Estátuas
Andava por noites frias entregues ao silêncio e tudo indicava que nunca chegaria a lugar algum. Sua história era escrita pelas pegadas de neve deixadas para trás – solitárias, taciturnas, sem cadência e arrastadas que em breve terminariam seu curso. Em questão de horas suas pernas cederiam e ele mergulharia no doce sono eterno. A garganta inflamada inspirava o ar gelado, que pouco fazia questão de adentrar seu corpo decadente. Há muito havia largado sua espada e escudo ao léu, e a promessa de morte soprava em seu ouvido na forma de nevasca. As pupilas pesavam como se estivessem carregando o peso de sua vida. William sabia que a vida fora curta, e que tudo terminaria ali.
As árvores passavam por ele lentamente, e cada vez mais devagar. Um passo, depois outro. Uma respiração, depois outra mais arrefecida. A sinfonia da morte não parava, acompanhada pelo bombo de seu coração, que batia, batia, batia… na contagem regressiva do seu fim.
- A morte corteja minha alma – sibilou William para o vento – assim como uma vez cortejei o amor de Jenesyn, que está morta. Talvez esta música seja a voz dela. Tão doce quanto o vento…
Ele caiu.
***
1 -
Aquela voz ungia ao redor de seu corpo estirado na neve, e trazia consigo cheiros perfumados, como se ela estivesse lá. “Jenesyn? É você?”, William pensou, ansioso por achar que aquela seria a melodia a guiá-lo através do vórtice da morte até a distante luz no fim.
No entanto, quando abriu os olhos, deu de cara com o alvor da neve, impelida contra seu rosto. E quando levantou o pescoço, viu ela lá, de pé, sorridente. Trajava um vestido preto perfeitamente intocado, sem qualquer sinal de açoite do vento ou aderência dos grãos de neve. Tudo simplesmente a atravessava. Seus graciosos olhos de donzela o observavam sem desviar.
William se pôs de pé, motivado pela aparição de sua amada, mas o fez lentamente. Sentia que algo estava errado. Arrastou os pés na direção de Jenesyn.
2 -
“William, meu doce William”, ela costumava dizer quando seus narizes se tocavam. Sua voz sempre fora suntuosa, límpida, além de empática.
William se aproximou de Jenesyn, e ela não reagiu. Permaneceu fincada na neve, os braços rígidos, o sorriso costurado no rosto assim como seu olhar, destinado ao nada. O mancebo rodeou a mulher e comprovou o que aquilo significava. Uma estátua. Uma estátua de Jenesny, em carne e osso, no meio da neve.
- O que… – tartamudeou, sem conseguir continuar. Observando assim por tanto tempo, William percebeu o quão aflitivo o sorriso da mulher parecia, estática daquela maneira.
Girou o pescoço ao redor, se perguntando onde estavam – e principalmente – por que estavam lá. Que lugar macabro era aquele?
3 -
As árvores nuas que os cercavam faziam companhia a outras com algumas folhas que ainda resistiam. Deviam ser bétulas, estas, enquanto as carecas não passavam de finos troncos e galhos de madeira sem vida. “Estão como Jenesyn”, pensou William. Em outros horizontes, apenas névoa e brancura. Nada mais havia para se contemplar além dos opacos olhos de Jenesyn rodeados por uma imensidão de palidez e incertezas.
Enfim, levou alguns minutos até perceber uma pedra parcialmente coberta pela neve com as seguintes inscrições entalhadas em baixo-relevo:
“O Coração traz de volta”.
Enquanto isso, alguém se aproximava.
4 -
Uma nova trilha de pegadas acompanhava as suas, e a responsável por ela era uma mulher dentro de um capuz. Não era possível dizer muito além disso, afinal o negrume de seu capuz nada mostrava além de poucos ângulos de suas feições. Em uma mão, tão pálida quanto a neve, carregava flores. Na outra, abraçava uma bolsa cuja tira de couro pendia despregada.
Ela caminhou devagar, passou por William e Jenesyn sem notá-los, e continuou caminhando até ser engolida pela névoa. William foi até lá. A mulher estava parada em frente a uma segunda estátua. Um homem velho, de traços duros, barba grisalha, alto e magro que se vestia como camponês.
Ela depositou as flores aos pés do amado, impassível diante do gesto, e se virou.
Andou até William, e tudo o que disse foi:
- Conte-me sua história, garoto.
5 -
William respirou fundo, e com tristeza, começou.
- Dê um passo à frente em direção ao pesadelo que estou a revelar, minha senhora. Meu nome é William Greenwood, de Revall – uma cidade rica e próspera, ou pelo menos assim fora antes da destruição. Eu… eu era um dos soldados que lutou para proteger o povo. Vi o sangue ser derramado nos quatro cantos da cidade. O diabo se deliciava ao som do grito daqueles que eu estava juramentado a defender. Amigos caíam, famílias eram ceifadas, crianças choravam ao ver seus progenitores perdendo a vida. Matei muitos, movido pelo desespero. Corri até a casa de Jenesyn para protegê-la, mas era tarde demais. Deparei-me com um homem alto de armadura negra segurando uma espada que pingava sangue. E ao lado dele, Jenesyn jazia, morta.
A senhora não tirava os olhos do chão. Parecia que estava tentando se proteger da nevasca. A julgar pela maneira estática que se portava, ouvia atentamente.
- Foi uma luta sangrenta, no entanto, dei cabo da vida do assassino. Segurei Jenesyn em meus braços, joguei fora meu elmo, e derramei lágrimas até meu rosto secar. Ela me olhava, petrificada. Perdi as minhas forças. Tudo o que senti em seguida foram mãos me erguendo e me arrastando para fora da casa. Me botaram sobre um cavalo e fui embora, deixando a cidade em chamas. O cavalo me guiou sozinho, ao passo que o pouco de força que me restou usei para não cair da sela.
A mulher no capuz absorveu tudo e adotou o silêncio o quanto pôde, até perguntar:
- Para onde o cavalo foi?
- Para o leste, junto com os desertores da guerra. Mas num momento de ânimo, virei as rédeas do meu corcel para o noroeste, onde um dia me disseram que eu encontraria um lugar coberto pela neve onde as almas ainda permaneciam, e eu poderia ver Jenesyn de novo. Era tudo no que conseguia pensar. Numa antiga lenda que foi alimentando minhas esperanças até o presente momento.
Ela deu as costas a William e a segunda pergunta foi:
- O cavaleiro na armadura negra. Por que ele faria isso com a sua Jenesyn?
William deu de ombros. Mesmo de costas, ela percebeu o gesto.
- Garoto, tenho duas histórias para te contar. Vamos à primeira. Chamo-me Dharmia Seill. Sou uma mulher apegada a curiosidades, principalmente em relação a coisas do outro mundo. Ouço o sussurro dos ventos, sou sensível aos que já foram. Eles falam comigo, principalmente aqui neste parque. Como pôde ver, também perdi um amor, mas não se preocupe. As pessoas se vão. Uma pena, mas precisamos aceitar.
Ela abriu a bolsa e retirou duas rosas de dentro dela. Deu-as para William.
- Tome. Jogue-as ao pé daquela estátua – disse, apontando para o velho petrificado – já joguei algumas para o cavaleiro da armadura negra, agora é a sua vez. É o mínimo que pode fazer.
6 -
William jogou as rosas no chão e bradou:
- Ele a matou! Você é viúva desse cão dos infernos?
- E você o matou. Matou meu último amor – rebateu Dharmia.
- Como ousa defender o assassino de uma mulher indefesa? – ralhou, fitando na escuridão daquele capuz onde deveriam estar os olhos da senhora – eu devia matá-la também! – queria agredi-la, mas alguma coisa em sua cabeça dizia para não fazê-lo. Com isso, limitou-se às palavras.
- Me poupe desse drama, garoto. Melhor, chamarei de William, é mais respeitoso. Lembre-se: o coração traz de volta. É o que está escrito na pedra.
William segurou o braço da mulher de forma impulsiva.
- O que quer dizer com isso? Que Jenesyn voltará à vida?
Dharmia ergueu o rosto apenas o suficiente para William ver sua boca. Enquanto falava, o ar gelado era expelido.
- O coração traz de volta – ela sibilou vagarosamente – então a resposta é sim. Há muito sentimento seu por Jenesyn neste peito de guerreiro. Você a quer de volta mais do que tudo, posso ver. Você a ama mais do que a si próprio. Isso me deixa impressionada, sabia? Nem eu amo tanto o meu homem quanto você a ama. O seu coração a trará de volta em questão de segundos…
As pernas de William foram caminhando automaticamente até a estátua de Jenesyn, deixando ao vento as palavras finais de Dharmia. Não queria ouvi-las. Seu amor retornaria. Podia perceber o coração batendo mais forte, inerente ao corpo frágil e cansado. “Ela voltará para mim!”, gritou William em pensamentos.
7 -
Os dedos de Jenesyn tremeram. Depois, foram as pupilas, que se viravam para William com custo. Ele não pôde evitar um sorriso. Jenesyn tremelicou e ameaçou dobrar os joelhos, mas William já estava lá para agarrá-la.
- Meu amor! Sou eu, William, o seu William!
Ofegante, ela disse:
- Wi… William. Es-estamos m-mortos? – disse, então tossiu.
- Estamos vivos. Estamos bem, tudo ficará bem! – ele tirou o próprio casaco e, apressado, deu-o para a amada cobrir os ombros.
William nivelou seu rosto ao dela e disse, do fundo do seu coração:
- Jenesyn, eu te amo. Eu te amo mais do que as estrelas.
Ela se permitiu um sorriso, uma mistura de alegria por vê-lo e incredulidade.
- Eu também te amo William, meu doce William!
O beijo foi ameno, carinhoso. Os lábios cheios de amor se acariciavam, se molhavam, davam vida a seus corpos novamente. O parque desapareceu. A neve desapareceu. Os medos desapareceram. Suas bocas inebriadas faziam mil declarações umas às outras sem nada dizerem.
Atrás deles, Dharmia observava com um sorriso travesso riscado nos lábios. Atrás deles, alguém – ou algo – atrás da névoa voltava a caminhar.
8 -
O beijo foi interrompido de forma abrupta ao som de uma risada masculina a alguma distância. Era uma voz rouca, velha, decidida. O cavaleiro da segunda estátua andava na direção deles portando um semblante caliginoso. Seus passos eram mecânicos e certeiros, e seu olhar, assassino.
Jenesyn se escondeu atrás de William.
- O coração traz de volta – gritou Dharmia – tanto no amor quanto no ódio. Não quis me ouvir anteriormente, então cuide-se, mancebo!
9 -
Sedento por vingança, o cavaleiro negro investiu contra William. Havia um punhal em sua mão. William, com um misto de fúria e espanto, também avançou, sacando um punhal escondido da bota. Os dois punhais foram contidos pelos antebraços de cada um, deixando a luta travada.
- Desta vez você morre, garotinho. Você e aquela sua vadia que tive o prazer de ver sangrar.
- Vou matá-lo novamente, homem velho. Não passa de um cadáver andante! – urrou William em resposta.
O velho bateu com a testa no supercílio de William, fazendo-o gritar e ver sangue em um dos olhos. Nesse instante de dor, a adaga do cavaleiro furou seu estômago com intensidade, tirando a voz dos pulmões de William e dando a Jenesyn, que gritou horrorizada. William se pôs de joelhos, sem conseguir pensar em nada, até abrir o olho limpo e, de esguelha, investir o punhal contra uma das pernas do velho. Ele caiu com o joelho jorrando sangue, trovejando xingamentos. William tirou o punhal e o jogou com todas as forças contra o pescoço do cavaleiro negro. Um som de carne sendo aberta, e então, nada mais disse. Morreu pela segunda vez.
William deitou na neve, sendo socorrido por Jenesyn. De soslaio, viu o espanto no rosto parcialmente à mostra de Dharmia. William conseguiu se levantar. Foi mancando até a senhora, o punhal quente numa mão, o sangue quente vertendo do estômago na outra.
- Tenha piedade… – foi tudo o que ela conseguiu proferir.
- Bruxa – foi tudo o que William disse quando enfiou a lâmina no peito dela, perfurando couro, linho, pele, carne, e principalmente, coração.
10 -
Ali perto, encontraram um lugar debaixo de uma pedra curvilínea, onde a nevasca pouco alcançava. Lá, descansaram, se recuperaram, se amaram. William estava feliz, assim como Jenesyn, jubilosa com sua segunda chance.Os dias e noites se passaram, quase perfeitos ao lado de Jenesyn. Quase.
- Ando tendo pesadelos, e Dharmia está sempre neles. Fico furioso, tento correr para matá-la, mas a neve é sempre muito funda e não me deixa correr até ela.
- Esqueça ela, esqueça esse lugar. Amanhã quando se recuperar, vamos embora. Vamos para um lugar melhor do que Revall. Vamos nos casar, como sempre sonhamos. Eu te amo, William, meu doce William.
Ao som daquelas palavras, o coração dele palpitou. Talvez ela tinha razão. No dia seguinte, tudo começaria a dar certo em suas vidas.
***
Caminhavam em silêncio passando pelo parque, para nunca mais voltar. Jenesyn apontou o dedo para uma série de pegadas recentes cravadas na neve. William se pegou indo atrás delas, cortando a névoa e gritando por alguém. Não houve resposta. Quando retornou a Jenesyn, viu uma mirrada silhueta atrás dela, translúcida e dispersa pelos grãos brancos da neblina. William não conseguiu gritar. Seus olhos se arregalaram tanto que a sensação era a de que saltariam para fora. Sua boca tremia.
Uma mão acariciava o rosto de Jenesyn por trás, e ela, amedrontada, só conseguia gemer.
“Tenha piedade…”, pensou William,automaticamente. A voz gritava em sua mente. “Tenha piedade”. A lâmina desenhava uma linha vermelha no pescoço de Jenesyn. “NÃO”, uma voz gritou dentro dele. A boca não conseguiu gritar. “DEUS, NÃO!”. A voz interior se transformou num choro. A lâmina continuou o percurso até a outra orelha. Jenesyn caiu, com lágrimas geladas. Aqueles olhos de vidro, estáticos, petrificados. Agora, mortos novamente.
Dharmia saiu de trás dela.
- Piedade? Não, mancebo, não. Sou uma bruxa, lembra? Bruxas não morrem. Seus pesadelos alimentaram minha vida. Devo agradecê-lo pela segunda chance? Agraciá-lo? Há segundas chances, mas não terceiras, infelizmente… para sua amada.
As pernas de William cederam ao peso. Ele arqueou, e ficou ali. Ficou.
- O coração traz de volta. O seu coração, emanando ódio, reluzindo, palpitando de rancor. Você está morto agora.
William se arrastou até Jenesyn. Pegou o punhal, trêmulo, e o enfiou no próprio coração. Morreu com o rosto colado ao dela, nariz com nariz, como costumavam fazer em vida, quando se amaram. “William, meu doce William”. A voz dela dançava em seus ouvidos.
Dharmia observava com curiosidade. Não odiava William, muito menos o amava. A bruxa sabia controlar seu coração. Ou melhor… ela talvez não tenha coração para controlar. Ela baixou o capuz. O rosto exposto na nevasca era impossível de descrever. Impossível de ser descrito agora. Nem o autor desta história consegue encontrar palavras para isto.
FIM