O pássaro
- Crowch!
Aliás, sendo bem franco, nem sei se foi exatamente “crowch”. Esse negócio de onomatopeia é mesmo muito complicado. Igual a esse mito de que “pocotó” reproduz o trotar de um cavalo. Preste bem atenção e verá (ouvirá, melhor dizendo) que não há claramente nenhum “pocotó” sendo emitido pelas patas do eqüino. Acho que “pãktæ” seria uma grafia sonora mais apropriada, ainda que igualmente imprecisa.
Mas voltemos ao tema que originou esta crônica, ou conto, ainda não sei ao certo.
– Crounch! (acho que assim ficou um pouco melhor)
Procurei assustado ao redor da sala, tentando identificar a fonte do inusitado som.
Vasculhei minha biblioteca mental fonográfica. Sapo não era. Algum brinquedo das crianças com a bateria fraca? Talvez, mas não. Grunhido de celular? Não. Grilo? Pombo? Coruja? A estrutura do som parecia aproximá-lo de algum ser voante.
Mais três “grownks” (será que ficou melhor?) se seguiram até que identificasse o bichano na última prateleira da estante. Um pássaro que certamente entrou pela janela aberta e depois não conseguiu mais sair.
– Não consegui não, é que vocês fecharam todas as portas e janelas com medo de ladrão, seus paranóicos.
Quase não pude conter meu espanto com a cena inverossímil.
– Como assim, você é um pássaro que fala?
– Devia se espantar é com o fato de eu ter lido seus pensamentos…
– Acho que estou ficando sem ar, isso não pode ser possível.
– Com essa casa toda fechada vai fica sem ar mesmo, abra as janelas.
– Pra você fugir, né?
– Fugir não, que não te pertenço.
– Admita sua posição inferior, você é um pássaro e não tem pra onde correr.
– Mas eu posso voar.
– Eu como filé e você come alpiste!
– Eu como frutas e sua dieta é muito parecida com a dos meus primos urubus.
– Para um pássaro você é bastante insolente.
– E para um humano você é bastante previsível.
– Pra mim vocês são apenas pássaros, colibris, bem-te-vis ou urubus.
– E pra mim vocês são todos macacos, gorilas com pelo ou depilados.
– Mas como é abusado, eu te prendo numa gaiola!
– E eu cago na tua cabeça!
– Eu ponho o ar condicionado no último e faço você congelar aqui dentro.
– E eu vou bicar até furar toda a sua coleção do Dostoievsky, que aliás não leu nenhum ainda…
– E eu vou trancar você nessa sala tocando funk o dia inteiro.
– Tá bom, tá bom, não precisa apelar. Somos seres racionais, vamos negociar.
– Ok. O que você veio fazer na minha casa?
– Vim comer a maçã que você largou no prato. A melhor maçã é do Chile. Mas dá uma preguiça voar até lá… aproveitei também para dar uma espiada nas manchetes do jornal, saber as novidades da operação Lava Jato.
– Então você lê também?
– Claro, se leio até pensamentos, porque teria dificuldades com jornal? A vida nos céus é muito boa, mas às vezes dá um tédio… então eu entro em alguma casa pra sair da rotina.
– Deve ser daí que vem aquela expressão “um passarinho verde me contou”…
– Com licença, mas sou bege imperial.
– Tudo bem, desculpe. Já comeu minha maçã e leu as notícias. Vou abrir as janelas pra você voar. Volte quando quiser.
– Pode deixar. Basta deixar uns pedaços de maçã dando sopa. Também gosto de lichia e nêspera argentina, só para constar…
– Um abraço.
-Crowch!