ESCURIDÃO

Noite de Lua Nova. Na imensa planície só se destacavam as luzes das estrelas e as dos faróis da caminhonete cabine dupla que avançava, aparentemente para lugar nenhum. Dentro do veículo, o motorista, o carona e uma pessoa amarrada e amordaçada no banco de passageiros que parou de repente atrás de um pequeno bosque. O motorista desceu, se escorou no veículo e acendeu um cigarro.

Enquanto via a fumaça subir e sumir na escuridão, tentava lembrar da última vez que sentira alguma coisa em um serviço como aquele. No caminho desde a favela viera pensando na estrada que o trouxera até aqui. Adolescência estragada pelas drogas que começou a usar para confrontar a família, as internações, os vinte anos de abstinência

onde fez faculdade de enfermagem, arranjou emprego, casou e teve uma filha. Um dia, só mais uma paquera com uma residente de medicina. Uma desculpa esfarrapada para a esposa e ir assistir um filme com ela ( qual era mesmo?), um beijo, uma transa. Sem querer só mais um caso se tornou um tórrido caso de amor que fez ele largar a esposa, filha e serviço público para se lançar em uma louca aventura em outra capital. Uma relação intensa, cheia de brigas e reconciliações, até que, sem que se desse conta, voltou a beber. Da bebida para a droga foi um pulo. Para drogas mais pesadas, um COREN e um CRM juntos, foi um pulo. De repente a morte dela por overdose, a perca do emprego, sua queda vertiginosa até aquele barraco na favela e a decisão, no mais absoluto desespero, de usar drogas até morrer.

Tirou uma caixinha de Tic-Tac do bolso e colocou a bituca. Não deixar traços, procedimento padrão. Ia dar os tênis e a roupa que estava usando para um nóia qualquer e se livrar da caminhonete vendendo do outro lado da cidade. Tudo protocolo que fazia questão de seguir a risca. Ainda mais de uns tempos para cá, onde tem tido visões nítidas da polícia arrombando a porta ou do estampido vindo de lugar nenhum seguido pela dor. O problema nem era estar paranóico, quase uma necessidade em sua profissão, era desejar, ansiar que isso acontecesse. Anda pensando seriamente em tomar um tipo de antipsicótico.

- "Ratinho, desce aí! Não esquece de pegar a caixa".

Abriu a porta do passageiro, jogou o manietado no chão, de bruços. Calçou luvas, tirou a arma da cintura e atirou a queima roupa em sua nuca. Junto com o passageiro rapidamente cortou suas amarras e mordaça, com uma marreta arrebentou sua cabeça e seus joelhos, enquanto seu colega quebrava todos os dedos das duas mãos. Já era muito prestigiado, mas isso aumentou exponencialmente quando começou a fazer esses serviços também. Geralmente fazia sozinho para ninguém saber que não os torturava.

Nos seus anos de hospital, sempre P. S. já era uma lenda pelo seu sangue frio., mas nunca imaginou que chegaria a tanto. Um mês depois que chegou na favela, desmaiado na exaustão de dias de uso de crack intensamente, foi acordado por quatro caras armados com fuzis. Levaram-lhe para uma casa aonde estava um chefão que havia levado dois tiros na barriga e um na perna.-

-"Ou você salva ele ou morre, enfermeiro!"

Pediu um pouco de pó, cheirou uma pequena quantidade da droga e escreveu em papel o material que precisava. Em menos de vinte minutos trouxeram tudo. Nesse tempo examinou com cuidado o baleado. uma da barriga e a da perna haviam entrado e saído. A terceira, pela altura e ângulo do furo deveria estar alojada no fígado, sobreviveu por milagre. Se a bala tivesse acertado a veia porta ou uma artéria já seria estatística. Abriu um pouco e com uma pinça grande e um imã retirou o outro projétil. Fez-lhe correr bastante soro fisiológico com eletrólitos para compensar a hemorragia e queimou a ponta da pinça para cauterizar possíveis sangramentos. Deu pouca morfina para poder ter ideia do que estava fazendo. Depois de tudo terminado deu um tempo de antibiótico ev. Apesar da sua pericia, a.verdade é que o bandido não morreu por milagre. A partir daí sua vida mudou, lhe arranjaram outro nome, outro diploma, outro lugar para morar, outra vida. Lhe prepararam uma sala toda equipada em um porão. Ferimentos a bala e a vários tipos de arma, remoção de apêndices, vesículas, cálculos, abortos e vários outros tipos de problemas.

Isso lhe trouxe de volta do mundo dos mortos. Estudava como louco e diminuiu muito seu uso de droga. Na hora que ele quisesse, uma mulher do jeito que ele queria. Pai agente da polícia científica, mãe investigadora, avô delegado do DENARC, passou a dar assessoria à seus novos amigos. Era o que sempre sonhou na esquecida adolescência, mas depois do ânimo inicial sentia-se cada dia mais vazio...

Terminaram o serviço. Enquanto seu companheiro escrevia com uma faca "ganso" no peito do rapaz, se colocou atrás dele e atirou em sua nuca. Em seu peito escreveu "ladrão". Recolheu tudo, limpou a cena de qualquer indicio incriminador. Entrou na caminhonete, manobrou e começou a fazer o caminho de volta. Sem que fossem chamadas vieram lembranças de momentos com sua filha e de hinos cantados quando parou de usar drogas e frequentava a igreja. Instantes sublimes aonde o tempo parava e que vislumbrou o Paraíso. Que perdão pode haver para quem conheceu o céu e escolheu não entrar? Uma lágrima rolou do seu olho, tão rara, tão deliciosa, tão redentora... Mas seria preciso um mar delas para a sua redenção, e ele só tinha aquela.

Lembrou-se do nome do filme daquela tarde: Estrada para Perdição.

Aristoteles da Silva
Enviado por Aristoteles da Silva em 15/01/2015
Reeditado em 27/07/2024
Código do texto: T5102789
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