TERREIRO

Get up! Sussurra o inconsciente à mente para que desperte.Preguiçosa que é surta em sonhos para que o corpo continue em repouso. Ainda adormecido penso estar acordando ao som de meu simpático despertador. Maldito daquele que inventou está desgraça infame. Faço como de costume. Percebo que tudo à pouco se tratou de um sonho e já atrasado me dou conta do dia que veria pela frente. Levanto as pressas quase concebendo a oportuna vontade em fazer dele, mil pedaços. Deixo que o tempo trate de acertar as contas com desleal objeto. Passo mão na toalha, agora no banho permito relaxar por alguns segundos após a complexa prática do despertar. Penso, enquanto deixo que o fluxo da espuma tome conta das extremidades corpórea, de que haverá de existir alguma relação psicanalítica entre a psique e nossa cama. Sou capaz em pleno banho daquela manhã de averiguar do porquê ser tão laborioso a prática do levantar cedo, suscitando a comparação de minha aconchegante cama ao útero materno. Percebo que tenho travado uma guerra cotidiana da qual não satisfaço de bons resultados. O adormecer nos deixa tão distante de nossa realidade, que talvez essa tenha sido a única forma de manter a sobrevivência fora ao útero de nossa mãe. Sessado banho retorno ao desarrumado quarto, o qual insisto em deixá-lo como está de maneira a ouvir a voz de minha mãe insistindo para que eu o arrume. Tudo não passa de um formidável teste psíquico. Faço apenas quando estouram os rojões e percebo estar arrumando à bagunça de semanas em minutos, pois não queira jamais experimentar das barganhas de sua mãe quando louca. Trajado para mais uma alegoria diária, dirijo-me até o pó de café no armário da cozinha e sobreponho ao filtro do coador as quatro colheres rasas, como de costume. Imagino que deveria me preocupar com o atraso, entretanto, não deixo com que isso afete o dia. Por sorte minha não se tratava de um dia desses como qualquer outro de insignificante prática mecânica, que em resumo, resume minha fustigante atividade dos últimos meses. Se me resta-se apenas isto, diria para tocarem os sinos da igrejinha na esquina sendo feita a vontade de que todos soubessem de minha prematura morte mesmo ainda ensejando à vida. Hoje pelo contrário é o dia de minha folga e por isso busco complacência às horas do relógio que me fodem cotidianamente. Sejam as horas que disponho em consequência de minha atividade remunera ou pelo tempo gasto todos os dias para chegar ao templo da divinização guermet como também é respeitado o Senhor mercado. Não sei quem é pior se o tempo, mercado ou as pessoas que os utilizam e exploram a grande maioria por conta disso. Passado o café, procuro por minha xícara de todas as manhãs a qual já se nota às rachaduras internas e um sutil escurecimentos de suas bordas. O café e seu inconfundível aroma que exala por frescura faz com que reflitamos mesmo em um domingo chuvoso, que vale a pena continuar acreditando na existência de pessoas humanas. Tomo de um gole a inspiração de que necessitava para proceder decentemente com todos àqueles que nos fustigam a vontade de prosseguir. Ainda assim, parece ser insuficiente àquele café que revigora, tendo em vista a forma como não subjugo as decepções mundanas que gritam aos olhos porta a fora de nossa casa. Seria de súbito fácil contentar-se com o que esta dentro de si, o difícil é engolir a seco as mazelas que encontramos na rua, nos becos, abaixo das pontes, nas esquinas, nas praças, nas fontes, nas marquises nas diretrizes que norteiam urbano. Respiro fundo e me vem à cabeça uma frase desordenada que de qualquer forma, está concatenada ao contesto "quem acredita sempre alcança". Meu desligamento com as obrigações cotidianas parece não ser de deus, pois, ao sair de casa próximo à uma da tarde para o compromisso que havia marcado apenas em minha consciência chegar as onze da manhã, horário que iniciou a feira do escambo na praça 29 de março. O compromisso era algo intimo, ou seja, meu e de mais ninguém. Havia prometido que chegaria no horário mas como de costume, meus atos desregrados incitam-me a viver atropelando às horas. Como era de se esperar a desatenção me condiciona a situação de refém, quando ao sair esqueço pelo meu molho de chaves à porta, notando apenas por sua falta no final da tarde à uma quadra de distância, momentos antes de chegar em casa. Entretanto isto ainda está para acontecer. Havia encerrado a precipitação à pouco e já estava eu caminhando em direção ao ponto de ônibus, com meu chapéu de feltro de ante aviso a qualquer emergência. Não poderia me arrepender de sua companhia neste dia nefasto que incide em Curitiba, perdendo as contas das vezes que se tornaram incidentes as pancadas de chuva. Mesmo com o dia nublado me sentia feliz ao perceber a umidade relativa do ar em minha face, poder ver os Ypês que tomam conta dos parques de um verde cintilante, mesmo na ausência e falta de suas flores pois não é época. Objetivo após todas essas horas de atraso era ainda alcançar um remanescente de feira, para que pudesse interagir com o pessoal de minha turma, todos àqueles que insistem ainda desafiar as regras do consumismo pelo consumismo. Trago em minhas mãos uma simples sacola amarela com alguns vinis, algo que me desperta interesse nos dias atuais mesmo não concordando com as versões remasterizadas de álbuns clássicos, que diria ser mais um desespero mercadológico em suscitar uma nova tendência. Não coleciono vinis para abastecer ao mercado. Faço porque gosto do cheiro azedo do papelão em contato com a poeira e umidade de décadas. Acumulo não por mera tendência mas porque sinto prazer em me desligar por horas e mais horas revirando pilhas e mais pilhas de vinis, e, por fim encontrar ao que me agrada o salutar dos ouvidos. Sou rato de sebo, por isso recorro a ambientes que no mínimo exalem ao esquecimento, solidão, e vez por outra a morte. Chego à tempo de encontrar alguns feirantes do pacato e bem reduzido grupo que se reunia próximo aos seus objetos de troca. Infelizmente não há com quem eu possa finalizar à prática, mesmo conferindo todos os itens que lá estavam expostos, ainda o que me agrada por enquanto são os discos. Matada a curiosidade em comparecer a feira do escampo e feliz por saber de um feirante que não havia ninguém quando se deu o início às onze da manhã, reorganizo minha trajetória e, como é de esperar de Curitiba a baixo de chuva. Caminho em meio à poças e gotejo seguindo ao encalço agora da grande feira do Largo da Ordem. Por lá também nada encontro daquilo que me é de interesse e passo a trafegar sem rumo pelas calçadas de uma capital que ao meu ver parece comemorar seu aniversário de morte à vista da reclusão que insiste em fazer parte do curitibano em si. Por ruas desertas a baixo de muita chuva caminho, contando apenas com apoio da proteção de meu chapéu de feltro e minha jaqueta de couro enrijecida pelo tempo. Procuro na gastronomia curitibana de um domingo à tarde algo que sustente o ego de que a viagem não teria sido de todo um fracasso. Em uma terceira praça desvendo uma agitada movimentação da qual procuro saciar fome e sede de minha subestimada curiosidade. Experimento por ali mesmo o gosto da tapioca baiana o que aproposito tem muito a ver com todo um desenrolar da noite anterior ao dia que sucede minha permanência em Curitiba. Ouço batuques intermináveis, fruto de uma batida alegre e contagiante. Acordo nos braços do pai de santo. Ele me diz "em fim vc encontrou sua entidade". Pasmo, agitado, todo molhado de suor e água, me fez crer que todo meu percurso por Curitiba se deu no terreiro da Umbanda. Ainda sentia meus músculos reagirem à movimentos involuntários no ritmo dos batuques. Fui contagiado pela gira, girando, girando até amanhecer do dia.

ESCRITO E VIVENCIADO EM 29 DE MARÇO - ANIVERSÁRIO DE CURITIBA.

Jack Solares
Enviado por Jack Solares em 30/03/2015
Reeditado em 20/07/2015
Código do texto: T5188241
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