756-O FANTASMA BRILHANTE -
O prédio, uma mistura de estilos, com ameias de castelos medievais, uma torre gótica, tinha mais de cem anos e erguia-se isolado no local conhecido como a Chácara dos Ormond. Fazia anos que não recebia uma nova pintura e parecia ser o local ideal para o desenrolar de tragédias familiares e aparições de fantasmas.
Dizia-e na cidade que era assombrada pelo Fantasma Brilhante: um menino de doze ou treze anos, cuja aparição era brilhante a ponto de ofuscar quem o visse.
“O fantasma Brilhante de Alfredinho”, diziam.
A casa, mal conservada, de aspecto tétrico estava sendo habitada nos últimos anos pelo solitário doutor Eugene Ormond, homem calmo e conformado com o que lhe reservara a vida.
Médico competente, cirurgião responsável pela fama do hospital local, fora casado duas vezes, pai de cinco filhos, vivia só no casarão, A família se fora, morrendo um a um, ao longo dos anos.
— Para um pai, ver a morte dos filhos é uma dor quase insuportável — dizia, a cada morte de um filho.
Além das mortes, o desaparecimento misterioso de Alfredinho era uma dor a mais no calvário do doutor Eugene.
Alfredinho era o único filho do primeiro casamento do doutor. Estava com oito anos quando o pai se casou pela segunda vez. A madrasta, Odete, bela mulher de cerca de trinta anos, colocou logo no mundo quatro filhos, dois meninos e uma menina.
Odete jamais igualou o tratamento de seus filhos com o dispensado ao enteado. Aos filhos, tudo era permitido, eram como príncipes e princesinha. Para Alfredo, trabalhos, zangas e castigos.
Odete tinha raiva de Alfredinho, motivada pelo amor e carinho do pai, que procurava compensar a falta da mãe com um desvelo especial para com o filho mais predileto.
Um garoto franzino que, por força de uma infância solitária, era vitima de uma timidez extrema. A tal ponto de jamais se queixar ao pai os maus tratos recebido pela madrasta.
Apenas a uma pessoa o garoto confessava suas queixas: era sua madrinha de batismo, Eulália, que tinha compaixão do garoto, não só por sua palidez e timidez, como também pelos maus tratos que ele recebia da madrasta.
— Coragem, Alfredinho, logo você irá estudar fora, e terá sua própria vida. — ela procurava entusiasmar o garoto com a ideia de libertação do jugo familiar.
Eulália era chefe das enfermeiras do hospital e ajudava o doutor Eugene em quase todas as cirurgias realizadas por ele. Amiga do médico desde a juventude, assistiu mãe de Alfredinho nos seus últimos momentos e durante os anos em que o pai ficara viúvo foi a confidente tanto do doutor como de seu garoto.
O sumiço do menino aconteceu antes que ele completasse doze anos e foi motivo de severa investigação policial. A cidade ficou assustada com o acontecido e muitas pessoas se apresentaram para ajudar, dar palpites e até fofocar.
Aventou-se a hipótese de fuga, já que nenhum corpo foi encontrado e que (todo mundo sabia) a vida do garoto em casa era infernizada pela madrasta.
Nenhuma investigação, nenhuma pista, nada, absolutamente nada, levou a uma conclusão. O garoto desaparecera como se tragado pela terra ou elevado aos ares por uma força misteriosa.
Alguns anos depois (dizem que foi após sete anos) começaram as aparições do Fantasma Brilhante.
Apareceu pela primeira vez para Odete. Depois de ter visto o fantasma, a mulher começou a ter alucinações. Passou a não dormir mais, caminhava pela grande casa noite toda. Nas noites quentes, saia pelo jardim ou pelo quintal, uma figura cada vez mais esguia, mais abatida, mais desesperada. Até que enlouqueceu de vez.
Levar a esposa a ser internada em um hospital psiquiátrico numa cidade distante foi outra terrível provação para o medico.
As aparições do Fantasma Brilhante eram aleatórias, mas sempre que aparecia para um dos membros da família, uma tragédia acontecia. Parecia ser o mensageiro das desgraças da família do doutor Eugene.
Apareceu para Rafael, o mais moço, uma semana antes de ele se afogar no Tirabufo, um poço maldito no rio Cansado, que já consumira mais de meia dúzia de vítimas.
Romualdo, o mais velho, engenheiro formado, despencou do andaime da torre da igreja em construção, apenas três dias depois de ver o Fantasma Brilhante.
Regininha, a irmã de quinze anos, foi vítima de um atropelamento fatal, dias depois de ver Alfredinho no seu brilho fantasmagórico.
E Rômulo se atirou da ponte sobre o rio Cansado. A queda não foi alta, mas bateu com a cabeça numa das pilastras e já estava morto quando chegou à água.
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— O Fantasma apareceu para mim! — disse o doutor Eugene à enfermeira Eulália. Era uma manhã fria, a neblina escondendo os telhados das casas e as copas das árvores. Preparavam-se para uma cirurgia.
Eulália olhou para Eugene e antes e responder, passou por sua mente a lembrança da figura esguia e quase sutil de seu afilhado.
— Era mesmo de Alfredinho?
— Sim. Reconheci, apesar do brilho que me ofuscou a visão.
Eulália, já na casa dos quarenta anos, era mulher decidida, prática e pragmática.
— Ele falou alguma coisa? Fez algum sinal, algum gesto significativo?
— Sim, me acenava com a mãozinha direita, como que me convidando a segui-lo para fora do quarto.
— E o senhor...?
— Fiquei deitado na cama, paralisado pelo medo. Imediatamente lembrei-me que as aparições anteriores eram todas na véspera de uma tragédia com minha família.
Eulália já ouvira e vira muita coisa estranha. Frequentara por algum tempo um centro espírita e não se entusiasmara com as manifestações mediúnicas. Respeitava o mistérioso e o sagrado e jamais duvidara de uma continuação da vida espiritual em outras dimensões.
Ficou intrigada com o relato de Eugene. E propôs:
— Quero ver esse fantasma. Deixe-me dormir algumas noites na sua casa.
— Nãosei se será conveniente... Você sabe... as fofocas...
— Homem de Deus! Estamos procurando desvendar um mistério, que se danem os fofoqueiros. Então...? Posso?
Naquela mesma noite, antes de se recolher ao seu quarto, ela disse:
— Não sei se ele aparecerá para mim. Se aparecer, espero que não seja para comunicar minha morte.
Escolheu justamente o quarto que fora de Alfredinho, situado, como todos os outros três quartos, no segundo pavimento da residência
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Eulália dormiu três noites no casarão do médico.
Na terceira noite, quente noite de novembro, não conseguiu pregar os olhos. O vento seco passava por entre as persianas da janela.
Lá pelas tantas (seria de madrugada?) a mulher sentiu mais do que viu, uma luminescência no canto do quarto, ao lado de uma prateleira de livros.
A luminosidade foi se alongando no sentido vertical. Uma figura humana foi se formando.
Eulália soergueu-se na cama, sem se levantar e ficou observando. Aos poucos, foi notando a semelhança com Alfredinho.
Não se assustou, não teve medo, esperou quietamente a manifestação do fantasma.
Não houve palavras, O fantasma acenou para Eulália, no sentido de que ela o acompanhasse. Ela levantou-se, vestiu um robe e o seguiu.
O fantasma brilhante atravessou a porta do quarto sem abri-la, esperando que ela a abrisse e o acompanhasse pelo corredor.
Caminhou na direção da escada que descia para as salas do andar inferior. Passou fluindo e sutil pelas grandes salas, passou pela cozinha e foi até um cômodo que servia de dispensa e depósito de vassouras. No chão havia um recorte indicando a existência de um alçapão. A aparição sumiu pelo assoalho. Eulália teve de abrir a pesada prancha de madeira, viu dava o acesso à escada para o porão.
Eulália desceu a escada. A luminosidade do fantasma era suficiente para iluminar toda a área do porão.
O porão era baixo. Eulália teve de abaixar a cabeça para seguir o fantasma sem bater nas traves grossas e negras de fuligem.
No silêncio total, a mulher teve a sensação de estar em outro mundo, outra dimensão do tempo.
Alfredinho, ou melhor, o fantasma, chegou até um armário que corria por toda a parede baixa do porão.
O menino apontou para a maçaneta de uma porta, fazendo um movimento que mostrava a Eulália como abrir a porta.
As duas folhas da porta. Então, o escuro armário se iluminou e a enfermeira viu, aterrorizada, cena mais horrível e lancinante que já vira em toda sua vida.
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Era mulher bonita, de cabelos negros e franja sobre a testa: Odete! Vestia uma roupa simples, caseira, com um avental branco. Estava de pé, atrás do garoto – Alfredinho — que, de quatro, parecia procurar alguma coisa no chão, no interior do armário.
O menino não viu quando a mulher, tirando do bolso do avental um pedaço de corda, passou-o pelo pescoço do garoto. Puxou com força as pontas da corda. A mulher se transformou, naquele momento, numa megera: os cabelos soltos e empoeirados pela fuligem do porão, as roupas sujas e amarfanhadas... o esgar se confundia num sorriso diabólico de um prazer mórbido. O garoto esperneou por alguns minutos, os olhos saltando das órbitas, a boca escancarada num grito mudo, a língua estendida ao máximo, arroxeando a medida que o garoto deixava de resistirão sufoco.
O corpo bamboleou e ficou frouxo como um boneco de pano. A bruxa emitiu uma gargalhada silenciosa e sinistra.
O fantasma brilhante desapareceu.
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Eulália acordou na sua cama. Não saberia dizer se havia tido uma visão, visto o fantasma de Alfredinho ou se tudo não passara de um pesadelo. Usava o robe sobre a roupa de dormir, o que evidenciava sua saída da cama em algum momento da noite.
Na manhã daquela noite mal dormida e povoada de fantasmas, Eulália relatou ao doutor Eugene o que vira – ou pensava ter visto.
O médico deixou a mesa do café para procurar uma lanterna e dirigir-se ao porão. Eulália o seguiu.
Juntos abrirm o grande armário, depósito de coisas velhas, ferramentas enferrujadas, uma velha bicicleta quebrada e brinquedos inutilizados.
O fundo do armário era de tijolos.
— Os tijolos estão soltos! – falou médico, quando tirou algumas das quinquilharias que atulhavam o armário.
Ante a eminência de alguma descoberta importante, o doutor tirou os tijolos, que por pouco não se despachavam, de tão antigos e sujeitos à umidade do local. Em seguida, usando uma pá, começou a cavoucar o chão.
Sem demora, bateu a pá em algo sólido e enão, passou a cavoucar com cuidado.
E seguida, ajoelhando-se, passou a cavoucar com as mãos, para desenterrar...
— Meu Deus! Eulália, é um osso humano!
Com movimentos frenéticos, prosseguiu enfiando as mãos na terra macia.
— Uma caveira!
Eulália via tudo com o mesmo horror que vira a cena da madrugada.
O doutor, exausto e aterrorizado, tombou sobre o terreno úmido. Eulália o segurou pelos ombros, puxando-o para fora do armário.
— Pare de cavoucar, doutor, Vamos chamar o delegado.
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Desenterram todo um esqueleto de tamanho médio,
— Um garoto ou uma mocinha.
— É o meu filho! É o meu filho.
Após uma explosão de palavras acompanhadas por um choro confuso e convulso, o doutor entrou num estado de mutismo, olhos vagos, deixou-se levar pela enfermeira para cima, para a cozinha. Serviu-lhe umm copo dágua com comprimido calmante.
O delegado colocou os ossos numa caixa apropriaa e os enviou para o exame pericial.
Era o corpo de um menino.
— Concluímos que é o corpo de Alfredinho — afirma o delegado. – Foi assassinado, embora não haja marcas de violência nos ossos. Nenhum osso quebrado. Mas quem o teria morto?
Ele já tinha ouvido falar das aparições do Fantasma Brilhante, porém, como autoridade, jamais poderia admitir a interferência do sobrenatural em suas investigações.
Eulália nada disse do que viu. De que adiantaria relatar ao delegado algo que ele, na certa, vai classificar como ilusão ou... invenção? — pensou.
O delegado chegou a um conclusão óbvia, que guardou para si.
Se tiver de incriminar alguém, será o doutor — pensava o delegado — pois, como sabia do local onde o menino estava enterrado, não fosse ele próprio o autor do crime?
O inquérito policial ficou inconcluso.
O doutor Eugene foi tomado por um período de pânico e terror, só superado graças à dedicação e o carinho de Eulália.
Recuperou-se e voltou à atividade normal.
Guardiães de um segredo terrível que foi o motivo de uma aproximação romântica, doutor Eugene e Eulália vivem hoje, placidamente, longe da Chácara dos Ormond, a felicidade de um romance outonal.
ANTONIO ROQUE GOBBO
Belo Horizonte, 3 de novembro de 2012
Conto # 756 da Série 1.ooo HISTÓRIAS