O Prestígio de Bernard Kadar

Havia uma fumaça letal saindo do cigarro esquecido no cinzeiro. Se Bernard tivesse órgãos além de seus ossos nasais, certamente teria morrido, asfixiado, enquanto dormia. Era uma benção que só seres como ele poderiam se vangloriar.

Sobretudo, era um indivíduo preocupado com suas tarefas. Ele continuou deitado na cama de madeira, embora o colchão fosse confortável; se não levantasse meia hora antes... felizmente o alarme assinalou o começo da sua segunda e ele acordou. Custou a levantar e escovou os dentes, limpou os ossos frontais e nem parecia ter a idade que tinha. No cabide estava o casaco com que usava para ir ao trabalho e a bengala, cuja era essencialmente desnecessária, mas a usava para posar de burguês e, além disso, se sentia bem consigo.

Na rua tateava com ela pela calçada suja e cumprimentava seus circunvizinhos. Londres era um lugar desprovido de higiene, mas ele sempre estava disposto a ver o lado gracioso das banalidades. Dona Flor regava as palmas-de-santa-rita que havia recebido de presente no seu aniversário uma semana atrás; nitidamente já estavam perdendo a vida graças ao desconhecimento da humilde sobre botânica. Bernard viu isso, e pensou que era uma ótima fonte para a próxima anedota que escreveria naquela semana. Andando mais um pouco viu o sr. George levando o vira-lata Bibby, cujo não sabia se era macho ou fêmea. Eis mais uma ideia!, pensou.

A caminhada até o seu serviço demorava, mas se ele saísse mais cedo de casa podia chegar no horário. Jamais se atrasou, com exceção de uma única vez, no segundo dia de trabalho, quando ainda não tinha o relógio da escrivaninha que lhe foi dado por sua antiga noiva a qual o nome não gosta de se recordar. Enquanto perambulava com a cartola na cabeça, o cheiro de esgoto pelas ruas estava insólito, mas felizmente impossível de inalar. Um amigo que recém conseguiu um automóvel — um Benz Velo — passou por ele e o chamou pelo nome. Olhou para o lado, viu que era Melville. Este ofereceu carona, sabendo das condições do amigo até o emprego. Porém, orgulhosamente, Bernard respondeu que não precisava, pois desta forma caminhava contemplando a paisagem de Londres, ademais não era a primeira vez que ia até lá a pé.

— Essa caminhada cansativa não te dá mais estresse no trabalho?

— Meu trabalho não estressa! — reclamou Bernard.

Melville soltou uma risada de aceitação e guinchou com o automóvel rua a frente. O carro era de segunda mão, via-se de longe e muito bem de perto quando se assentava num dos bancos. Certamente, foi por meios ilegais que Melville o conseguiu, mas era uma oportunidade irrepetível. Desde então ele mudou seu comportamento, tal como um homem que tira uma vida.

Enfim, Bernard chegou na imprensa em que trabalhava. Ele era redator, mais precisamente um cronista que escrevia anedotas humorísticas sobre situações cotidianas. Além de querido no local, era um dos funcionários mais velhos e reconhecidos por lá. Tinha o editor Fettes, que sempre o incumbia dos trabalhos pesados e que exigiam certa rapidez no processo, porquanto sabia que seu funcionário era do tipo que dava conta do recado. A diagramadora Sylvia admirava os seus textos, além de ser sua leitora mais ativa e, por que não, privilegiada. E tinha o novato MacFarlane, o qual também era um simpatizante dos textos de Bernard, embora dissesse que ele devia experimentar outros gêneros além das anedotas de humor.

Era segunda-feira, e como sempre, ele passou o resto do dia na imprensa escrevendo, reescrevendo e revisando a anedota mais engraçada que alguém já lera. Suas segundas eram assim, o resto dos dias escrevia notícias comuns no seu tom cômico, mas toda semana, toda segunda, era a sua marca como escritor. Na semana seguinte chegava o comentário de todos os leitores que haviam lido o seu texto. Visto que o jornal demorava para repercutir, eles esperavam uma semana para se espalhar e ver se mais pessoas leram. Entretanto, na segunda-feira seguinte viu os comentários dos leitores e sentiu surpresa com o que leu. Tinha críticas de todos os tipos, sobretudo que mudasse seu estilo e partisse para algo mais fantástico, sobrenatural e vívido. Os que prestigiavam suas anedotas não deixaram de comentar, mas os insatisfeitos queriam algo inédito, fora da zona de conforto de Bernard e do que estavam habituados. Desafiavam-no a escrever um conto de fantasia, seja qual fosse o cenário, mas que fosse bom.

O que era um conto fantástico bom? Se perguntava. Mostrou isso ao editor Fettes, e este lhe avisou que o pouco que sabia sobre fantasia não poderia ajudar na causa. Sem procurar mais conselhos além do de Fettes, quando voltava pra casa passou pela biblioteca que ficava na rua atrás de seu aposento e alugou alguns livros de autores de fantasia. Pediu ao bibliotecário que o indicasse os melhores, mais lidos, respeitados, célebres, eternos autores que tinham uma qualidade lírica e poética excepcional em seus textos.

Gostava de dar o máximo naquilo que se propunha a fazer, e quando terminava... bem, só terminava quando calculava que estava pronto. Um perfeccionista nato. Escrevia até seus ossos doerem, a caneta perder a tinta, o papel acabar, a papelaria fechar e o seu dinheiro sumir. Era a vida que levava como contador de historietas, mas, segundo o que proclamava quando questionavam, era um trabalho que lhe fazia feliz. Leu muito, muito mesmo. Ainda assim, não foi o suficiente para achar a resposta do conto fantástico perfeito. Arriscou uma fantasia sobre vampiros numa cidade, e na segunda-feira seguinte, foi lá matutar sobre o escrito e revisar. MacFarlane disse que gostou muito do conto, mas o tema de vampiros não era novo. Por outro lado, Sylvia e Fettes se surpreenderam ao testemunhar que o famoso contador de histórias humorísticas tinha talento para histórias fantásticas.

Uma semana depois, veio a corrente de críticas. Dessa vez, todas negativas. Os seus antigos leitores, que gostavam de seu humor, se decepcionaram com esse novo estilo, alegando que ele perdeu sua voz como humorista. Os que clamavam por fantasia, tiveram seu pedido atendido, mas desagradaram-se com o curso da história. Reinou nos comentários as injúrias contra o tema de vampiros, pois era algo tão já explorado que qualquer história em torno disso fadaria ao fracasso.

Bem aventurado do jeito que era, Bernard arcou com as críticas e mesmo aprendeu delas. Prometeu a si mesmo que se esforçaria no próximo, e foi buscar mais livros de autores diferentes de fantasia. Toda vez que voltava em casa, depois do trabalho, ele se recolhia perto da escrivaninha e debruçava os cotovelos encima dela para comer os livros. No término, ia pra cama refletindo, falando consigo mesmo sobre a estrutura dos contos e do que faz um conto fantástico bom. Dessa vez, resolveu escrever uma fantasia medieval, sobre um anão que se arrependia de ter nascido como tal e, pelos seus dilemas, busca se reafirmar como um humano comum, da raça dos Homens. Mas não era aceito, e isto gerava uma série de conflitos para os humanos e a sua própria raça, algo mais digno de um romance. Pensando nisso, deu um fim apropriado para o anão com um contexto fantástico que os leitores pediam e mandou para a imprensa.

A cena se repetiu na terceira semana. Alguns gostaram, muitos criticaram destrutivamente alegando que faltava um elemento sobrenatural vívido que causasse sensações só por estar em sua presença. Clamavam por algo místico e mentalmente palpável de uma maneira que o protagonista ou o contemplasse ou o temesse, tal como uma literatura fantástica deve ser. Isto, embora fosse uma grande dica e um conselho disfarçado de crítica, feria o orgulho de Bernard. Ele já havia se afastado de suas origens como humorista, e agora explorava terrenos narrativos desconhecidos. Certamente, pensava, não servia para fantasia. Mas o que seria dos leitores se ele voltasse às anedotas? O que seria da sua coluna? De fato, a repercussão aumentou desde que se propôs a escrever fantasia. E pelos seus comentários, era implícito que as pessoas que o liam queriam o seu bem, ansiavam que melhorasse. Assim, foi pedir um palpite à Sylvia, que também escrevia. Ela o indicou um clube de escrita voltado para aspirantes a romancistas de ficção fantástica, perto de sua casa.

Quando saiu do edifício da imprensa, foi lá junto de Sylvia. O local se chamava “Butterfly” e os frequentadores eram majoritariamente compostos por mulheres, das características mais excêntricas. Havia a Jordan, que gostava de pegar os clássicos fantásticos e dar um sentido erótico aos fatos. Daisy, que vivia mordendo a ponta do lápis – aparentemente um tique nervoso – escrevia sobre príncipes medievais e não se cansava desse clichê. Tinha o Tom, um garoto, o mais novo deles. Parecia não ir com a cara de Bernard desde que este lhe foi apresentado, e suas histórias sempre circundavam em torno de seres que ele mesmo inventava e chamava de “místicos”. A Sylvia – acabou descobrindo – escrevia fantasia urbana, porém com os mesmos temas já muito explorados que MacFarlane lhe avisou. Além deles, Liza se destacava; não escrevia nada mas ilustrava os contos. Seus desenhos perturbadoramente remetiam a símbolos fálicos e a temas sexuais, além da própria se alegar uma ninfomaníaca.

— Não acredite nela. — alertou Sylvia. — Ela fala isso porque é comum pensar que pessoas que escrevem sobre coisas sobrenaturais são meio... especiais, psicologicamente.

— Está dizendo que eu tenho que ser louco a fim de escrever algo decente?

Isso foi a duas semanas antes desde que começou a frequentar o clube. Agora, está afastado. Disse a Sylvia durante o trabalho que não era por nada pessoal, acima de tudo porque sentiu que o grupo não estava ajudando muito nos seus textos. Sylvia retrucou constatando que entendeu, mas mesmo sem ver expressão alguma no seu rosto, notou que de alguma forma ela se entristecera.

Se empenhou sozinho na escrita do conto novamente. Pôde, no mínimo, saber como não se deve fazer um conto de fantasia graças aos escritores do clube Butterfly. Fosse na chuva ou no sol, ele estava na escrivaninha, solitário, focado no seu trabalho. Aparentemente, o conto custava a sua vida. Se isolou da sociabilidade, não contatava amigos; saía apenas para comprar caneta e papel, além de tirar o lixo de casa. Seu aposento transformou-se numa casa de papel com várias folhas de manuscritos pelo chão. Pôs sua alma no bendito escrito, rezando para que fosse o último e melhor que todos os anteriores. Levou para a imprensa na segunda. Sentia-se no limite, e imaginava que não faltava nada poeticamente e liricamente no conto. Conquanto, MacFarlane olhou de relance o manuscrito, e pediu para que o deixasse averiguar o texto. É desnecessário dizer os pontos que ele indicou que faltava, visto que os leitores falaram a mesma coisa na semana seguinte: falta o elemento sobrenatural! A coisa vívida, que apavora e embeleza simultaneamente!

Portanto, concluiu Bernard, era impossível fazer um conto fantástico perfeito. Mas por que aqueles autores eram tão reconhecidos, aclamados e discutidos mesmo depois de séculos mortos? Porém, era inútil pensar nessas ideias. MacFarlane veio até ele oferecendo ajuda para os contos, mas ele recusou. Desistiu disso, dizia ele, voltaria com as anedotas humorísticas. Mas se sentia tão deprimido e sem vontade, que não conseguia ver graça nas coisas.

Quando voltava pra casa, tateando o chão com a bengala, seu amigo Melville passou de Benz Velo por ele. Ofereceu-lhe carona, e Bernard, num estado impróprio seu, aceitou. Durante a viagem que durou menos que dez minutos, Melville falou sobre a nitidez de seu ânimo, e perguntou, porquê estava triste e sombrio daquele jeito.

— Mesmo que eu dissesse, não entenderia. É coisa de escritor.

— Como assim? Não existe categoria pra conselhos! Fala que eu te ajudo...

— Bem... é sobre minha coluna. Mês passado me pediram para passar a escrever contos de teor fantástico. Mas todos que eu escrevia... nenhum era bom o bastante para os leitores. Não sei o que fazer. Vou voltar a escrever as anedotas.

— Você leu autores de fantasia? Tem que lê-los!

— Sim! Eu li todos, os famosos, conhecidos, desconhecidos! Tudo o que você pode imaginar.

— Você tem razão, não sou o melhor pra dar esse tipo de conselho. Mas, você sabe, tenta fazer igual às suas anedotas.

— O que quer dizer? — questionou Bernard.

— Suas anedotas não são baseadas em eventos cotidianos? Tenta se inspirar em algum fenômeno... sobrenatural, que aconteceu ou tenha te acontecido. Experiência é importante nesse ramo, não é?

Estava ali a verdade sobre o conto, romances, crônicas, e todo tipo de história. Conte como se tivesse acontecido com você! Refletiu Bernard. Se tratava de verossimilhança, vivacidade, um realismo sobrenatural. Era isso que faltava, o que os leitores buscavam em suas histórias: o sobrenatural encarnado na realidade.

— Obrigado Melville. E, acho que farei como você disse. Será minha tentativa ultimata com contos fantásticos. — agradeceu Bernard.

— Boa sorte. — desejou, seguido de uma risada. — Só cuidado pra não enlouquecer com as coisas que imaginar.

Assim, na porta de sua casa, Melville guinchou com o automóvel roubado e sumiu de sua visão. Quando entrou não sabia o que escrever, não tinha ideia alguma na cabeça. Se lembrou do que MacFarlane recomendou, do que viu e leu no clube Butterfly; recordou-se das palmas-de-santa-rita da Dona Flor, a Bibby ou Bibby do sr. George; conquanto, nada o inspirava. Fosse o que fosse, não sentia tanta culpa como sentiria a um tempo atrás, caso não conseguisse escrever nada. A desistência era gritante. Se prostrou na cadeira da escrivaninha, e olhou o restante do quarto. A cama vazia, suja; o guarda-roupa, a única coisa que podia se orgulhar; o cabide com o casaco, a bengala e o relógio... o cinzeiro estava vazio, mas a preguiça de se levantar e tragar um cigarro imperava. Só um milagre, um fenômeno sobrenatural, uma epifania, poderia lhe incutir uma ideia nesse momento.

A ideia chegou quando ele menos esperava, encarnada e com todos os seus atributos que os leitores sempre pediram. Aterradora e contemplativa, tal como eles falavam. Guerreou para agarrá-la e passar ao papel, mesmo que escrevesse com sangue nos dedos. Mas já não tinha forças, relutava, não teria um final completo. O bloqueio veio, mas a ideia continuou ali, esperando que ele fizesse algo com ela. Oculta na sua dimensão, apenas esperava que ele a desse forma e fizesse acontecer. A imaginou, materializou-a, aconteceu, escreveu-a e finalizara.

Na segunda seguinte, ninguém viu Bernard comparecer no prédio da imprensa. A coluna onde publicava suas anedotas e agora seus contos fantásticos, estava vazia. Mas, milagrosamente, seu conto apareceu nas folhas do jornal na forma de uma notícia. O título era “A Lenda Urbana...”, e todos que leram, sem nenhuma exceção, se apaixonaram pela crônica mística. MacFarlane reconheceu que enfim Bernard chegou no estado nobre do autor de fantasia. Seu conto possuía um acontecimento inimaginável e fazia jus ao termo originalidade. O texto repercutiu nacionalmente em questão de semanas, graças ao modo epistolar e jornalístico com que foi escrito, e os números de leitores que criticaram negativamente eram desprezíveis. De fato, bem ou mal, todos comentavam sobre. O conto — visto como uma notícia — era fonte de admiração e medo para a realidade, pois a crônica narrada teve a cidade de Jugular como cenário. Não demorou para que muitos se questionassem quem era o autor, o seu nome, onde morava, o que fazia além de escrever e onde estava.

Bernard nunca mais foi visto desde aquela segunda. Muito era debatido sobre sua desaparição, se o assassinaram, se viajou... a infelicidade foi que o autor não viveu o suficiente para lograr de seu prestígio.