O Sétimo Continente
Que o pássaro era enorme, senhores, eu vos asseguro. Só não posso precisar o quanto enorme, quer por falta de capacidade descritiva, quer por causa dos anos que já correram, corroendo-me as lembranças, embaralhando este cérebro já cansado de pensar e de viver. Mas era enorme. Pensai em algo como a sombra de portentosa aeronave, perto de aterrissar, passando veloz por sobre vossas cabeças. Pois foi assim que se apresentou, assustando- me ao sobrevoar a baixa altitude e imenso deserto em que o destino me colocara para recebê-lo, irrompendo com a rapidez do martim-pescador que se atira n'água para o alimento. Por um átimo, sua figura obscureceu a luz brutal de um sol de meio-dia. Reconheci-o. Era o meu Pássaro, há tanto aguardado. Finalmente.
Encarapitei-me no seu dorso, como um jóquei, porém com as pernas cruzadas na posição iogue. Seguindo a intuição, agarrei-me a suas penas, a modo de cabresto, e comecei a conversar com ele em minha mesma língua, sem me intrigar com o fato de que me entendia e - o mais estranho – também me respondia. Eu, tão frágil vivente no alto daquele dorso de montanha, não me surpreendia nem me amedrontava mais. Dentro de mim, sabia que seria assim mesmo e preparei-me apenas para seguir o roteiro que ele quisesse e que eu suspeitava, há séculos, estava traçado. O Pássaro era o instrumento de uma revelação.
A decolagem logo após. Do alto, a amplidão desolada dos desertos, a majestade conspícua das montanhas, a imensidão furiosa dos oceanos. Tudo passava diante de mim como uma revisão, um desentorpecimento de minha memória, uma revisão que me preparava para novas descobertas e encontros. Um aperitivo também. Coisa melhor –ou mais estranha – estava para vir. Rapidamente nos afastamos da Terra, tão rapidamente que logo ela passou a ser apenas bola brilhante solta no espaço, e eu, extasiado com aquilo que antes fora apenas imagens de cinema ou foto de jornais e revistas, não pude deixar de murmurar "como é azul" e duas lágrimas de perplexidade e algo próximas do amor se perderam quentes no lombo daquela montanha alada. No entanto, era apenas o começo de uma assombrosa viagem, como parecia querer dizer a álgida claridade dos astros no Infinito.
Sim, começo, pois logo o Pássaro baixou para me mostrar bem definidos os contornos dos continentes. E eu soletrava “Europa” – pois estava escrito Europa – e eu soletrava “América" – pois estava escrito América – e por América se entendia as três e não apenas a do Norte, como vem acontecendo, e o Pássaro comentando, enquanto sobrevoava cada uma das partes deste planeta que poderia ter sido tão feliz, pois estava preparado para tal, não achais? Pois dizia ele: ali viveram os incas, ali os pigmeus, ali os esquimós, ali a brava nação Apache, ali os lapões... Aí, por todos os lugares, vive e manda hoje o Usurpador, ou seus capachos, escondendo nas vestes o Trovão, para quando falharem os métodos pacíficos de conquista, ou seja, um sorriso nos lábios e as mãos cheias de quinquilharias e suspeitas bagatelas. E eu me perguntava - era eu ou ele mesmo quem dizia? - como é que a lei Suprema ainda permite que eles mantenham seu poder? Que estranhos desígnios estarão por detrás dessa hegemonia, que lição escondida se acha por trás dessa injustiça? E mais isso e mais aquilo, conversávamos, eu e o Pássaro bem informado.
Sim, e então, quando me dei conta, era já a metade da viagem, senhores. O Pássaro comentava a Antártida, que contemplávamos de muitos longe, a pedido meu, que sempre, desde quando bem jovem, não me dava com os climas muitos frios. Ali, dizia, começará uma nova guerra, pois o Usurpador é insaciável e incorrigível e já sabe que muitos tesouros se escondem sob os desertos gelados. Hoje que a memória já não me é tão generosa, que este velho já não tem tanta força nem respaldo para protestar, podeis ainda testemunhar o quanto de razão tinha o meu Pássaro, embora as tragédias que iríamos presenciar anos mais tarde fossem difíceis de prever e as previsíveis parecessem evitáveis com algum esforço. A Insânia, todavia, persistiu. A ganância venceu o bom-senso e continuou a mascarar a ambição e a destruição do Usurpador. Vós vos lembrais da série de acidentes nucleares e de como sempre se lhes minimizou o perigo? A Terra continuou a caminhar inexoravelmente para a perdição, justamente ao ponto em que estamos agora. E o Usurpador continuou se reproduzindo, fazendo herdeiros, não adiantando sequer desejar-lhes o câncer, uma peste, deficiência imunológica, ou outro mal qualquer: eles se provaram indestrutíveis.
Mas não será com o que está feito que tomo vosso tempo, senhores. Tanto já escrito e falado sobre tais perigos e nada resolvido, para que eu repeti-lo? Outra é a minha mensagem. Quero relatar a extraordinária aventura que vós, mestres na milenária arte de prever e interpretar, infelizmente sempre a serviço do Usurpador, podereis aproveitar como quiserdes, pois é certo que minha descoberta tem enorme valor e a mim pouco já me importa para onde role esta nau de insensatez.
Pois sobre a Ásia – pois estava escrito Ásia com laços de nuvens ralas, o Pássaro mostrou as imensas estepes, os picos dormindo eternamente enregelados, as intermináveis hordas de esquálidos famintos, de desgraçados expulsos pela fome, enchentes, secas, epidemias e, como não poderia deixar de ser, pelas guerras patrocinadas pelos mercadores de armas, a serviço do Usurpador e seus sócios menores.
Na África, nos detivemos sobre o Saara e avistei ao longe a indecifrável sabedoria de Quéops. Sobrevoamos as margens do Mediterrâneo, e pude observar os lugares onde as civilizações moura e cristã se imbricaram. Nas grandes selvas e savanas, apontamos um ao outro os animais em perigo de extinção, o que, aliás, veio a acontecer bem mais cedo do que os estudiosos previram. Havia mais uma seca e mais fome e mais tragédia na Etiópia, quando a sobrevoamos, e, sobre cada continente estava escrito invariavelmente seu próprio nome, como se não se tratasse da Terra de verdade e, sim, de um globo terrestre para estudantes de Geografia.
Sobre a Oceania, já não conversamos tanto. Limitávamo–nos a observar, em silêncio, visto que quase tudo se repetia e nada do que aconteceu aos aborígenes tinha sido essencialmente diferente do que acontecera aos outros povos dóceis que o Usurpador violentou .
E finalmente, senhores, o Sétimo Continente. Sim, Sétimo. O Pássaro o apontou com seu bico adunco e suas garras de condor andino, quando, num antigo porto de escravos no Ocidente africano, descansávamos daquela estranhíssima viagem ao redor do mundo. “Ali está o Sétimo Continente. Parece perto, não?” E eu firmava a vista na pequena ilha coberta de bruma, na linha do horizonte, que deixava à mostra apenas o topo de uma montanha, relembrando certos velhos calvos no cocuruto e plenos de cabelos brancos e longos nas bordas da cabaça. “Parece perto, não?”, repetia o Pássaro, fazendo-me voltar os olhos a ele. E como parecia perto! Mas ele disse que era extraordinariamente distante e que eu me agarrasse a ele mais firmemente do que havia feito até então, porque a aparente proximidade era apenas mais um engodo dos sentidos e que, naquele momento, estávamos realmente na parte decisiva de nossa viagem. “Tudo antes foi apenas uma despedida dos outros continentes e um aperitivo para a entrada no Sétimo", observou o Pássaro.
E, ato contínuo, levantou de novo voo, aumentando de velocidade. Aumentando sempre, e sempre aumentado, aumentando sempre, e o Sétimo Continente, ao invés de se aproximar, ia sumindo de vista, se desmanchando como bolas de sabão ao sopro de uma manhã de agosto. Nesse instante, senhores, vós que estudastes com certeza as ideias do senhor Einstein, tão brilhante sábio, poderíeis ter experimentado na prática parte daquilo que ele apregoou e que parece excessivamente complicado. Pois em a velocidade aumentando, fazendo-me zonzo e com ânsias de vômito, sentia a massa de meu corpo se concentrando, e, ao mesmo tempo, tinha a sensação de alivio por constatar que, a deixar que prosseguisse a experiência, dentro em pouco já não sentiria mais o peso da carcaça mortal que nos escraviza. E aquilo era doce, tão sublime, que entendi, na velocidade de um raio, o que os indianos chamam “desfazer-se na alma cósmica", “esquecer-se do Eu”, e “imergir no todo Universal”.
Era isso, senhores: EU ESTAVA MORRENDO. E a Desejada vinha linda e leve, breve e fluida me receber, porque havia concordância em meu Espirito em deixar-se levar. Jamais poderei descrever-vos como a sensação de abandonar-me ao Podre Maior sobrepujou todo o restante de meus desejos, sonhos, anseios, e experiências do passado e daquele presente que eu estava vivendo. Pela vez primeira em minha existência consciente, topava com a perfeita sensação de unidade interna.
Eu estava, sim, me abandonando, me deixando. Porém, senhores, naquele instante exato, tinha em mim ainda reservas do orgulho e da vaidade dos jovens. Eu estava no viço da vida e aquilo me fez resistir. Vos conto como a resistência brotou como uma sementinha, nasceu como uma gota, cresceu, juntou forças e fez-se mar a perguntar-me por que eu deveria morrer ali, se era jovem e são. A Razão, senhores, a Razão foi o freio. De um ponto obscuro e intocado do meu cérebro nasceu o freio e o obstáculo ao desejo do Espirito, ansioso pela paz do Todo Universal, pelo reencontro com o Não-Causado, pela volta suspirada em toda a existência ao Grande Útero Cósmico. E tal freio foi detendo o Pássaro, e meu corpo, a um dado momento já quase desaparecido, contraindo-se como jamais supusera ser possível, foi tomando tento de si novamente e voltando á massa e densidade anteriores, com a mesma velocidade com que vinha até então se contraindo.
Acordei exausto e suado em meio ás ruínas de Cartago, a poucos passos de um ancoradouro, banhado de densa luz equatorial, em frente a um mar encapelado. O Pássaro abandonara-me ali, provavelmente decepcionado com o fato de eu ter mudado de ideia, ele, sem ter deixado qualquer sinal de sua presença, a não ser grandiosa pegada, mais parecida com uma cratera de vulcão extinto. Dele, Pássaro, não vos posso contar mais. Suponho é que, fisicamente, tenha sido um daqueles que o veneziano Marco Polo encontrou em suas andanças, provavelmente um Pássaro-Roca da Ilha de Madagascar.
Hoje, que o peso das recordações enverga meu corpo cansado, quisera encontrá-lo de novo, o meu Pássaro. Dessa vez não iria pensar, racionalizar, pois nada desejo hoje além do imenso campo do esquecimento. Dos sonhos da juventude já não me recordo. Pareciam tão infinitamente importantes, porém desfizeram-se. Das pessoas não tenho lembranças exatas: ou se apagarem na areia dos anos ou se confundiram na neblina da minha velhice. No rosto não há sorrisos, apenas rugas e amargor, o rastro da segadeira por nome Tempo.
Caso ele venha de novo, não hesitarei. Portanto, aproveitai estes meus últimos instantes de sanidade cerebral e ouvi a minha palavra: creio que podeis deter a morte. De um ponto do cérebro, ainda incerto, poder-se-á controlá-la, para sempre, a partir de cada um e, posteriormente, de toda a Humanidade. Quando houver uma verdadeira e superior razão de viver, não mais a desejaremos, mesmo inconscientemente, que é o que a faz vir lentamente, através da velhice ou das doenças. Quanto chegarmos a esse ponto, terá nascido o verdadeiro Super-Homem. A morte, então, será uma questão de opção e não mais sereis esses lagartos lambuzados de empáfia.
Quanto a mim, espero que não tenhais tempo nem perspicácia para me convencer a não partir com o Pássaro, quanto ele vier de novo. É muito tarde para mim. Não me iludo com as promessas que fazeis. Cruzei muitas terras e tempos ouvindo as palavras dos poderosos e encontrei apenas vazias mentiras. Não creio em esperança para a Humanidade, pois uma raça de serpentes vem substituindo a outra no comando desta arca de sandice há muitos séculos. Não desejo, tampouco, essa Eternidade que podereis governar a partir de minha assombrosa experiência. Processai, para outros, a minha descoberta Se quereis recompensar-me por isso, chamai de novo o Pássaro e dizei com doçura ao meu ouvido:" recquiescat in pace". E atirai minhas cinzas aos ventos da Terra .