754-ACABEI COM MEU VELÓRIO
ACABEI COM MEU VELÓRIO
Nem sempre é o que parece ser....
Zeca Flanela era lavador de carros na praça principal de Gabiroba, pacata cidade do sul de Minas. Os donos dos carros gostavam de seu trabalho, pois era extremamente cuidadoso e até mesmo perfeccionista, quando passava a cera e lustrava os veículos que tomava conta.
Por isso, a notícia espalhada pela cidade na manhã de domingo de que Zeca Flanela havia sido encontrado morto num matagal nos arredores da cidade causou pesar muito além da família.
A mulher e as filhas maiores foram chamadas para reconhecer o corpo no necrotério, onde o morto estava depositado. Lugar sombrio e evitado por todos, pois o cheiro de morte estava em todos os cantos.
Dona Cândida, a viúva, além do sentimento de dor, teve de ver o marido morto, e identificá-lo. As filhas Terezinha, de 22 anos, e Carminha, de 20, também reconheceram o pai no cadáver coberto com um lençol encardido. Com os olhos marejados e sob a parca iluminação de uma lâmpada mortiça, identificaram o cadáver como sendo o do marido e pai tão querido, sem se demorarem, pois o lugar lúgubre e frio não convidava a delongas desnecessárias.
Preenchidas as formalidades legais, o corpo foi liberado para ser velado na modesta casinha da família.
Como já chegara colocado num caixão modesto, comprado às pressas na única funerária do lugar, era uma figura quase irreconhecível: a carapinha cinza sobre a face que, antes negra, ia tomando uma tonalidade também cinzenta.
O velório foi curto: o corpo chegou às 15 horas, para ser enterrado às 17 horas. A casa estava lotada com a presença de muitos amigos e alguns parentes. Era mês de julho, os dias curtos e o tempo frio. Na cozinha, corria uma garrafa de pinga, como era usual, para deleite apenas dos homens. Do fogão de lenha vinha um calorzinho que ajudava a manter a vigília.
Foi então que um alvoroço teve início na sala onde estava o corpo. Assomando-se à porta, uma figura escura, esguia, magra (e algo cada -
vérica), disse em voz profunda:
— Mais o que é que tá acontecendo aqui?
Gritos histéricos, vozes alteradas e um tropel chegou até os que bebiam o morto na cozinha.
— O morto tá vivo! — gritou o Dirceu, rapaz meio biruta, entrando de chofre na cozinha. — Vamo fugir!
Ninguém foi conferir. Pela porta da cozinha, correram todos, numa debandada geral.
Na sala só ficou dona Cândida, assustada, pregada na cadeira ao lado da cabeceira do caixão, sem saber se fugia ou se abraçava o marido, que aparecia vivo e lépido.
— Quem é que morreu? — Perguntou Zeca.
— Foi... foi... foi ocê!
— Ara, deixa de besteira. Ceis tão vendo qui tou vivo de verdade.
Acalmados os ânimos, chamaram o delegado de polícia para s providências, e só então Zeca explicou.
— Pois intão, Cândida, num te falei que ia no churrasco no sítio do cumpadre Amâncio?
— Sim, foi no sábado.
— Ai, num guentei voltar, tava mamado de mais e o cumpadre Amâncio me disse prá dormir no sitio. Quando foi no domingo, o cumpadre me falou prá ir com ele pescar uns bagre no rio Liso, e nois fumo junto. Só agora de tarde é que a gente voltou e eu to aqui, vivinho da silva.
— Ai, Zeca, é ocê mesmo? — Dona Cândida não acreditava. — Como pode, eu vi ocê morto.
— Mas quem é esse aí?
Poderia ter havido alguma semelhança entre Zeca e o defunto, quando este era vivo. Mas agora, ante o lavador de carros vivo e falante, o cadáver já exalando alguns odores pútridos, não se parecia, em absoluto com o Zeca.
O delegado ouviu tudo e ordenou ao Gildo da funerária:
— Devolve o morto pro necrotério.
Corrida a notícia de que o morto não era o Zeca, ainda houve uma espera de mais um dia (apesar do calor) para aguardar alguém que identificasse o morto. Foi enterrado na tarde de terça-feira, sem ser identificado.
Durante muito tempo após o acontecido e acima narrado, Zeca ainda contava prosa aos amigos e clientes de lavar carros:
— Sou muito corajoso. Fiz um treco que ninguém nunca fez: Acabei com meu velório!
ANTONIO ROQUE GOBBO
Belo Horizonte, 25 de outubro de 2012
Conto # 754 da SÉRIE 1.OOO HISTÓRIAS