A Segunda Vida
Fingiu-se de morto entre os mortos e teve a vida a salvo. A aldeia incendiada mantinha, redondas, as paredes das casas e a pintura, geométrica ou em linhas quebradas, era tudo o que sobrara da normalidade feliz. O rio, lá em baixo, passou a ser a fronteira entre a vida e a morte. Ficar ali com os espíritos, fortalecer-se com eles, resistir seria a decisão mais acertada? Ali não voltariam, era certo, mas uma aldeia sem gente a apodrecer ao sol seria sempre um lugar maldito. As lágrimas secaram por ser excessiva a tristeza e algo na sua juventude lhe pedia ação, fuga, vingança, recomeço. Lançou um último olhar ao lugar onde nasceu, viu arder a cabeça cimeira do totem e decidiu seguir, sem destino, até encontrar outro lugar para renascer. Gastou as forças a fugir, a procurar, a crescer por dentro. Aprendeu que o ódio fazia-o correr mas pesava muito, que a fé nos ídolos não era garantia de vida, que a solidão fazia sofrer o seu corpo e sufocava a sua vontade de viver. Tão cansado se achou que, naquela noite, decidiu morrer. A vida sem amor e sem confiança, sem companhia e sem solidariedade, era um inferno. E bebeu todo o veneno. Ofendia Deus, reconhecia, mas achava-se incapaz de prosseguir como homem. Que fosse Deus a escolher que bicho seria. Acordou deitado em esteira nova com uma bela jovem a cuidar do seu conforto, da sua saúde abalada, a abraçá-lo nos seus medos. Nada receasse. Todos o viram chegar como coelho e todos os que se escondem em animais doces são espíritos superiores, disse-lhe. Renascer ali não aliviaria o seu trabalho mas garantia-lhe o recomeço. Ela estava só a ajudar.