A LINHA QUE NÃO QUERIA MAIS A AGULHA

Eram ambas, agulha e linha, inseparáveis, aonde uma ia a outra ia atrás. Ziguezagueavam por tecidos multicores, das mais diversas texturas, formatos, padronagens e linhagens.

Era tão forte a ligação que havia entre as duas que todos os retalhos de tecidos, botões, dedais, agulhas dos vários tamanhos e demais utensílios da maleta de costura tinham-lhes muita admiração e estima.

Sempre que aparecia um trabalho novo as duas estavam ali, prontas para o que der e vier e faziam as suas costuras e cerzidos com a maior harmonia, disposição, alegria e perfeição.

Um belo dia, depois de tantos trabalhos em conjunto, a linha não quis mais acompanhar a agulha. Cansara de ser conduzida ao bel prazer daquela rigidez metálica reluzente, porém fria e inflexível.

Então, quando surgiu uma nova empreitada, a linha estava de tal forma enroscada a outras que não foi possível utilizá-la daquela vez.

Não restando alternativa a agulha se enganchou em uma linha nova e seguiu firme os seus movimentos sinuosos, perfazendo os trajetos necessários à realização daquela nobre tarefa de unir tecidos, pregar botões, colchetes, criar ornamentos, compor vestimentas.

Embora tenha gostado daquela nova companheira a agulha se viu envolta em uma inexplicável tristeza, nunca antes vivida por ela.

Após muito refletir sobre o que a teria deixado tão infeliz, chegou à conclusão que o motivo era a falta que lhe fazia aquela branquela, magricela, da qual até então jamais se separara.

Tão logo foi colocada de volta ao estojo, foi-se ter com a rebelde companheira. Ao encontrá-la, percebeu que também ela, a linha, estava muito triste e quis saber o porquê daquela inesperada atitude. A linha então respondeu à agulha que não suportava mais ser conduzida e não ter o direito de fazer o que bem entendesse. Não se prestaria mais a exercer um papel coadjuvante. Queria ela ser tal qual a agulha; segura de si e sair rompendo todas as barreiras.

Ficaram ambas em intensos e longos momentos de reflexão, quando a agulha então disse para a linha: “deixa de bobagem amiga, você não nasceu para fazer esse trabalho tão pesado. Você foi concebida para seguir a trilha já aberta por mim e não ter que abrir caminhos e enfrentar tecidos muitas vezes casca-duras. Eu sou rígida, inflexível, não posso me curvar. Já você, essa leveza, maleabilidade, consistência e singeleza, a tornam formosa, perfeitamente adaptável, inigualável. Por tudo isso. o trabalho que realizo não é próprio para alguém do seu perfil. Há perfis adequados para cada tipo de atividade e, no nosso caso, o meu é o de enxergar o melhor caminho, abri-lo e guiá-la para que possa cumprir com perfeição aquilo que lhe compete. Ademais, observe você como é nobre a sua função: assim que te encaminho pelos tecidos e asseguro-me de que está suficientemente alinhavada, ato os nós, saio de cena e é você que segura as pontas, ou melhor, os pontos. E tem mais, exclamou a agulha! Eu também não faço o que quero, ninguém faz. Tudo o que eu faço é sempre manipulado por mãos nem sempre hábeis ou por máquinas que controlam os meus movimentos, a hora de iniciar, a hora de parar, enfim, a minha produção. Assim é a vida: ninguém nunca é inteiramente livre”.

A linha, após muito pensar nas sábias palavras da agulha, saltou de súbito, enfiando-se por sua fenda e ambas continuaram unidas para sempre, seguindo juntas, cada qual o seu destino.

Rafael Arcângelo
Enviado por Rafael Arcângelo em 21/01/2015
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