FLOR DE LÓTUS
Lembro-me como se fosse hoje, daquela bela tarde sem nuvens. Do casal se amassando em plena vilela pública e do incessante e dispendioso fluxo de pessoas naquele lugar. O dia agraciava a todos os habitantes daquele enfadonho lugarejo com a mais sublime e escaldante tarde de sol. Quase ninguém notava a fadiga dos trabalhadores de rua, com suas faces suadas e castigadas pela sua boa e necessária atuação, indispensável função. Refiro-me a todos os garis e vendedores ambulantes que estão ali desprotegidos, fatalmente imersos aos olhares dos ignorantes, que muitas vezes dizem possuir cargos e funções mais importantes. Foi ali, em meio a todo aquele tumultuo que ela me notou, me fuzilou com seus olhos e me falou:
--- Moço, você mesmo! Poderia me ajudar comprando artesanato?
Eu nunca fui um bom observador e por hora, um tanto quanto assustado, nada lhe respondi. Observando-a mais de perto e denotando um esforço tremendo para o sucesso de seu reconhecimento, pareceu-me uma desconhecida qualquer. Há anos por ali passava e todos os dias aquela multidão enfrentava, entretanto, nunca à tinha visto. Os traços fenotípicos de sua face denunciavam-na. Era sem dúvida uma herdeira dos traços de seu povo, seu rosto delineava o mais lindo e modesto sorriso de uma velha índia brasileira. Uma mulher de idade avançada, que gozava do elixir da juventude com seus cabelos negros vistosos e brilhantes, olhos castanhos vivos e pulsantes. Esta era nada mais que uma vendedora de sonhos segundo o cartaz escrito à caneta esferográfica azul na soleira dos seus produtos. O artesanato produzido e comercializado ali mesmo, em meio ao caos de pessoas circulando à rua, era composto de alguns simpáticos arcos e flechas, alguns cestos, pulseiras e apanhadores de sonhos. Confesso que um dos apanhadores de sonhos dela chamou-me muito atenção, por não ser típico de sua cultura. Então lhe pergunto:
---Quanto custa o apanhador de sonhos?
Ela me respondeu com um sorriso sarcástico, como se finalmente tivesse atraído um comprador. Porém seu olhar a denunciava. Suas caras e bocas marejavam feitiçaria, algo ruim. Havia apenas um apanhador de sonhos em seu mostruário. E como que em um ato de golpista, esta me responde:
---Este apanhador de sonhos foi feito com um cipó especial, entrelaçado e benzido pelo índio mais velho de toda região. Ele lhe permitirá que sonhes com tua amada todas as noites. Para você moço dos olhos claros, faço por cinco reais!
Eu logo vi que ela inventara aquela história com o propósito de ludibriar-me. Todavia, nunca tinha visto um apanhador de sonhos tão bem desenhado e tracejado. Possuía em seu entorno penas das mais diversas cores em uma combinação sem igual. Era inegável a minha atração por aquele artefato. Nunca ninguém conseguira me convencer tão rápido a comprar um artesanato mas, na mesma hora lembrei-me da minha bela flor de lótus. Havia apelidado assim por que era uma moça radiante, magnífica, inteligente e delicada. Simplesmente uma garota maravilhosa. Eu sabia que ela nunca se importaria comigo. E em meio a este impulso despercebido de descrença, eis que a velha índia diz.
---Toda e qualquer esperança subjaz em fortaleza aos despossuídos.
Falou-me como se fosse capaz de ler meus pensamentos, e isso transtornou-me. Seus olhos me fixavam com uma rudeza e convicção que não permitiram-me recusar-lhe a oferta. Encontrei em meu bolso direito algumas moedas - nada de mais - no esquerdo consegui com muito esforço juntar mais dois reais. Busquei então desesperadamente por minha carteira e encontrei a quantia que inteiraria os seus cinco reais. Dei-lhe aqueles trocados que para eu não faziam diferença. A índia o desprendeu de seu mural e entregou-me com grande satisfação. Ao chegar em minha casa, pendurei-o próximo da cabeceira de minha cama e, após ficar deitado olhando para este, que girava para um lado e para outro, lembrei-me da velha índia dizendo: “Toda e qualquer esperança subjaz em fortaleza aos despossuídos”. Passei então a imaginar a minha flor de lótus e em meio a um súbito suspiro, fechei vagarosamente as minhas pálpebras na eminência de um sono profundo.
Estávamos eu e ela brincado de pique esconde, gargalhávamos, paquerávamos um ao outro até sentarmos de baixo de uma grandiosa castanheira. Aquela árvore era tão gigante e frondosa quanto o nosso amor. Por óbvio éramos minúsculos aos seus pés e ali mesmo escrevemos nossos nomes, em meio a uma desvairada tentativa de ali materializar e eternizar o nosso sentimento. Coisas de casal. Ambos sentados, observando agora a leve brisa que entrecortava a grama e os galhos das árvores daquele bosque maravilhoso, busco em seus lábios consumar um beijo. Aproximo-me levemente de sua face e como se o tempo estacionasse a nossa volta, cerro meu rosto ao seu. Sinto a intensidade dos corações batendo com força descomunal em nossos peitos. O sorriso de canto que me dava e suas bochechas rosadas denunciam um leve sentimento de constrangimento. Quando ousa passar a mão em meu rosto, contornar com a ponta dos dedos os meus lábios e aproximar-se para finalmente selar o nosso pacto. Eis que acordo desesperado com urros e berros do vizinho que gritava no quarto ao lado. Parecia que lutava com alguém que lhe atacava com violência. O som passou a ficar estridente, com pratos e copos se quebrando, cadeiras caindo e o homem insano e alucinado gritava e suplicava por socorro.
Sem demora todos os moradores de outros apartamentos se puseram a ligar para a polícia. Algo de muito estranho acontecia no apartamento do seu Geraldo. Todos ali éramos vizinhos muito íntimos, e, em meio ao desespero de cada um o silêncio finalmente reina no recinto. O silêncio mordaz era agora, mais desesperador do que o barulho e os gritos que ouvíamos à pouco. Todos ali estávamos aflitos para saber o que havia acontecido afinal e nos corredores esperávamos por respostas. No meio daquela turbulenta madrugada de 31 de outubro, teria sido assalto? Roubo? Sequestro? Alguma espécie de sonambulismo ou PESADELO! Por poucos segundos estremeci, lembrando-me que havia sonhado com a minha flor de lótus. Corri para o quarto em busca do apanhador de sonhos e este não estava lá. Meu coração agora batia descompassado. Eu pensava comigo mesmo, desesperado, cadê o apanhador?
A polícia chegou e arrombou a porta do apartamento do seu Geraldo. Pude ver através da porta entreaberta, que ele estava caído no chão da cozinha, com um apanhador de sonhos em suas mãos. E com os olhos vidrados ele repetia incessantemente:
---Havia uma velha índia em meus sonhos, ela queria roubar-me!!!
E assim, deu seu último suspiro e morreu. Pasmo, branco e paralisado à porta do apartamento, pude sentir a energia ruim presente naquele lugar. Uma forte brisa gelada atacou-me de súbito. Meu corpo inteiro arrepiou-se de tal modo que apenas pude sentir um leve suspiro em meu pescoço. Eu não tive força para virar-me e olhar para ver o quê, ou quem havia suspirado no pé de minha orelha. Há minha frente os policiais tentavam desesperadamente reanimar o seu Geraldo que a alguns minutos já não encontrava-se entre nós. Foi diante desta cena e neste exato momento que ouvi uma voz fraca, moribunda em meu ouvido direito que fez-me perder o pouco controle que me restava naquele momento. Não pude controlar meu próprio corpo e urinei-me todo de medo. O cheiro de carne podre que passou a assolar o recinto não permitia-me saber se era da maldita velha índia ou dos peidos que eu soltara de medo. A voz de uma senhora de idade perpassou o meu ouvido, ela dizia:
---Para todo SONHO bom existe um PESADELO. Para toda tese e síntese existe uma antítese.
Corri desesperadamente para o meu quarto, o maldito apanhador de sonhos estava lá no mesmo lugar em que eu havia deixado. Não soube diferenciar o que era real, do que era fruto de minha imaginação. Pensei que de tanto medo não havia visto o infeliz objeto quando há poucos minutos tinha retornado. Arranquei-o com toda rispidez possível de onde eu o havia pendurado, em uma frenética luta por desatar transado por transado. Fui acordado pelos policiais que após arrombarem minha porta, tentavam me conter. Na mesma hora lembrei-me do ocorrido com seu Geraldo, e por Deus e por toda minha sanidade o que ele fazia em minha porta olhando com uma cara de quem estava todo mijado? Sim, era eu, sempre havia sido eu o perturbado. Toda luz foi se apagando. Os policiais não conseguiriam me salvar. Minha alma já havia sido roubada pela velha índia e jamais voltará.