779-A RESSURREIÇÃO DE LULU DA FARMÁCIA

Lulu da Farmácia, registrado no cartório como Luiz Fonseca, era um homem notável. Tanto por seu porte como por sua caridade e piedade. Alto, magro, empinado, elegante até. Albino, gostava de roupas brancas e resplandecia onde aparecia.

Dono da única farmácia de Serra Mansa praticava a caridade com intensidade: dava graciosamente os medicamentos a quem necessitava, além de participar da Conferência de São Vicente, organização de assistência às famílias pobres da pequena cidade.

Aos domingos, deixava a farmácia aos cuidados da mulher e do filho adolescente, e ia, com os confrades vicentinos, percorrer os locais onde famílias erguiam seus barracos, a fim de prover suas necessidades.

Por isso, era muito conhecido e muito estimado na cidade.

No dia da Páscoa assistia a missa especial celebrada pelo padre Ramon Panches, quando tombou ao chão. Foi levado pelo sacristão, ajudado por dois outros fiéis, para a sacristia, onde o colocaram deitado sobre três cadeiras improvisadas em leito.

O padre continuou nos finalmente da missa pois já tinha dado a comunhão aos fieis com o “Ite, Missa Est”, muitos que estavam na igreja foram para a sacristia, que ficou superlotada. Permanecendo no altar, o padre mandou um coroinha falar para o povo desocupar a sacristia.

Inutilmente. O garoto entrou na sacristia, e voltou com um comentário:

— Acho que ele está morto, padre.

O pessoal que estava nas imediações do altar ouvindo apenas a parte final do recado— ...está morto.—saiu dali e a falsa notícia se espalhou pela cidade com fogo em rastilho de pólvora.

O desmaio de Lulu não foi muito longo. Doutor Matias, que morava na praça bem defronte à igreja, compareceu com presteza e com a fricção de álcool nos punhos e alguns sais de cheiro forte, reanimou Lulu.

O padre, que já havia despachado os curiosos quanto o médico chegou, fez com que Lulu permanecesse repousando na sacristia por uma boa meia hora. Tempo mais do que suficiente para que grande número de pessoas se dirigissem à casa onde morava Lulu, bem ao lado da farmácia, para receber o corpo e participar do velório, feito em casa naqueles tempos.

A multidão compacta sob o sol quase a pino em um céu muito azul ficou surpresa e muito se assustaram ao ver sair do carro de Licurgo chofer de praça, o próprio Lulu da Farmácia, branco como todo albino, alto, aprumado em terno de linho branco que gostava de usar para assistir missas solenes.

Talvez o sol causticante tivesse queimado alguns neurônios, talvez porque aquele domingo da Ressurreição fosse o ápice da Quaresma e da Semana Santa, e o espírito de devoção estivesse ainda acesso, enfim, seja lá por que motivo, começou uma gritaria histérica:

—Ele ressuscitou! Seu Lulu ressuscitou!

Muitos correram para além da rua, levantando poeira.

Lulu, ouvindo os gritos, sorriu constrangido e disse:

— Calma, pessoal! Num morri ainda não. Só tive um desmaio!

E estendeu as mãos, num sinal para que a multidão aquietasse e abrisse um caminho para que ele pudesse adentrar-se em sua própria casa. .

Mais confusos, os presentes confundiram o gesto como uma benção, e se ajoelharam. Alguns até tentaram beijar suas mãos.

Não foi fácil para Lulu entrar em seu quarto, fechar a porta e deitar-se, enquanto a esposa e Cândido, o filho, de quinze anos, impediam que a casa fosse invadida.

Afinal, houve a dispersão. Muitos não se convenceram de que Lulu da Farmácia não havia morrido, e disseminaram a crença na ressurreição de Lulu.

Para esses e muitos outros que não estavam na igreja nem na casa do farmacêutico, a ressurreição de Lulu da Farmácia era tão certa como fora a de Jesus. Nem mesmo a admoestação do padre Ramon, afirmando ser uma blasfêmia pretender que teria havido uma ressurreição na cidade,

A lenda criou raízes no imaginário popular. E se Lulu já era querido por sua bondade inata, passou a ser referido e venerado como homem santo.

O tempo foi e foi e Lulu da Farmácia, como todos os mortais, veio a falecer. Seu enterro foi um acontecimento na cidade e depois do enterro dezenas de pessoas permaneceram no cemitério, ao redor da tumba, rezando e invocando Lulu.

Não passou nem uma semana após o falecimento e enterro, começou a circular na cidade uma lista pedindo a beatificação de Luiz Fonseca, o bem querido Lulu da Farmácia.

Agora só resta esperar por alguns milagres.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 12 de abril de 2013

Conto # 779 da Série 1.OOO HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 29/04/2015
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