Santinha Barriguda
Muita gente deixa o lugar onde nasceu por culpa de um desassossego qualquer, um desgosto muito grande, e o meu é maior que manga coração de boi, você conhece? Mas vô, não. Vô tinha um chamego medonho pela sua terrinha, mas teve de sair de déu em déu pro mode a seca, desceu pro Sul, esteve até em São Paulo, na bóia friagem, mas tornou a voltar lá pra cima. Por isso é que mãe foi nascer no Maranhão, veio parar aqui acompanhando o velho, pois deu outra doidice nele quando ouviu falar que a gente toda ficava rica aqui, na construção. Pai já é doutro mundo, do Rio, foi transferido quando mudaram a governança de lá pra esse cerradão, como é grande este Brasil!
mas se assossegue, que não vou contar minha estória todinha, nem vomitar aqui minha tristice. Você quer é saber se é verdade o que andam dizendo por aí, não é? Pois é, vai saber. É só esperar a madrugada, paciência. Tá escuro, não? (E como quem puxa o cordão da persiana, arredou uma nuvem negra chegante lá das bandas de Anápolis, e o sol da tardezinha lambeu gostoso o largo chapadão do Gama, alourou o topete do capim meloso e arreganhou o rosa das flores da paineira barriguda da rua dela).
na certa, o seu jornal acabou sabendo disso pelo que o povo anda espalhando e, pelo mesmo diz que diz, lhe contaram que eu ia embora, pois sim. Pois não, o tanto é verdade. O que não é é que deixo este lugar por falta de beleza, pode botar aí no papel. Bastava ter de meu aquela enorme paineira barriguda lá na esquina - aquela, a linda - e meus olhos tinham com que se acalmar dessa descrença mole de outono e dividir outros trens que entalam a garganta da gente em qualquer tempo do ano. Mas não é só a barriguda, tem muito mais. Vem você morar aqui uns tempos, agora em maio, por exemplo, e vai miar de tanto ver bonito, tô Ihe dizendo, ô moço! Em maio, azulão o céu, friinho o tempo, o sol é macio como papo de passarinho, dá vontade de fazer nada e viver que nem tiú manhoso o resto de nossa vida, quer café? (O olhar é decidido, gente teimosa, bota água pra ferver, o rosto vincado parece mais velho, eu quero café, obrigado).
mas não sei de nada de antes de nascer, sei bem do que vai vir esta madrugada, é verdade. Por isso não digo coisices de pai e mãe antes do meu nascimento, que seria perto de inventado. Mas que este Gama devia de ser um faroeste, lá isso devia. Pai que conta: bum, pam, bum, pam, sangue na terra dura, na poeira vermelha, pé de pau torcido, gente morria, gente matava, cheirava fumaça mesmo antes das queimadas de agosto. Se alembra do caso daquela GEB, polícia braba, de fogo na venta, que matou quarenta candangos por problema de reclamar de comida? Deus me livre, não foi aqui no Gama, não, mas daquele sucedido tinha a dar com pau na Cidade Livre, se bem que pouca coisa é que saiu da moita. Mas a pobreza vez mesmo não tem, tem? (A barriga começa a esticar se, o traço da boca ficando amargo, era preciso desengavetar toda a sujeira do mundo, fosse lá a que preço, mas dá medo escarafunchar nessa briga do forte contra o fraco, obrigado, mais um pouquinho, mais açúcar, rochedo contra o mar, caranguejo sofre as penas. Mas, e a estória dela? Será que vale a pena?)
pois bem, a estória evem vindo. Envindo desde o dia em que nasci - e nasci aqui. Podia ter nascido no Plano Piloto, mas pai não quis apartamento funcional, eu não, morar nessas caixinhas de fósforo, dizia. E falava do Rio, a cidade mais linda do mundo, pra onde ia mudar logo aposentasse. Queria era casa com um tico de quintal, o lote era barato aqui. Já mãe, lacrada numa gaveta de silêncio, nunca dizia sim nem não, índia arisca que nunca contou da meninice em São Luís, você acredita? De lá, só sei por carta e cartão postal que um tio mandava, padrinho dela, Tijoaquim, de boa letra e coração, que isso as cartas mostravam. E aí era viajar nos postais das praias, de cidades que têm ruas, que têm praças e igrejas, viagem assim só de imaginar, que as passagens cada vez mais caras só deixam isso mesmo prá nós.
e eu ia crescendo, ouvindo essas estórias de saudades em terras de forasteiros, eu que só sabia desses lugares pelo dizer do povo e novela na televisão, pois é. E crescendo, crescendo, abrindo os olhos, cada dia uma coisa nova, tomando corpo, a barriguda também, o Gama mudando, todos nós variando, variando, até o dia do grande desgosto. (Não podia ficar comovido, essas estórias são todas iguais, devo fixar a atenção na xícara de plástico barato ou na agitação crescente em volta da casa, cada vez chega mais gente, não devo me comover com uma estória ordinária da qual já sei o fim).
não vou dizer que não procurei. Eu também precisava, você entende que mulher também pega fogo? O sol do cerrado bota umas coceiras no corpo da gente, coisa que professora de catecismo nem pode imaginar, pudera. Os peitinhos eram muito arados, Ihe conto, gostavam de dedos e conchas de mão, mas o que eu mais queria era o resto... e tinha até medo de pensar Pai prometia o inferno, mãe - mais bondosa - alguns anos de purgatório pra quem fizesse sem casar. Pois foi um dia...
os olhos eram azulados, meio acinzentados, piá de mão sabida, língua enfoguetada, braços safados, protetores. O catarino, mestiço de alemão, ossudo e atrevido, que pedia, pedia... E acabei dando. Dando depois de seis meses de bafo no pé do ouvido, puf, buf, e frissura de barba arranhando no cangote. Acabei dando tudo e sonhando com milhão de paraísos, alamedas muito verdes, roupas brancas de enxoval. Mas ele sumiu (olho envermelha, dá impressão de que vai chorar, de que se esquece da minha presença, queimei a Iíngua no café), sumiu devagarinho, não corisco que acende e apaga e fica o breu, mas que nem sol de outono alumiando menos, encompridando devagar e sem pena a sombra rosa da tarde, isso era. E, assim, cada vez me queria menos, por que é que não acha tempo para mim, olho azul, tá sem vontade hoje, olho azul, você já não olha mais nos meus olhos, por que é, o que foi que eu fiz? E clamei, fiz birra, até descorçoar, até a última hora, a hora em que o sol sumiu de vez e me acendeu no peito milhão de estrelas sem serventia.
mas uma mulher não deve viver de imploração, ô moço. Virei a boca pra dentro de mim e disse cala, cala coração, cismei de esquecer pra sempre. Tranquei o peito e cerrei as pernas, a mode que não ia entrar mais nada em mim, mais nada, nunca mais. Mas, Ihe conto, aí já era tarde: o piá tinha deixado uma semente dura de abacate no meu bucho, e aquilo já tinha começado a crescer. E era um gosto ruim na boca, vontade botar comida toda pra fora, argh, urgh, mãe - e os desejos! - ai, que vontade louca de caqui maduro, quer mais café? (Vive de novo tudo, convulsões no corpo, com pouco vomita aqui mesmo, mas não, depois dos três meses já não é tão perigoso, obrigado, mais um pouquinho. O barulho da rua aumenta, cada vez chega mais gente, logo vem o resto da imprensa).
em desde o dia da certeza, a sombra preta pousou em cima de mim que nem uma tampa de sepultura. E se pai me mandasse de casa? E mãe, o desgosto de mãinha, logo eu, a preferida... E cadê o gosto das coisas da vida, é tão besta abrir a boca pra rir, como é possível achar graça no mundo? Mas parar de viver é que não dava, tinha era que apertar a barriga pra ninguém notar o bucho inchando, espremer o piazinho, coitado, e ir sentindo um nó na garganta cada vez que via uma coisa do tempo dele, o piazão, cada fusquinha caindo aos pedaços que nem o dele, cada cadeira de cinema, cada cantinho de muro e matinho do cerrado, cada poste de luz queimado, tudo recordação, tudo a fazer eu destampar numa choraria sem freio, as águas rolando, descendo pro canto dos beiços, salgadas, salgadas, de uma tristice sem esperança, pobrezinha de mim. (As lágrimas da lembrança são bonitas. Descem como dois rios mansos, depois que a tempestade amainou. E o caso da paineira, da santinha? Será que perdi meu tempo pescando neste lago sem peixe?)
no dia em que pai descobriu, nem pegou o ônibus do ministério pra trabalhar. Contaram pra ele. Foi dona Julinha, a capixaba da quadra 2, a que costura pra fora, a língua solta, a boca de bruxa. Pai chegou e foi logo passando a mão na minha barriga, é verdade, não adianta esconder, rapariga, tou sabendo de tudo, cadê o cachorro do galego, mato os dois, catarino sem vergonha, alemão safado, pois foi. Mas, de repente, quando pensei que ia levar uma coça daquele bração cabeludo, mãe chegou chorando, se atarracou na gente, ele chorou também, e eu corri pro meu quartinho, minha catacumba de esconder do mundo.
daí que vem a tal estória da paineira, já chego lá. Já deve estar pensando que estão mangando de você, que é invencionice, mas não. Mas é que a dor doía muito, e a tampa preta da tristeza não me deixava mais correr por aí, borboleta que eu era, beija-florinha, olha este retrato, eu lindinha, não, que alegre estou, não acha? A paineira barriguda, aquela da esquina, foi sempre o meu confessionário, mira ali. Cresceu comigo. Talvez por isto, chamo-a de maninha, será bobagem? Certo é que é linda, mas neste maio é mais que isso: é de endoidecer o coração, porque a gente sabe que não pode fazer coisa bonita como ela, inda mais na hora do sol morrente, rosa as flores, verde muito escuro as folhas. (As flores estão caindo uma a uma. Isso de o tempo passar não se esconde no outono, a juventude se gasta depressa, os olhos dela já têm pés de galinha nos cantos, com certeza estrias nas coxas, olheiras, o quanto deve ter chorado... E só tem dezenove anos!!! Se fosse possível fotografá-la agora, mas que apelo tem isso para o público? O que querem é o fantástico caso da paineira, temperado com a aventura prometida para a madrugada. E o jornal também.)
pois foi numa tarde de cisma debaixo da paineira que os vi pela primeira vez. Foi de repente que os mais de mil etê zi¬nhos cor de rosa como as flores da barriguda apareceram. E você veja, eram louradinhos como ele, o catarino, miudinhos, mas nada de anõezinhos aleijados, os braços, pernas e cabeças no lugar certo e tamanho conforme. Você havera de ver: todos vestidos de fraque e cartolinhas coloridas e brilhantes, que gracinha eles tocando os violinos piquititos, eu cobra e eles me encantando, eu água e eles um ralo me chupando, rup, rup, e de repente a tristice desatrepou de cima de mim e eu... Eu ri de novo, você entende? Eu ri de novo, ri, ri, ri, depois da comprida noite da desesperança, eu ri de novo. (Não parece lunática, mas os olhos brilham com o exagero da lua cheia nascendo agora). E foi aí que, olhando a cor da roupinha deles, me alembrei da pele e dos olhos da mulher estrangeira que veio em minha escola, eu era pequenininha. Tinha a gringa os olhos azuis de saber lonjuras, jeitice de quem já viu o mundo todo e ainda não se cansou de procurar o nao sei quê, o mesmo não sei quê da valsa dos violinistas etê-zinhos, tchi, tchi, tchun, tchi, tchi, tchun, enfeitiçando a gente.
daí que não deu mais. Assentei na beirada do passeio e parei no tempo, você tinha de ver e ouvir. Quando, de repente, o concertorio parou, veio uma voz lindinha de uma galha da barriguda - não deu pra ver direito de onde vinha, que eram tantos os bichinhos atrepados na paineira - e danou a falar lindas belezas. Claro que não falava das belezas deste mundo, como é que pode, do jeito das coisas hoje? Falava era de suas lá cidades, luas suas e seus sóis de vidro, docinha a voz de suspiro de clara de ovo, a que eu precisava, meu coração que carecia de consolo. E quando de novo a falar deste nosso mundo - o meu, o seu, o dessa gente toda em volta da casa - só vinha coisa ruim no anunciado. Uma guerra na tal Europa, muito braba, que vai começar por lá e se alastrar pelo mundo inteiro, tão braba que não vai sobrar muita gente pra contar o caso depois, Deus me livre. Mas dizia que aqui há de sobrar gente, aqui neste planalto-cerrado, que os etê-zinhos vão nos ajudar a refazer o mundo, daqui, pois sim, você não leu isso nos livros de estórias antigas?
E de mim - bom, acho que aí chego no que você quer saber, não é? Sim, é verdade que eles me disseram que essa no meu bucho é uma femeazinha, que vou parir longe daqui, mas ela vai voltar pra comandar um bitelo dum exército e será uma chefa poderosa. Disseram que ela vai ajudar a fazer de novo tudo isso que os velhos gordos de mau hálito estão destruindo, ela há de dar aos pobres o que eles não têm, benza a Deus em desde já. Pois mais, hoje é também a véspera da minha ida, vou-me embora, olha a lua grande no céu, forte luz que apagou todas as estrelas, e o vento fino sussurrante lá da banda da Prainha. É este o sinal, eles vêm me buscar esta madrugada, vão me esperar na paineira barriguda - aquela, a linda - vão me levar nos seus discos para sua estrela, onde todos são iguais, você não crê?
(Acabou de anoitecer. A lua explode de brilhar mais bela. A quadra está fervendo, um ror de gente perto da casa se ajunta em volta da paineira, a distancia, desconfiada, que nem com medo de assombração. Porque é esta noite que ela vai embora. Kombis de outros jornais na rua, emissoras de rádio, a tevê também. Todos querem ver pela última vez a Santinha Barriguda do Gama.)