765-QUANDO PRENDEMOS O SACÍ-Aventuras de Meninos

Os psicólogos e educadores dos tempos atuais— primeira década do século 21 — estigmatizam a educação das crianças de há 60 ou 70 anos atrás. Dizem que as histórias infantis daquela época – Branca de Neve, Joãozinho e Maria, Chapéuzinho Vermelho, entre outras — são histórias de terror, de medo, de suspense e que podem ser a causa de muitos problemas psicológicos dos adultos de hoje.

Sem falar nas canções de ninar— Atirei o Pau no Gato, Dorme Nenê Senão a Cuca Vem te Pegar, etc. — seriam politicamente incorretas ou totalmente inadequadas para as crianças de então.

Ledo engano. Minha geração e outras que foram criadas ouvindo aquelas histórias e cantando essas canções, é muito mais equilibrada do que as posteriores. Sem falar nos desafios que eram propostas nas intimidações com o fito de evitar que crianças fizessem “artes”. Mas quanto maior a proibição ou a ameaça, mais a gente sentia vontade de fazer o que eram consideradas diabruras infantis.

O que era lenda para os adultos era pura realidade para nós, crianças. Havia, entre outras, a história misteriosa do Saci Pererê, pretinho de uma perna só, barrete vermelho na cabeça e cuja presença era anunciada por assobios, trocava as coisas de lugares, escondia os objetos de uso mais constante e confundia as pessoas Diziam até que fazia os idosos se esquecerem de onde tinham colocados os óculos ou as dentaduras.

— Tomem cuidado! Quando ouvirem um assobio dentro de um redemoinho, o Saci tá lá!

E tinha mais. Havia a possibilidade de prender o Saci.

— É só jogar uma peneira na direção de onde vêm os assobios que ele fica preso debaixo da peneira.

Como era praticamente impossível a tríplice conjunção — ter uma peneira à mão quando passasse um redemoinho e ouvir os assobios do Saci, prender o pretinho era inimaginável.

Além do medo. Imagine, prender o Saci! Quando ele escapulisse, na certa iria se vingar.

Mas... quem pode com criança?

Anselmo era corajoso, o mais atrevido da turma. E foi numa tarde quente, no quintal de sua casa, que tudo aconteceu. Jogávamos bolinhas de vidro, num brinquedo chamado gude ou toca, no terreno limpo. Dona Helena tinha acabado de lavar a peneira usada na cozinha e a colocara a secar sobre um banco rústico. Peneira de taquara, de treliça fechada.

Somente nós quatro, Anselmo, eu, Daniel e Juquinha, garotos de dez ou onze anos. A gente discutia todos os lances do jogo, quando passou por nós um pé de vento, zunindo, trazendo poeira e folhas secas.

Em seguida, ouvimos sons no meio do redemoinho. Pareciam assobios.

— Viche Maria! — Gritou Anselmo — É o Saci!

— Corre gente! — Gritei, e comecei a correr. Os outros me seguiram, menos Anselmo, que gritou:

— Vou pegar ele!

Quando olhei para trás, vi Anselmo pegando a peneira e jogando-a sobre o local de onde partiam os sons.

Paramos, os três que corriam. Anselmo pulava de um lado para o outro rodeando a peneira, que, por força do vento, balançava nas beiradas. E gritava:

— Peguei! Peguei! O Saci tá preso!

Parece que os assobios se intensificaram. Era uma barulheira, misturada com os gritos de Anselmo. Escondi atrás do tronco grosso da laranjeira. Juquinha e Daniel agacharam-se atrás do tanque de lavar roupa.

Os momentos daquela parafernália de sons duraram, para nós, uma eternidade, até que os ruídos foram sumindo e a peneira se aquietou sobre o chão.

Com o silêncio, o suspense aumentou.

— Ele tá lá debaixo, esperando alguém tirar a peneira pra ele sair. — Disse Daniel.

Anselmo se juntou a nós, agora sim, com medo da raiva de Saci quando ficasse solto. Todos tremíamos que nem varas verdes, de terror.

— Vamos prá dentro de casa. Lá ele não entra.

Entramos na cozinha. Dona Helena desconfiou de que alguma coisa havia acontecido.

— Ces tão com cara de quem aprontou. Que foi que fizeram no quintal?

— Nada não, mãe. — Disse Anselmo.

— Sabe, dona Helena...? A gente tava brincando... aí o Saci chegou num pé de vento...

— Que besteira é essa?

— Juro! Até ficou preso...

— Ara, vamos lá ver que vocês aprontaram.

Anselmo, ainda com medo (e ele era o mais corajoso da turma) disse:

— Não mãe, deixa prá lá. Amanhã a gente tira... ele tá debaixo da peneira.

— Peneira? Que é que vocês fizeram com a minha peneira?

Sem esperar resposta, dona Helena saiu para o quintal. Nós fomos atrás.

Ela viu a peneira no chão do quintal.

— Seus porqueiras! — e assim dizendo, pegou a peneira do chão.

Quando vimos que nada havia debaixo da peneira, ficamos aliviados.

— Olha só, tinha lavado a peneira, agora tá suja de terra. Que foi que vocês fizeram?

E sem esperar resposta, pegou Anselmo pelo cangote e deu-lhe alguns puxões de orelhas.

— E vocês, cambadinha, vão procurar o Saci nas suas casas.

É claro que ninguém espalhou a história – um tanto pelo medo que passamos, outro tanto pela reprimenda de Dona Helena.

Ela jamais ficou sabendo que, sem querer, tinha liberado o Saci da sua prisão, debaixo da peneira.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 17 de janeiro de 2013

Conto # 765 da Série 1.OOO HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 20/04/2015
Reeditado em 20/04/2015
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