ANOS OITENTA - SEGUNDO TEXTO - ACABOU CHORARE

Não, eu não vou reclamar de nada. Eu era muito novo naquele inicio do ano de 1972, recém havia completado dezessete anos. Acontece, porém, que eu estava apaixonado e um jovem apaixonado se perde facilmente no mundo de fantasias que cria e no qual existia apenas a linda moça dos longos cabelos negros, dos olhos miúdos e dona da voz que calava as outras sereias. Sim, eu era novo, mas era sonhador e determinado de um tanto que não me incomodei quando ela me apresentou o cabeludo que chamou de amigo. Simpático ao extremo, Pepeu apertou com força a minha mão e sem querer acabou ferindo o meu dedo anelar. Quando ela me convidou para ir morar no sítio de Jacarepaguá, sorri feito o menino que eu era já convencido que o meu caminho seria o mesmo pelo qual Bernadete seguisse. No fim daquele dia, ela me ofereceu um baseado. Fiquei com medo na hora, mas acabei cedendo e traguei levemente a bagana. Ela riu da minha falta de jeito e alongou as pernas, deixando escapar, pela fresta do vestido branco, a coxa roliça que paralisou meu olhar: “fume mais um pouco. – abriu um leve sorriso e os olhos miúdos brilharam - Você pode fazer tudo, desde que possua e não seja possuído, entende?” e me passou de novo a bagana que dessa vez traguei com gosto e logo depois cai numa risada desenfreada, mergulhando meus dedos num copo de cerveja. Enquanto Pepeu dedilhava com total desenvoltura as cordas do violão, perdi um longo tempo imaginando como faria para o meu cabelo crescer como o dele, ser brilhoso do mesmo tanto e a cara que eu faria quando fosse assoprar as mechas que certamente dançariam na minha testa. E o mundo se calava por instantes quando Bernadete resolvia cantar. Ela começava fechando os olhos e logo depois parecia adentrar num outro mundo, gemendo de mansinho, balançando a cabeça, fazendo a dança dos cabelos e eu me via completamente perdido de paixão. Cantou “A rosa e o espinho” de um jeito diferente, só dela, e me perdi num mundo só meu e de Bernadete, que no final deslizou pelo chão até os meus braços e adormeceu fazendo carinho na minha mão fedida de cerveja. Não sei quanto tempo passei junto dela, mas até hoje, quando penso, imagino a eternidade sob as luzes do campo, perseguido pela sombra do rapaz que tocava guitarra para a moça dos cabelos negros cantar e dançar. Eu ignorava completamente os outros cabeludos que moravam junto dela no sítio de Jacarepaguá. Apenas Pepeu merecia minha atenção, talvez porque era exatamente o único que prestava atenção em mim e que, sem perceber minha paixão pela mesma moça, confessou, num cair de noite, depois de duas tragadas seguidas no baseado que eu havia recém terminado de fazer, a fina dor do lado esquerdo do peito que aos poucos lhe consumia sempre que seus grandes olhos cruzavam com os miúdos olhos de Bernadete. Eu não queria admitir, mas era perceptível que ele era correspondido enquanto eu, ah, pobre de mim, era apenas uma das tantas pessoas que ela devotava carinho. No madrugada que fui embora, meus passos finos e o jeito cuidadoso com que desviei dos entulhos perto da porta, não foram suficiente para que escapasse despercebido. Paulinho olhou para mim no seu jeito desconfiado e cutucou Luiz Galvão que cochilava ao seu lado. Luiz era o mais avoado, parecia sempre flutuar, como se tivesse uma nuvem permanente sob seus pés. Coçou os olhos antes de me perguntar:

“- Aonde você vai, guri?”

E eu respondi com a boca ainda grudada de saliva da noite mal dormida.

- Vou-me embora, acabou chorare.

E Moraes se ergueu atrás dele:

“- O que você disse?”

Estava com a cabeça zonza e não consegui repetir a frase. Um senhor magricelo que passou a noite tocando violão e cantando com os cabeludos, envoltos numa densa nuvem da fumaça do que chamou canabis, apanhou as chaves do carro num canto e ordenou:

- Venha, estou indo para o centro e vou lhe dar carona.

Obedeci sem questionar. O homem magricelo tinha no timbre da voz uma espécie de ordenança, o que dizia se transformava numa ordem inegociável. No caminho, o homem, que se chamava João e era famoso, foi me contando algumas histórias e rindo a cada tropeço meu, que concordava antes que finalizasse a pergunta, coberto pela falta de resposta, ora e vez coçando os olhos que ardiam, estranhando cada vez mais o seu jeito um tanto intimista, como se eu fosse uma espécie de velho conhecido. Pisava destemido no acelerador e falava ao mesmo tempo, mantendo o rosto virado na minha direção, encolhido no banco do carro, apavorado ao perceber que ele avançava em todos os faróis fechados, sem se importar para o meu rosto de espanto, que aumentou consideravelmente quando ele freou abruptamente o carro diante do único sinal verde do caminho, no exato instante que à nossa frente cruzou um caminhão em alta velocidade. Respirei fundo, ajeitei o corpo e limpei da testa, com as costas das mãos, o suor que escorria. Só então olhei para o seu Gilberto e vi diante de mim uma espécie de anjo. Não havia outra explicação para aquele sorriso aberto, como se soubesse exatamente o que iria acontecer. Os dedos finos, que tocava violão como ninguém, engatou a marcha para frente e pisou novamente no acelerador, calmo dessa vez e eu fiquei admirado quando ele começou a assoviar as mesmas canções que desafinava ao cantar, sem se importar com que pensavam as outras pessoas. Seu rosto enigmático se abriu num sorriso quando me despedi, batendo devagar a porta do carro e baixando a cabeça, na forma do insignificante ser diante de uma divindade. Ele riu levemente antes das últimas palavras que guardei para sempre na memória.

- Bernadete logo se chamará Baby e todo mundo ouvirá a sua voz. Não fique triste, nem desiludido, ela não é de ninguém, é de todos.

E acenou com os dedos tocando na testa e aos poucos foi sumindo na curva da estrada.

Nunca mais voltei ao sítio de Jacarepaguá. Deixei que o tempo apagasse a desilusão. Só tempos depois, no começo dos anos oitenta, voltei a pensar em Bernadete, que agora se chamava Baby e cantava em todas as rádios algo bem próximo das palavras que certa vez assoprou nos meus ouvidos, provocando calafrios: “Você pode fazer quase tudo, contanto que você possua e não seja possuído.”