Um Presente de Natal
Um Presente de Natal
Após acionar o alarme do veículo importado o homem alto e bem vestido saiu apressado do estacionamento do terminal rodoviário e dirigiu-se para a plataforma vinte e cinco. Depois de olhar atentamente para os passageiros que saiam sorridentes de um ônibus azul e branco, sentou-se em um banco de concreto e olhou com ar crítico para uma pequena rachadura que estava no encosto de onde milhares de minúsculas formigas saiam em direção a um pedaço de bala cuspida por alguma criança pirracenta.
Carlos pensou na tragédia, caso a morada dos insetos fosse no assento, e quase sorriu. Pouco depois, comparou as horas do relógio de pulso que usava com as do fabuloso relógio que tomava as quatro faces do último andar de um prédio revestido de granito, que graças aos seus ponteiros de néon, podia ser visto ao longe. Verificou que seu relógio de ouro, herança de família, estava certo, marcando vinte e duas horas e quarenta e cinco minutos e era véspera de Natal.
As pessoas, ansiosas para abraçarem seus parentes e amigos, davam ao local uma alegria contagiante de festa. Um homem gordo, vestido de Papai Noel, com as mãos cheias de balas de péssima qualidade, tentava atrair a atenção das crianças, que sobre o olhar atento dos pais iam formando uma grande fila.
Entre a multidão duas crianças maltrapilhas impedidas de entrarem na fila do “bondoso Papai Noel” pediam esmolas: A menina trazia agarrada ao peito uma boneca sem braços e sem cabelos e o menino, um pouco menor, arrastava amarrado a um pedaço de barbante sujo, um carrinho de plástico vermelho, que não tinha as rodas traseiras. Ela pedia dinheiro para comprar pão. Logo em seguida, ele pedia leite. As pessoas envolvidas com o Espírito de Natal fingiam não ver cenas tão comuns em nossos dias.
Carlos virou-se hipnotizado para o homem fantasiado de Papai Noel e retirou mecanicamente do bolso da camisa de seda preta, um retrato já bastante desbotado pelo constante manuseio. A criança da foto estava sorrindo e tinha sete anos quando morreu.
Alice teve quase tudo em sua breve vida, só faltou um cãozinho de verdade, ( a doença não permitia), em compensação, para amenizar a carência do amigo de verdade, teve montanhas de cachorros de pelúcia de todas as cores e tamanhos.
Carlos observava atentamente a fotografia e tentava imaginar como ela estaria agora oito anos depois. “Certamente mais bonita do que nunca”. Pensou, enquanto retirava com a mão esquerda, uma lágrima traiçoeira, que imperceptivelmente rolou pelo rosto, que não moveu um músculo até se estacionar incômoda no canto da boca.
Estava colocando a foto da filha morta no bolso quando a menina que pedia esmolas tocou com delicadeza em seu ombro e disse baixinho enquanto seus dedos ásperos deslizavam pelo tecido fino:
_ Moço, me dá dinheiro pra eu comprar pão! Logo em seguida o menino pediu leite.
Carlos, mergulhado em suas lembranças, não sentiu o roçar do dedo em seu ombro, e também não ouviu o sussurro das crianças. Essas, acostumadas ao desprezo, saíram em silêncio. De repente, como se despertasse de um transe, Carlos levantou-se bruscamente e gritou:
_ hei, crianças! É comida que vocês querem?
Menina e menino saíram correndo acreditando tratar-se de algum homem mal pronto para expulsá-los dali.
Carlos correu atrás deles. Mas, a agilidade para passarem entre pessoas, malas e embrulhos era assustadora, estavam quase perdidos quando a boneca caiu.
A menina, tomada pelo pavor de perder o brinquedo, por uma fração de segundo parou, e lá nos recôncavos sombrios de sua mente, recordou a mulher esfarrapada, em meio a um tiroteio, no morro onde morava, proteger o filho com o próprio corpo. O menino, apenas coberto pelo sangue materno, saiu ileso, porém, daquele dia em diante só a viram em sonhos.
Nina pensou na boneca, “tão indefesa, que nem braços têm”, instintivamente voltou correndo, mas, quando se abaixou para pegá-la, Carlos, foi mais rápido e a segurou primeiro, Nina o encarou, e tentou articula palavra, mas havia um nó na garganta que a sufocava fazendo o peito doer, com certeza para impedir o coração que teimava em voar pela boca escancarada. Limitou-se a esticar o braço, que tremia de maneira frenética.
Carlos, diante do desespero da criança, queria poder sorrir e tranquilizá-la. Mas, depois que a filha morreu, teve o rosto e o coração endurecidos como pedra. Tinha certeza que nada no mundo o faria sorrir outra vez, nada mesmo. Então disse:
_ Calma. É a boneca que você quer? Peguei-a pra você!
Nina sorriu. Era um sorriso feio, tal como um esgar de algum animal ecoado. Pegou o brinquedo e agradeceu.
Carlos levantou-se e falou com voz suave:
_ Não me agradeça agora, vamos comer primeiro. Para onde foi seu irmão? É seu irmão, não é?
Nina fez com a cabeça que sim.
O menino, que se chamava André, estava escondido dentro de um latão de lixo e foi difícil convencê-lo a sair. Só quando uma senhora, dessas que faz morrer de inveja qualquer árvore de Natal, falou:
- “Vai com o moço, menino. Ele vai te dar comida”, foi que rapidamente saiu cheirando a uma mistura de bagaço de laranja e pó de café.
Carlos, sem se importar com os olhares dos expectadores, saiu com as duas crianças pelas mãos e dirigiu-se para a lanchonete. Por sorte havia uma mesinha desocupada no fundo. Uma garçonete corpulenta, com um avental cheio de babados cor de abóbora, que fazia lembrar uma capa de botijão de gás, ignorando a presença das crianças, logo veio atendê-lo:
_ Em que posso servi-lo. Senhor?
_ Por favor, me traga pães com manteiga, leite e café para essas crianças.
A garçonete olhou para os acompanhantes sujos de olhos arregalados e deu um sorrisinho enigmático antes de dizer com um tom jovial:
_ É pra já!
Carlos ficou de pé e experimentou uma sensação indescritível ao perceber que as crianças, saltitavam de alegria e não conseguiam conter o riso e as lágrimas enquanto devoravam o pão.
Passou a mão pelos cabelos sedosos e relembrou a vida abastada e os brinquedos caros que teve que num piscar de olhos, foram substituídos por veículos e cavalos de raça, e, no entanto, agora estava envergonhado.
Com um brinquedo daqueles poderia ter matado a fome de dezenas de crianças por vários dias, e bastava um cavalo, para ter acabado com a fome de centenas por um bom tempo. Mas, precisou perder o que mais amava na vida, para em uma noite de Natal abrandar o coração a ponto de se tornar sensível o bastante para entender a crueldade da fome instalada de maneira grotesca naqueles corpinhos minguados, cujos trapos deixavam à mostra as manchas e machucados como uma horrenda obra de arte.
Um desespero crescente apoderou-se dele quando concluiu que a alegria que sentia a cada presente que ganhava em sua vida faraônica não era nada se comparada á alegria daquelas crianças diante de um pedaço de pão.
Depois vieram refrigerantes, bolos, doces, salgados e um copo de gelatina azul, que o menino pediu só por causa da cor, mas achou horrível quando em contato com o dente cariado o fez urrar de dor.
Carlos sentiu-se incomodado, quando viu a menina esfregar um pedacinho de bolo na boca da boneca e o menino, mesmo sentindo dor, ajeitar com cuidado o carrinho no colo. Perturbado com a dimensão do amor que eles dispensavam àqueles brinquedos tão miseráveis. Amor que ele nunca experimentou sentir por nenhum dos incontáveis brinquedos que teve, inconscientemente, sentiu a inveja característica das crianças que acham que podem ter tudo e sem perceber, disse num impulso:
_ Hei! Eu quero esse carrinho? Nunca tive um desse.
O menino olhou para o carinho, depois para o pedaço de bolo de chocolate que ainda estava sobre a mesa, outra vez para o brinquedo e falou enquanto desenrolava o barbante dos dedos:
_ Se o Senhor nunca brincou com um. Pode ficar, é só mandar colocar rodinhas nele que fica bom.
Carlos pegou o carrinho desviou os olhos para a menina e falou:
_ E você, dá essa boneca para mim?
Nina esboçou o mais lindo sorriso que ele já viu e ao lhe entregar o brinquedo encheu os olhos d água e falou com voz embargada:
_ Sei que vai cuidar bem dela. Pode ficar.
_ Não vai me dizer que vai chorar?
_ É de alegria moço. Eu não vou chorar.
Mas a menina mentiu. Chorou muito, e, enquanto soluçava debruçada à mesa. Carlos por um momento pensou em quantos anos luz estivera distante da realidade do mundo em que vivia. Finalmente quando deu por si, era dono dos dois brinquedos velhos. Pensou em devolvê-los, porém, sentiu-se na obrigação de fazer algo melhor.
Enfim, quando as crianças saciadas se levantaram, ele pediu uma sacola à garçonete e colocou o carrinho e a boneca dentro, e as levou a um Bazar em frente: Para o menino comprou um carrinho metálico com controle remoto e para a menina uma boneca que falava mamãe.
No momento em que Nina viu a boneca arregalou os olhos negros e disse com convicção:
_ Eu não quero essa boneca!
_ Por quê? Prefere à velha?
_ É que dá muito trabalho. Depois fica muito difícil alguém querer.
Carlos teve vontade de passar as mãos nos cabelos crespos dela e ajeitar a tiara branca de material barato que os prendia para trás. Aquele adereço, aos olhos de Carlos, era uma coroa de brilhantes, que em contraste com a pele negra, lhe dava um toque de realeza ou talvez de santidade. Entendeu por que ela se emocionou quando lhe pediu a boneca, provavelmente a mãe andou de porta em porta à procura de alguém que os adotassem para que tivessem comida e um lar. E agora sabe Deus para onde vão...
_ Mas, faço questão que escolha um outro brinquedo senão, não fico com a boneca. Disse Carlos enfático.
Nina deu um sorrisinho sem graça e falou:
_ Quero um cachorrinho, sempre quis ter um de brinquedo, os de verdade que vivem na rua já são todos meus.
Houve um momento de silêncio e sem perceber ele retirou a fotografia da filha do bolso. Quando as crianças viram a foto disseram em uníssono:
_ O senhor tem o retrato do anjo?
Carlos sem dizer nada colocou a fotografia de novo no bolso.
As crianças olharam uma para cara da outra com um misto de surpresa e alegria.
Carlos então comprou um cachorrinho branco e preto que latia e pulava. Assim que as crianças pegaram os brinquedos novos ele perguntou com voz pausada:
_ Para onde vão agora?
_ Vamos para casa rezar. Disse a menina. Nossa mãe nos ensinou a rezar antes de morrer.
_ Onde moram?
_ É bem perto daqui. Disse a menina.
_ Eu gostaria de saber com quem vocês moram. Poder ajudar no que for preciso.
_ Não se preocupe seu moço, moramos com pessoas boas, que nunca nos farão mal.
Carlos, cabisbaixo, já estava saindo quando a menina agachou-se e disse:
_ Moço, moço, não consigo fazer o cachorrinho pular me ajuda aqui.
Assim que ele abaixou-se para pegar o brinquedo as crianças, uma de cada lado, lhe deram um beijo no rosto e saíram correndo.
Carlos ficou a contemplá-las até que se perdessem entre a multidão. Voltou para o mesmo banco e não viu mais as formigas.
No estacionamento Nina e André foram avistados por uma mulher que achou estranho crianças de rua com brinquedos tão caros. Ela pensou em chamar a segurança. Mas, a alegria que elas irradiavam era tamanha que a impediu. “Melhor que contratem mais seguranças”. Pensou.
A mulher esguia, bem maquiada, que estava encostada em um carro de luxo, com uma bonita bolsa de couro marrom com fivela enorme e reluzente, ficou observando as crianças passarem. De repente, o carrinho do menino desgovernado pela falta de prática agarrou em seu salto:
_Moça, disse ele já com cara de choro. Posso pegar meu carrinho?
_Pode, mas só uma coisinha. Quem te deu esse brinquedo?
O menino ficou calado, mas, a menina logo falou convicta:
_ Foi o Papai Noel.
_E desde quando Papai Noel existe?
_Moça, eu também não acreditava, mas ontem eu e meu irmão rezamos muito pedindo para encontrá-lo. Foi a primeira vez que ganhamos presentes de Natal. Acredita nisso? Só que ele é diferente desses velhos que não deixam a gente pegar balas.
_ E como ele é então?
Havia um brilho diferente nos olhos dela antes de responder.
_ Ele e novo, bonito e não tem barba.
Soraia naquele momento deixou de ser a mulher amarga e irônica que se transformou depois da morte da filha e lembrou-se de Alice, que morreu acreditando que Papai Noel era novo, bonito e sem barba. Carlos a fez acreditar que era assim. “Coitadinha”. Pensou. ‘Morreu sem saber que o pai dela era o Papai Noel, novo, bonito e sem barba que ela tanto amava’.
Soraia, com dificuldade para conter as lágrimas que teimavam em sair de seus lhos claros, disse quase em pensamento:
_ De um Papai Noel assim até eu quero ganhar um presente...
Mal acabou de balbuciar as palavras e as crianças já haviam desaparecido.
Pouco depois Carlos chegou ao estacionamento e ao ver a mulher encostada em seu carro falou surpreso:
_ Soraia! Você não viria de ônibus?
_ Nunca viajei de ônibus, e nem tenho vontade. Você sabe disso. Na verdade queria te fazer uma surpresa. Olha o presentinho de Natal que meu pai me deu.
Carlos olhou fixo para a magnífica Ferrari vermelha com bancos revestidos de couro, estacionada ao lado do carro dele e disse com sinceridade:
_ É realmente linda. Mas... Eu também tenho um presente para você.
E lhe entregou a sacola contendo os dois brinquedos velhos.
A mulher segurou o pacote com uma das mãos e com a outra retirou o carrinho. Rapidamente o largou, estava áspero cheio de terra. Depois puxou a boneca que estava limpa e enquanto a observava recordou as duas crianças irradiando felicidade, pois tinham estado com Papai Noel.
Foi então que disse com toda a certeza:
_ É o presente mais bonito que já ganhei em toda a minha vida. Ti amo.
Ficaram por um longo tempo um nos braços do outro. Num impulso Carlos a olhou bem dentro dos olhos e disse:
_ Soraia, depois que perdemos a nossa filha eu nunca quis ir ao cemitério. Eu nunca fiz uma oração, eu nunca estive diante do túmulo dela. Preciso ir lá agora é estranho, mas sinto que tenho que ir. Fica tão próximo. Vem comigo?
_ Vamos sim, vai te fazer bem. Você já deveria ter ido lá.
Enfim, quando chegaram, viram o carrinho metálico e o cachorrinho em cima da sepultura da filha e as duas crianças ajoelhadas diante de um anjo de pedra.
Carlos virou-se para a mulher e disse fazendo um esforço tremendo para sair à voz:
_ Meu... Meu Deus. São as crianças. E moram no cemitério, por isso me disseram que as pessoas com quem moram nunca lhes farão mal.
_ São, e estão rezando diante do anjo que papai mandou um artista italiano esculpir.
_ Não sabia que seu pai mandou fazer um anjo em mármore e colocar em cima da sepultura da nossa filha. Por que não me disse nada?...
_ Achei que poderia fazê-lo sofrer ainda mais. O artista usou a cópia daquela foto que você carrega no bolso.
_ Agora entendi por que as crianças quando viram a fotografia ficaram espantadas e me perguntaram se eu tinha um retrato do anjo.
_ Acho que foi por isso que elas pensaram que você era Papai Noel. Afinal, você nunca deixou de andar com o retrato da nossa anjinha no bolso. Olhe para elas. Só os seres iluminados acreditam em Papai Noel e tem a proteção de um anjo tão especial.
Carlos e Soraia estavam tomados pela emoção quando se ajoelharam sorrateiramente atrás das crianças e de cabeça baixa começaram a rezar. Mas, só depois de levantarem os olhos para o anjo, que tinha um sorriso esculpido no rosto de pedra, foi que tocaram suavemente no ombro das crianças e disseram em meio a uma oração:
_ Vocês querem ser nossos filhos?
Soraia e as crianças sorriram e com certeza Deus olhou para aquela nova família no momento exato em que o rapaz também sorriu.
FIM