Cabala

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Boa leitura!

Quando Alcebíades retornou à casa de seus pais na madrugada da segunda, depois de passar o fim de semana no sítio da família de um amigo da faculdade, notou que Feliciana, a empregada, ao vir abrir o portão da garagem, estava toda torta – sua coluna pendia completamente para a esquerda, parecendo um bumerangue em posição de sentido. Curioso, ele quis saber o que estava acontecendo, mas ela apenas respondeu-lhe com gestos e monossílabos que não tinha ninguém em casa, todos estavam viajando, e que só retornariam no dia seguinte.

- Mas... e a sua postura, deixa ver... meu Deus, você está toda torta! Dói?! Como foi que isso aconteceu?! – insistiu, mas a moça não alimentava conversa, tinha o olhar distante, parecia ausente. Mecanicamente, apenas começou a ajuda-lo a levar a sua bagagem para dentro de casa.

Sem compreender o que se passava, Alcebíades hesitou por um instante, tentando encontrar uma explicação plausível para aquele comportamento, mas logo lembrou que há muito ansiava por um banho relaxante e resolveu subir para o seu quarto. Estava no sítio do seu amigo Beto desde a sexta feira e dormira confortavelmente todos esses dias em uma suíte com cama de casal, mas aquela família era muito cerimoniosa, coisa que não o deixou totalmente à vontade. Resolveu, então, caprichar no banho, estendendo-se por mais alguns minutos além do habitual, sentindo-se literalmente em casa. Em seguida, desceu, chamando a empregada. Foi tomar café na cozinha.

Enquanto Feliciana não chegava para atendê-lo, Alcebíades foi logo abrindo o armário que ficava sobre a pia, na esperança de encontrar algo que saciasse a sua fome. Encontrou um frasco com biscoitos recheados – isso serviria – pensou – agora, um iogurte! Quando foi abrir a porta da geladeira, empalideceu: ali ao lado estava ela, a empregada, com uma grande faca de churrasco na mão esquerda, as pálpebras semicerradas e latejantes e com os lábios em movimento, como se estivessem pronunciando palavras. Rapidamente, ele levantou os braços, como a indicar um tudo bem, me desculpe, eu já estava mesmo saindo, e foi recuando até a entrada da cozinha, tentando se equilibrar nos portais para não cair. Tentou dizer alguma coisa, perguntar o que ela pretendia com aquela faca, mas o que consegui foi ficar ainda mais espantado porque, ao abrir a boca e tentar falar, começou a praguejar em uma língua estranha coisas que pareciam estar sendo ditas por aquela mulher, pois eram os lábios dela que se mexiam, não os dele.

Permanecera assim, por alguns segundos, ele emitindo todos aqueles sons; ela apenas mexendo os lábios, até que a situação mudou um pouco: Feliciana, imóvel e completamente torta, agora perguntava, com uma voz distante e que não parecia ter saído dela, se ele queria ovos mexidos. Alcebíades, mais uma vez, não conseguiu responder; sentiu que seus braços e pernas estavam frouxos e que suas mãos tentavam, inutilmente, segurar os portais para manter o seu corpo de pé. Sem forças para impedir o previsível, foi escorregando até o chão.

Como se nada estivesse acontecendo, ela apanhou uma frigideira no armário que ficava debaixo da pia da cozinha, colocou sobre o fogão com um pouco de manteiga e acendeu o fogo. Abriu a geladeira, apanhou dois ovos e, com a grande faca, partiu um a um, jogando-os na gordura quente.

O chiado produzido pela fritura pareceu instaurar por um instante uma espécie de sintonia na relação ali estabelecida pois, enquanto Feliciana, com a ponta da faca ajeitava o ponto de cozimento dos ovos, a figura de Alcebíades caída aos pés da porta da cozinha, não fosse o ineditismo da cena que se houvera pronunciado, com a ponta dos dedos a roçar no queixo poderia sugerir o simples ato de conferir a barba por fazer.

Subitamente, ele ameaçou levantar-se mas, refletindo melhor, resolveu permanecer imóvel, pois a faca ainda estava ali, ameaçadora.

- Prato pronto – disse Feliciana com um meio sorriso misterioso, talvez debochado, batendo a frigideira sobre a mesa da cozinha com aquela mesma voz anterior de ventríloquo.

Ainda com a faca na mão, a empregada deu três passos para trás, concentrou-se e bradou com a mesma voz que vinha de lugar nenhum:

- Exu pode ter matado um pássaro ontem com a pedra que atirou hoje. Em seguida, faca em punho, partiu à toda em direção a Alcebíades, dando um grande salto, passando por cima da sua cabeça, indo cair do outro lado, no meio da sala de jantar. Levantou-se, continuou a correr, desaparecendo no final do corredor que dava acesso ao jardim de inverno da casa.

- Essa foi por pouco – desabafou Alcebíades. Pensou rápido e concluiu que, dada a iminência de uma próxima investida, o lugar mais seguro naquele momento deveria ser o próprio quarto da empregada.

Ergue-se com dificuldade – parecia que as suas pernas estavam anestesiadas – e foi, apoiando-se na pia, geladeira, fogão, arrastando o próprio corpo que a cada passo parecia mais pesado, ao qual todo o mundo resolvera, quiçá, lançar quebrantos, até que finalmente chegou à entrada daquele minúsculo quarto.

A porta estava aberta, mas havia a cama da empregada a limitar o acesso, escorada entre aquela e a parede ao fundo onde ficava a cabeceira – só pessoas razoavelmente magras como Feliciana cometeriam a proeza do acesso àquele quarto. Alcebíades não era, necessariamente, esse tipo de pessoa, mas antes mesmo que pudesse avaliar o grande sacrifício a que teria de se submeter, já tinha entrado.

Bastante assustado, pensou em trancar-se imediatamente, mas por mais que procurasse, não encontrava as chaves da porta, muito menos ferrolhos, cadeados, taramelas, nada! Não havia um pedaço de arame sequer a seu favor naquele instante. Resolveu então acalmar-se, enquanto improvisava uma escora, usando as próprias costas. Foi assim que reparou na mobília daquele minúsculo quarto: no alto e defronte a cama, havia um pequeno armário de parede sujo da mistura da gordura que vinha da cozinha e mais a poeira acumulada de vários anos; abaixo dele, um televisor antigo, provavelmente em preto e branco, sobre uma mesinha de cabeceira, ambos também imundos; no canto esquerdo ao fundo, uma enceradeira e, espalhadas pelo chão, várias listas telefônicas cobertas de poeira. Isso tudo, mais as infiltrações do teto e paredes, que revelavam tons esverdeados, completavam a ideia de um ambiente inóspito.

Já estava sem forças para manter a porta escorada, quando teve uma ideia: as listas telefônicas! – estas seriam seu salvo conduto – pensou aliviado. Colocou várias delas atrás da cabeceira da cama, pressionando-a contra a porta, imaginando assim abortar, de uma vez por todas, qualquer tentativa de invasão.

Quando se viu seguro, sentou-se na cama e, recostando-se na parede, percebeu que ao lado da televisão havia também um teclado de computador que, além de sujo, lhe pareceu tão arcaico, que se não fosse a discrepância tecnológica de tempo, poderia jurar que era contemporâneo da televisão. Estendeu os braços, puxando-o para examiná-lo e... pasme, existia um fio, um cabo, ligando os dois... estavam conectados!

Alcebíades, instintivamente, colocou o teclado no colo, apertou a tecla enter e a tela, milagrosamente, apresentou a área de trabalho. Extasiado, procurou o mouse, mas não o encontrou – tinha que se valer das benditas teclas de atalho. Observou, então, que havia no meio do monitor uma pasta intitulada bomba caseira e imaginou logo um monte de bobagens, sua casa voando pelos ares, Feliciana sendo conduzida por uma ambulância da saúde pública, vestindo uma camisa de força toda manchada de sangue, mas acabou concluindo que seriam apenas bombas de chocolate – ela era uma excelente cozinheira. Mesmo assim, não quis abri-la. No canto esquerdo acima, havia outra pasta: infinitos – resolveu abri-la, mas não havia nada: somente o vazio da tela, excetuado de um incômodo cursor que insistia em revelar a sua própria, óbvia e única existência. Fechou a pasta.

Já ia desistir, quando o seu olhar percebeu algo familiar: Alcebíades.

Não conseguindo entender por que o seu nome, tão incomum e ao mesmo tempo tão coincidentemente estava ali, resolveu arriscar, fosse o que fosse. Abriu a pasta e, incrédulo, leu:

... De imediato, Alcebíades teve a ideia de oferecer-lhe uma massagem nas costas, de preferência, com ela deitada em decúbito frontal, pois, excitado que ficara com a notícia da ausência de seus pais, imaginou poder aproveitar-se daquela situação, simulando mera solidariedade.

A pretexto do seu jogo sedutivo, tocou-lhe o ombro suavemente, tentando, antes de qualquer outro argumento, envolvê-la nas suas insinuações sinestésicas. Suspirou comedidamente, tentando controlar a ansiedade e, após alguns segundos de hesitação, sugeriu:

- Vamos até o meu quarto, lá eu tenho um óleo especial à base de cânfora; você só precisa tirar a roupa e deitar de bruços, porque esse tipo de massagem tem que ser da cabeça aos pés...

- Céus! – desnorteado, Alcebíades deu um pulo e fechou rapidamente a pasta – não acreditava no que estava lendo. Como era possível! Quem escrevera aquilo?! Não, não, não, não, aquilo só poderia ser loucura! Sim, mas quem era o louco naquela casa?! Seria aquela que, estranhamente, quase o matara, ou ele, que agora lia a subversão de um fato ocorrido, supostamente escrita com base no mesmo tempo e lugar daquilo tudo de que teria participado?

Acuado e sem resposta para tantas perguntas, Alcebíades resolveu, mesmo assim, continuar a leitura. Talvez – avaliou – conseguisse encontrar uma saída para aquele enigma, descobrindo, de uma vez por todas, o intruso que resolvera subverter a forma da sua existência.

Na versão da tela, o outro Alcebíades, ou quem quer que estivesse tentando se passar por ele, conseguiu convencer Feliciana a entrar no seu quarto, e isso ficou realmente claro quando, após o convite da massagem, o verdadeiro Alcebíades leu o seguinte:

Como Feliciana sentia muita dor, resolveu ir até o quarto do seu patrão – quem sabe assim – pensou ela – alivio o meu sofrimento!

Alcebíades, que não era besta, tratou de trancar a porta assim que a empregada entrou – não iria perder aquela oportunidade, pois há muito tempo vinha de olho na criatura. Lá dentro, entretanto, algo dera errado. Infelizmente, não se sabe o que pode ter ocorrido pois, a portas fechadas, qualquer detalhe imaginado pode sugerir apenas um tom leviano. O fato é que, instantes depois de terem entrado, o que se viu mesmo foi Alcebíades nu, desembestado a correr escada abaixo, enquanto Feliciana, com uma enorme faca de churrasco, ameaçava na retaguarda.

- Como é que pode uma coisa dessas, meu Deus! – Alcebíades, quanto mais ia lendo aquela estranha versão, mais extasiado ficava:

- Quem é que anda escrevendo isso, que confusão é essa; será que Feliciana pirou?! A faca! Feliciana quer me matar... será?! Não, não foi Feliciana quem escreveu isso, não houve nem tempo desde que eu cheguei e... não, além do mais, ela mal sabe ler... Mas o que pretendem fazer comigo, escrevendo essas coisas absurdas?! Ai, ai, o que está acontecendo de verdade, será que estou sonhando! Como é que pode; enquanto eu tinha acabado de chegar, alguém escreveu essa farsa, invertendo tudo, mudando toda a ordem das coisas que acabaram de acontecer, como se explica isso?! E mais: o que Feliciana tem a ver com tudo isso?! Daqui a pouco, ela vai bater aqui e...

- Toc, toc, toc. – bateram na porta.

- Será que é ela? Quem quer que seja, não vou abrir. Já pensou, abro e levo logo uma facada! – suspirou profundamente, lendo em seguida a próxima informação:

Correndo da empregada e chorando bastante, foi esconder-se justamente no seu quarto – parece que havia se arrependido, pois não entrava na sua cabeça a versão da sedução. Como ele foi fazer aquilo, se tinha Feliciana como uma irmã! ... É verdade que se tratava de uma linda morena clara, olhos verdes de um metro e setenta, que viera do interior quando ele tinha apenas quatro aninhos, para ser a sua babá... mas era a sua irmã. Com o tempo, passou também a acumular na sua rotina todo o serviço da casa, mas era a sua irmã...

- Toc, toc, toc... – voltaram a bater, agora, insistentemente.

Alcebíades, a essa altura, já tinha fechado aquela pasta, não iria querer antecipar nenhuma informação que pudesse julgar ser leviana; também não sabia mais no que estava pensando: - essa história de irmã deve ter sido criada pela mesma pessoa que subverteu os fatos ocorridos aqui em casa, eu sou filho único, ora bolas! – falou isso em um tom desafiante, mas logo emudeceu com o estrondo de uma grande explosão que fez tremer tudo a sua volta.

Ele notou que todas as paredes do quarto haviam trincado e o teto ameaçava desabar. Totalmente em pânico, foi rapidamente removendo as listas telefônicas para liberar a sua passagem, quando percebeu que não havia mais porta – o vácuo da explosão a havia arrancado. Não perdeu tempo: saiu correndo em direção ao interior da casa, mas logo percebeu que ela estava totalmente destruída; não havia mais a cozinha, a sala... apenas uma grande cratera entre o que sobrou delas e o jardim de inverno do outro lado. Tinha que pular depressa naquela direção, porque a terra estava cedendo no lugar onde estava, mas lembrou de repente que fora justamente para lá que Feliciana tinha ido com a grande faca de churrasco. Não há escolha – pensou, saltando em seguida, mas recebendo no meio do salto, não se sabe de onde, um forte golpe na cabeça que o fez cair desacordado.

Infelizmente, não existe registro para o que ocorreu logo após esse acidente. O que se tem como informação a seu respeito foi apresentado, dois anos depois, por um desses jornalzinhos sensacionalistas que faturam com matéria de fofoca envolvendo celebridades. O texto dizia o seguinte:

O escritor laureado dos anos sessenta e setenta, Evandro Galeno de Vasconcellos, bastante incensado pela mídia da época e que frequentemente escrevia romances com personagens envolvidas em abordagens psicodélicas, como o eterno Alcebíades, que tinha mania de perseguição, despertou dois anos depois de um coma profundo, causado pelo traumatismo craniano que sofreu ao cair da janela do segundo andar do seu apartamento.

Não se sabe, porém, se, na época do acidente, tentou o suicídio porque, já há algum tempo, se encontrava em depressão profunda, em virtude do crescente descompasso surgido no final dos anos oitenta entre a sua temática narrativa e o contexto social de então, que o fez despencar de edições estratosféricas para a produção de pouquíssimos exemplares, ao ponto de, no Brasil, nenhuma editora ter mais se interessado em editá –lo, restando-lhe tiragens alternativas ou se, de tanto escrever sobre essas alucinações, passou, de uma hora para outra, a se comportar como uma de suas personagens.

No leito do hospital, entretanto, no momento em que despertou do coma, implorou aos médicos para que não lhe dessem alta, alegando que, se voltasse para casa, iria morrer a facadas. Ninguém levou o seu pedido a sério, a não ser uma ajudante de enfermagem que o olhou fixamente nos olhos e, estranhamente, lhe disse: tu vais para casa porque eu sou Esu Oba Baba Esu.

*Rei e pai de todos os exus.

Masé Quadros
Enviado por Masé Quadros em 15/04/2015
Reeditado em 15/04/2015
Código do texto: T5208571
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