755-A CARRUAGEM FUNERÁRIA - Tétrico

CARRUAGEM FUNERÁRIA

Pela estrada afora, lá vai a velha carroça desconjuntada de Zelão. O sol levantando-se no horizonte, quente, uma bola de fogo, prenunciava um dia de calor intenso.

— Eia! Vamo! Puxa!

O pangaré que puxava a carroça não atendia aos gritos do condutor. A estrada esburacada e tortuosa não permitia um desempenho melhor.

No rústico banco na frente do veículo iam Zelão e Dona Constância. Na parte de trás, destinada às cargas, o corpo de Malaquias.

Morrera de madrugada, após mais um de seus constantes ataques. Estrebuchara no chão, os membros agitando-se desconjuntadamente, a boa espumando, os olhos revirados, só aparecendo o branco, uma situação de dar dó e medo.

Já tinha sofrido muitos ataques. Um médico da cidade havia diagnosticado o mal, cujo nome foi esquecido por ele e pela mulher, e dado remédios, que Malaquias só tomava após os ataques.

Ainda não era meia noite e sofreu um novo ataque, Só que desta vez, não voltou, após os pinotes, do espumar na boca e dos olhos revirados. Dona Constancia, viu os movimentos do corpo do marido diminuírem e os olhos se fecharam.

—Valha-me Nossa Senhora Aparecida!

Sozinha, sem ninguém em casa apara ajudá-la, não esperou alvorecer para procurar o vizinho Zelão. Eram quatro da manhã quando bateu à porta do amigo no sítio que ficava a um quilômetro de distância.

— Seu Zelão, me ajuda!

— Que foi, dona Constância?

— O Malaquias! Teve um ataque daqueles e não quer voltar do desmaio. Já fiz de tudo, mas ele tá como morto.

Zelão, seu cavalo e sua carroça eram uma só coisa. Vivia de fazer carretos para a vizinhança e não andava a pé.

— Espera um pouco. Vou arrumar a carroça pra gente voltar junto.

Num vapt-vupt o pangaré estava atrelado à carroça, e os dois subiram. Lentamente, mas num cadência própria, o rocinante os levou à casa de Malaquias e Constância.

Encontraram Malaquias hirto, estendido no chão. Zelão já tinha visto muito morto e não levou nem meio minuto para chegar à sua conclusão:

— Ele tá morto, dona Constância.

— Num pode ser! Ele sempre volta dos ataques.

— Uai, eu num entendo dessa doença dele não. O melhor é levar ele prá cidade.

Estenderam o corpo ao longo da carroça, forrado por um coberto, não fosse os solavancos do veiculo machucar Malaquias.

— Me leva pra casa do Januário, meu irmão. Ele vai me ajudar a fazer o enterro.

Dona Constância já havia assumido a morte do marido.

A cidade distava cerca de uma légua, se tanto. O calor da manhã piorava o percurso. A andadura do jereba era irregular, e os buracos na estrada aumentava desconforto. O corpo deu em rolar de um lado a outro no chão da carroça.

Quando chegaram defronte à casa de Januário, Dona Constância desceu e foi logo abraçando a cunhada, e desfalecendo num choro sentido.

— O Malaquias...! O Malaquias morreu!

Gente acorreu de dentro da casa (a família era grande). Vizinhos chegaram de repente, formando uma pequena multidão ao redor da carroça. Perguntas, respostas, admiração, choro, tudo se misturava entre o pessoal que chegava a cada momento. Parecia que todos estavam já preparados pra a chegada do corpo.

Um verdadeiro alvoroço à porta da casa de Januário.

Zelão desceu da carroça e foi para a parte de trás, tirar a tábua que funcionava como tampa traseira.

— Me ajuda aqui, seu Januário. — pediu ao irmão de dona Constância, que vinha saindo da casa.

O carroceiro puxou o cobertor.

—Segura aqui nas duas pontas dos pés que vou pegar na cabeceira do morto.

Ou pela emoção de ver o cunhado morto, ou por ser também um homem lá não muito forte, o caso é que Januário soltou uma das pontas do cobertor.

O corpo escorregou e tombou de lado, ao longo da calçada.

Para surpresa de alguns e susto de muitos, Malaquias sentou-se repentinamente no chão. Firmando-se nas duas mãos, abriu os olhos, olhou bestificado ao redor e com uma voz cava e terrível, disse:

— Que foi que aconteceu?

Não precisou dizer mais, sequer se levantar. A multidão saiu correndo em todas as direções. Um tropel como se um fantasma houvesse aparecido ou se a figura da própria morte tivesse chegado ao local.

— O morto num tá morto!

— Corre, que é um fantasma!

— Cruz -credo! É alma penada!

Em poucos instantes, a rua virou um deserto. Até mesmo os parentes de Malaquias sumiram casa adentro.

Só ficaram Zelão e Januário, que olhavam aterrorizados para Melquiades.

— Mas... cê tava morto, Merque!

Malaquias não respondeu. Estava fraco e parecia cansado.

Levou algum tempo para ajudarem o morto a se levantar. Apoiado nos braços dos dois, Melquiades entrou.

Dona Constância enxugou as lágrimas com as costas das mãos e aproximou-se do marido.

— Merque, ocê demorou a voltar!

Só algum tempo mais tarde, num consultório médico, ao contar da ressurreição de Melquiades, o casal se lembrou dos remédios, após ouvir o médico dizer:

— Onde estão os remédios que mandei tomar? Seu Melquiades não pode passar sem tomar os remédios porque ele sofre de epilepsia.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 1 de novembro de 2012

Conto # 755 da SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 12/04/2015
Reeditado em 12/04/2015
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