A Máquina.
Milton Pires
Vou perguntar mais uma vez: Por que você está aqui? - gritou Nuon Sen e acionou a “máquina”.
A corrente elétrica percorreu todo corpo de Ieng Chang. Ele já havia escutado boatos sobre a “máquina” mas ainda não fora submetido a ela. A “máquina” não tinha outro nome..Quase ninguém tinha nome naquele tempo.
Agosto de 1977. Prisão de Tuol Sleng. Segundo ano da tomada de Phnom Penh.
Eu estou aqui porque não sou um ser humano. Eu sou um animal – gemeu Ieng Chang depois de receber uma bofetada do guarda khmer que não tinha mais de 16 anos.
Hum – fez Nuon Sen antes do segundo tapa com toda força no rosto do prisioneiro – Olhe no espelho ! Olhe ! - berrou segurando a cabeça de Ieng com força - O que você vê??
Eu vejo o boi... - tentou dizer Chang, mas não conseguiu terminar. Um novo choque elétrico lhe percorreu o corpo todo impedindo que respondesse qualquer coisa.
Você precisa aprender a SER o boi – começou a dizer Nuon Sen – O boi que puxa o arado come quando nós mandamos. Se o levamos para outro campo sem pasto suficiente, ainda assim ele se alimenta! Ele sabe que não pode se deslocar! É vigiado e quando lhe dizemos para puxar o arado, ele o puxa. Ele nunca pensa na sua mulher nem nos seus filhos e, acima de tudo, ele não sabe que é um boi ! O boi pertence ao Angkor ! Quem é Angkor ??? - berrou acionando a “máquina” novamente.
Angkor é o Partido ! - respondeu Ieng Chang desesperado e sentindo urina e fezes escorrendo pelas pernas do seu corpo completamente nu.
E quem é o Partido ??? - perguntou o guarda alucinadamente.
O Partido é o Irmão Número Um ! - gemeu Ieng.
E quem é o Irmão Número Um ??? - insistiu Nuon
O Irmão Número Um é Angkor ! - respondeu Ieng, dessa vez em lágrimas.
Olhe agora no espelho!! O que você vê??? - berrou o guarda apontando o grande espelho a poucos metros da parede contra a qual Ieng estava amarrado àquilo que tinha sido uma cama com estrado de metal ligado por dois fios à “máquina”.
Eu vejo um traidor ! - conseguiu balbuciar Ieng antes do outro choque.
Olhe novamente !!! - berrou histérico o guarda khmer.
Eu.. eu vejo...eu ...eu..sou o boi... - respondeu Ieng
Nuon Sen acionou a “máquina” outra vez – Responda seu desgraçado ! O que você vê ???
Não sei..eu não sei mais..eu não vejo mais nada – disse Chang e desmaiou.
Hum..assim está melhor – murmurou o guarda encostando a metralhadora chinesa ao lado da porta daquilo que um dia havia sido uma escola na capital do Camboja e saindo para tomar água. Quando voltou, o único sinal da passagem de um ser humano por aquela sala era o chão sujo de fezes e urina. Um enorme boi preto estava ali. Ele caminhou vagarosamente em direção ao guarda..se aproximou..se aproximou...e sumiu...
Para o meu querido amigo, J.P.Fox...Que Deus tenha piedade de todos nós...
Porto Alegre, 4 de março de 2015.