menina ao quarto de Vivian.
— Coloque os sapatos e as meias em qualquer canto. E a bolsa também.
A menina colocu a bolsa em cima da cama e o resto embaixo, depois voltou-se, muito séria, para Dulce:
— Aqui é o quarto dela, não é? Da menina que não está mais aqui?
Dulce ia soltar as lágrimas represadas, porém Clara abraçou-a com força:
— Seja forte, Dulce. Eu estou aqui para consolá-la.
Dulce correspondeu ao abraço, não queria racionalizar, extrair a verdade da pequena visitante.
“Será que Deus enviou um anjo para me dar forças? Mas não, é um absurdo, e eu nem iria merecer uma graça dessas.”
Todavia, pensou, graça é uma coisa que Deus dá... de graça. O nome está dizendo. Seria possível?
— Obrigada, Clara. Agora vem comigo.
A pequena deu a mão a Dulce e caminharam para a copa, situada no lado oposto da porta de entrada. Um pensamento inquietou Dulce: introduzir em sua casa uma menina desconhecida de dez ou onze anos podia render-lhe uma acusação de pedofilia. Essa praga imunda aparecia em toda parte, assim uma intimidade maior com uma criança, ainda que de todo inocente, podia gerar mal-entendidos.
Mas já não podia pedir a Clara que se retirasse.

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Dulce animou-se um pouco ao preparar o lanche, incluindo fatias de melão, chá verde e bolo de milho. Também colocou bisnaguinhas e manteiga. A menina tinha bom apetite e não fez feio.
— Gostou do meu apartamento? — indagou Dulce enquanto comiam, mais para dizer alguma coisa. Clara respondeu, falando como gente grande:
— Ah, muito. Você é muito zelosa, Dulce.
— Você acha? Sim, eu gosto de arrumação e limpeza. Tem uma moça que vem aqui uma vez por semana e faz uma boa faxina. Eu trabalho fora, e isso me alivia muito.
— Onde é que você trabalha? — perguntou a visitante, enquanto passava manteiga no pão.
— Numa firma de engenharia, mas sou só uma escriturária.
— Não diga “só”. Todo trabalho é importante.
— Sim, eu sei... — Dulce estava espantada com a maturidade da garota.
— Mas você anda deprimida, não é? Eu posso saber por que?
— Perdi minha filha e meu marido recentemente, num desastre de trânsito. O golpe foi muito rude, eu ainda não me recuperei.
— Vai se recuperar, Dulce. Eu vou te ajudar.
Dulce pensou em rir. Que poderia fazer aquela criança para ajudá-la? No entanto, de algum modo já se sentia melhor.
Clara ajudou-a a lavar a roupa e se mostrou muito prestativa. Depois Dulce levou-a ao quarto de Vivian:
— Posso te emprestar um pijama dela, se não se importar de usar roupa de quem já morreu...
— Seria uma honra para mim, Dulce...
— E você tem medo do escuro? Se tiver pode até dormir na minha cama, que é de casal...
Clara sorriu:
— Não tenho medo nenhum do escuro e me agradaria, sim, dormir no quarto da Vivian. Está tão bem conservado! Mas acho que você está se sentindo muito só, por isso vou ficar na sua cama essa noite.
A moça sentiu-se agradecida por isso.
— Está bem. Vamos rezar um pouco e deitar? Já está bem tarde.

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Contos de fadas podem acontecer na vida real? Para Dulce isso era impossível, no entanto agora ela parecia viver uma vida irreal. Foi assim no dia seguinte, quando despertou e não viu a garota, mas encontrou-a na copa, já preparando o desjejum.
— Olá! Quero poupar-lhe um pouco de trabalho.
— Mas que habilidade! — surpresa, Dulce constatou que a menina preparara duas “mini-pizzas”.
Sentaram-se uma em frente da outra e, enquanto comia muito compenetrada, a menina perguntou:
— Você sonhou com ela esta noite?
— Com Vivian? Sim, sonho quase todas as noites, mas... ela parecia mais feliz desta vez.
— Deve estar. Você já não está deprimida.
— Não? Bem, não sei, eu sou tão fraca...
— Não pense uma coisa dessas, Dulce. Você pode fazer tanta coisa importante na vida! Por que não adota uma criança? Não ficaria tão só...
Dulce talvez achasse atrevimento se outra pessoa lhe desse tal sugestão; mas aceitou que Clare o fizesse.
— A idéia em si é muito boa. Mas a responsabilidade é muito grande...
— Ora, você é muito responsável.
— Tenho que ir trabalhar daqui a pouco... — desconversou a jovem.
— E eu vou ter que ir. Deixa eu te ajudar a lavar a roupa, tomar um banho, mudar de roupa, e eu me despeço.

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A garota foi lépida e, minutos depois, já se despedia. Deu um beijo sonoro em Dulce e abraçou-a.
— Você ficará bem? — perguntou a anfitriã.
— É claro que sim, mas posso voltar essa noite?
— É claro que sim — disse uma Dulce sorridente, repetindo a mesma frase da menina.
A pequena visitante deu um chau e se foi rapidamente, até dobrar a esquina do corredor.
Ao descer, Dulce perguntou ao porteiro de plantão:
— Sebastião, quem é que está morando no 406?
A pergunta mereceu uma resposta admiradíssima:
— Está brincando, dona Dulce? O apartamento está vazio!
— Como vazio? Você tem certeza?
— Ah, mas é claro! Está em inventário, tem uma briga feia em família, pelo que me disseram isso vai se arrastar durante anos!
Dulce quase revelou que estivera naquele apartamento e vira os móveis, que uma menina desconhecida dissera morar nele. Mas engoliu tudo aquilo e teve a idéia de propor:
— Será que você podia me mostrar o local?
— Mas isso eu não posso...
— Não mesmo? Se está em inventário provavelmente vão resolver vender, e pode me interessar. Se eu tiver já uma idéia de como é por dentro já estarei na frente, não é? Olha, eu não conto para ninguém.
O bigodudo porteiro, meio constrangido, acabou por entregar a chave à solicitante mas pediu encarecidamente:
— Mas por favor, Dona Dulce, não conte a ninguém e me traga logo a chave...
— É claro que não conto a ninguém e volto logo. Afinal, não quero chegar atrasada no trabalho! Num instante eu volto!
A sensação de que o mundo se tornara irreal cresceu gigantescamente no coração da moça. Ao penetrar pela segunda vez, e agora sozinha, naquele apartamento, encontrou-o vazio, exceto uma ou outra cadeira esquecida ou deixada. Era evidente que aquele imóvel achava-se vazio; mas a sua memória gritava em seu espírito que na véspera estivera lá com aquela menina, que pisara descalça aquele assoalho, que vira estantes, mesas, sofás, uma geladeira, um fogão, tudo enfim que normalmente se vê em apartamentos habitados.
Fechou a porta e chamou o elevador. Só então passaram vizinhos que, felizmente, não a viram sair do 406. Desceu, devolveu a chave e ganhou a rua.
“Clara tinha uma chave, mas isso tudo é loucura. Quem removeu os móveis?”
Teria penetrado numa outra dimensão, como Alice ao entrar no País do Espelho?
Deveria ficar assustada, apavorada mesmo; mas Clara trouxera-lhe tranquilidade, transmitira-lhe paz.

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Quando chegou a noite, não se surpreendeu muito quando a campainha tocou. Ao abrir, após conferir pelo olho mágico, deparou-se com Clara, que vestia da mesma forma que na véspera. Nesta segunda visita ela foi mais efusiva, abraçando e beijando a dona de casa.
— Então, Dulce, posso entrar hoje?
Dulce, porém, hesitou em responder e ficou olhando a misteriosa visitante infantil.
— Oi, Dulce, acorda! — disse Clara, sorridente.
Dulce sacudiu o rosto, passou a mão sobre os olhos e afinal perguntou:
— Clara... diga uma coisa... você é real?
A criança riu alegremente.
— Ora essa, é claro que sim! Ontem mesmo eu não comi tudo o que você me apresentou? Por que pergunta isso?
— Por nada, querida. Esquece, por favor. Entra.





(imagem pixbay)