O VISITANTE
 
Era uma casinha pequenina, de madeira já descascada, alguns vidros quebrados, o quintal coberto de folhas secas, no telhado um enegrecido chafariz, soltando fumaça de manhã ou à tarde, sempre à hora da refeição.

A enegrecida chaminé expelia naquele momento uma escura fumaça que, depois de poluir a terra aqui em baixo, escurecia também o céu, que era de cor azul, mas agora eu o contemplava ofuscado, cheio de brumas, prestes a derramar suas águas do alto, ou seja, chover lágrimas de dor que vem de cima, como a escorrer dos olhos da lua e do sol, tapados pelas negras nuvens do verão, perdão, da poluição.

Na casinha morava uma senhora esquelética, de cabelos escorridos, nem brancos ou pretos, apenas grisalhos, oleosos e despenteados. Eu que a via pela primeira vez, achei que a veneranda senhora tivesse mais ou menos setenta e poucos anos de idade.

Em meu sonho (eu estava tendo um sonho nítido, desses que a gente dorme e sabe que está sonhando) eu vi um homem vir do outro lado da rua, tendo cabelos brancos como neve, aparentando ser mais idoso do que a velha anciã. Tive certeza que aquele ancião era eu amanhã e me senti feliz ao saber que me restava ainda um bom tempo pela frente até chegar àquela idade, tão cheio de disposição.

Era um final de tarde, quando todos estão voltando do trabalho. Ruas congestionadas, muito estresse, xingamentos e até acidentes de carro. Aquela velha mulher tentava atravessar a rua. Parada ali na calçada, um cego aproximou-se dela, com uma bengala na mão direita e com a esquerda puxando, melhor, sendo puxado por um cão labrador e foi logo entabulando conversa. Também ele precisava atravessar a via. O cego estendeu-lhe a mão e a senhora a segurou.

Guiado por um cachorro, que conduzia o cego e a velha nele abraçada, ambos pararam na calçada, do outro lado da rua, para o abraço da despedida. O cego, com seu cão fiel, seguiu seu caminho e se foi. A velha apartou-se do cego condutor, sem mesmo agradecer ao cachorro, o verdadeiro guia. Ao despedir-se, deu apenas um abraço no cego e continuou seu caminho a pé, naqueles passos titubeantes, até encontrar seu casebre, para ali novamente permanecer solitária e prisioneira de seu destino ingrato. Mal lembrava que enquanto cruzava a rua, tropeçara várias vezes, tendo sorte de estar ao lado de um cego guiado por um velho cão. Isso porque a Luz não escolhe a quem iluminar.

Orientada pelo cego ao cruzar a rua, (cego que conduz outro cego ambos caem no buraco, mas não foi o que aconteceu com o ceguinho e àquela senhora, graças ao cachorro) ela enfim chegou a sua casa e, ao que pude perceber, havia deixado o fogão de lenha com muita madeira pra queimar, mas tampouco se assustou ao não encontrar o seu barraco de madeira no maior fogaréu dos infernos. Botando as mãos magras nos utensílios, preparou rapidamente uma refeição cozinhando algumas couves com ovos mexidos e no instante que se preparava para comer, ouviu-se um estrondoso batido na porta.

Um sujeito queria ser atendido e insistentemente batia palmas. Um homem barbudo, cabelos esgadelhados, risonho, mostrando os dentes, sobressaindo os caninos, esperava ser atendido. Eu via tudo isso no auge do meu sonho de verão. A princípio pensei que fosse uma Testemunha de Jeová que de vez em quando achegam se diante de nosso portão com umas revistas e uma bíblia de capas verdes nas mãos. Só que já estava quase escurecendo e os jeovás só aparecem aos domingos de manhã para nos tirar da cama, anunciando um mundo melhor do que este que nos permite dormir até mais tarde em dias de folga.

Bem, aquele homem não era nenhum fanático religioso e sim um lobisomem (foi o que imaginei, pois era um misto de homem e lobo que eu via com afiadas garras arranharem as paredes, enquanto que com as costas das mãos martelava na porta do casebre) naquele final de tarde, já então escurecendo, procurando aprontar mais uma das suas.

Esse homem, o lobisomem, aguardou ser atendido, sem saber que a porta estava destrancada, ficou ali como uma estátua esperando que a boa senhora viesse atendê-lo, porém, como ela demorasse, o monstro arrombou o barraco e, com um largo sorriso, adentrou se atrevidamente.

Eu, que era o anjo da guarda da velha senhora (soube disso justamente naquele momento), aproximei-me depressa e dei um soco no queixo do intruso, de modo que ele caiu desmaiado no meio da sala, com a língua pendente e da boca escorrendo um filete de sangue e com os dentes à mostra, tal como um cachorro feroz, mas já fora de ação.

Eu deixei o visitante estirado no surrado tapete da sala, posto que desmaiado, cansado e sonolento, enquanto minha protegida preparava uma sopa quentinha e cheirosa, que era o seu jantar daquele dia, ou melhor, da noite que já se fizera.

Achei por bem ficar ao lado daquele homem cachorro, ou quem sabe lobsomem, pois que a qualquer momento ele poderia acordar e reagir como uma fera, sendo que meu dever era proteger aquela frágil senhora.

Eis que de repente ele acordou e se pôs a me inquirir, com seus uivos e ganidos, cobrando de mim satisfação de tudo o que aconteceu enquanto ele estava dormindo. Depois de nos cumprimentarmos, conversamos amistosamente e a velha senhora, que se dizia nossa mãe e nos chamava de filhos, garantiu que não via má intenção alguma em quem a visitava.

Observou-me, porém, a boa anciã, que eu era um corcunda, mas se fizesse uma peregrinação até a tumba de Padre Cícero do Juazeiro, eu me endireitava. Disse-me ainda que após essa visita à tumba do santo “Padim Ciço” eu iria compreender as verdades da vida e daí em diante andaria sempre ereto na estatura e reto nas ideias de minha cabeça (ideia só pode ser mesmo da cabeça, mas para a velha não era bem assim), garantindo-me que depois disto eu seria mais humano e não maltrataria mais o seu cão de estimação.

Sem entender mais nada, eu me envolvi naquele sonho esquisito (quando se tem um sonho nítido, a gente pode controlar e até mesmo influir sobremaneira no desenrolar do mesmo), que decidi fazer parte de uma romaria até Juazeiro do Norte e, pela primeira vez, depositar flores aos pés da estátua de Padre Cícero, o santo do nordeste brasileiro.

Depois dessa peregrinação, eu de fato descobri que enquanto eu imito os mitos, eu reproduzo o passado com seus erros e acertos, sem sair nunca do lugar. Tive uma Teofania que me revelou ser eu até então uma espécie de morto-vivo, nada mais do que um zumbi falante, mostrando-me que devo evitar a idolatria, pois ao me curvar diante de crendices e superstições eu estou simplesmente imitando quem nunca chegou a ser.

Ao imitar eu reproduzo, mas ao reproduzir eu não crio nada de novo. E aí me frustro, pois a missão do ser humano é recriar sem jamais repetir o protótipo e assim coopera com o Criador. Tomei consciência que os chamados ídolos pelos crentes fiéis são apenas estatuetas, mas o grande e maior ídolo é o deus dinheiro que todas as religiões adoram.

Sobre isso e acerca de tudo o mais, nossa conversa foi longe. Conversamos longamente e a veneranda anciã reafirmou não ter encontrado maldade nos meus olhos, enquanto afagava com carinho aquele velho lobo intruso, o seu finado marido, que a visitava todo dia àquela e sempre mesma hora. Pôs-se a examinar minhas costas com olhos flamejantes, tocando-me com as pontas de suas unhas compridas e por fim me disse que fiz bem em me recorrer ao Santo Padim Ciço, o desfazedor de mau olhado e todos os males. Isso agora não tinha mais a menor importância, depois que me endireitara, curvando-me ante a recomendação dela, a suma sábia, que me repreendia e me dava valiosas lições. Mas eis que então aquela velha bruxa, pois assim me pareceu transformar-se de repente, começou a babar, olhando-me com seus olhos estrábicos.

Fiquei apavorado e, como que para disfarçar meu nervosismo, sentei à mesa para saborear a sopa que estava diante de mim, com um olho na colher e o outro no cachorro sentado entre mim e ela, pronto para atacar quem agisse de modo suspeito. Enquanto o cão lobo foi ficando agitado, pude ver a fisionomia de minha anfitriã se transformando aos poucos e a velha virou uma coruja nojenta, com penas pretas e bicos afiados, como de um beija-flor.

Depois dessa transformação, a grande ave esvoaçou pelo barraco todo, carregando nas garras afiadas uma vassoura com a qual varria as paredes e o telhado por dentro, indo e vindo para baixo e para cima, levantando poeira e gorjeando sons agourentos até pousar ofegante sobre o cinzento fogão de lenha, arqueando suas imensas asas negras. De lá ficou me observando com aqueles olhos gateados e brilhantes (sem eu saber como e por que a luz fora apagada, mas o pequeno cômodo se achava iluminado pelas irradiações provindas do olhar da misteriosa ave) como querendo dizer que me desejava muito, por isso ia me degustar.

Sem nenhuma explicação, eu me achei fervendo em seu taxo, sendo revirado com uma enorme colher de pau, e a bruxa me levantando, cheirando-me e a seguir mergulhando-me outra vez naquela panela ardente, na qual ela cozinhava os cadáveres de seus inimigos, os urubus carnicentos. Fui sendo preparado em fogo lento por mais algum tempo e então a velha desdentada enfiou em mim um garfo de três dentes, alçando-me para o ar, ao alcance de sua bocarra. Deu uma lambida em meu corpo todo, e me depositou no seu prato, uma enorme bacia de cobre, misturando-me com cabeças e rabos de porcos espinhos ali preparados e prontos para ser saboreado.

Eu era o visitante e fui sendo devorado aos poucos e às bicadas por uma enorme águia, enquanto bradava meu grito de libertação para o espaço infinito, ao mesmo tempo em que me sentia um peixe assado, frito ou cozido, ingrediente de uma sopa de cabelos e sangue, querendo ser eu mesmo, mas tendo que me doar em sacrifício por amor à Gaia, nossa querida Mãe Terra.

Foi aí que dei meu grito de liberdade ou morte e me despertei do pesadelo, dando-me conta que dormia ao lado de uma linda mulher loura de olhos verdes, minha querida esposa, que me adora e só me faz feliz o tempo todo. Então me foi completada a revelação de que falei há pouco. Descobri que a mulher é o anjo da guarda do homem, enquanto este é o seu protetor.

Desde então, sinto-me obrigado a acreditar na lenda de que o homem sem mulher não vale nada. Depois desse pesadelo, eu me transformei e já não sou mais o mesmo. Deixei de ser machista, mas tenho ainda minhas dúvidas, já que na Bíblia ninguém é tão machista como o legislador Moisés, servo de Yahveh, que manda apedrejar a adúltera sem sequer querer saber quem foi o homem que se deitou com a pecadora.

Alguém pode ajudar-me a esclarecê-las? Ou prefere atirar-me a primeira pedra?