O GOL DO BRASIL (Copa do Mundo de 2010)

Na sala de parto, médicos e enfermeiras se desdobravam para dar conta de uma intervenção complicada. O corre-corre, pelo saguão do hospital, indicava o nervosismo da parentada aflita e de funcionários solícitos.

Uma cesariana de última hora resolvera o intrincado problema. A parturiente não conseguia a dilatação necessária e o menino era uma criatura de bom tamanho. Nasceu com quase cinco quilos, cara e barriga de Buda mirim. Como se não bastasse, o umbigo era quase do tamanho de um limão galego e os médicos pensavam que aquilo fosse alguma possível hérnia ou coisa parecida. Foi um verdadeiro sufoco, o parto.

Mal botou a cara no mundo, o moleque arregalou os olhos e abriu um berreiro do tamanho de um bonde. O pessoal do hospital e pacientes, pelos corredores, imaginaram que fosse o primeiro gol da Seleção Brasileira, nos campos sul-africanos, contra a Argentina. Juntaram-se ao berro do nascituro e berraram, em coro, pelos corredores afora: Gooooooolllll!

Nas telas das TV´s, por toda a parte do hospital, Galvão Bueno insistia, nos seus comentários sem graça, dando palpites em mundos e fundos, como se fosse PHD em tudo. O pessoal, de olhos grudados nas telas, esperava de Galvão algum comentário sobre o gol da nossa Seleção.

-- Gol de quem? Perguntou um bebum que ia passando. Por conta da vitória da equipe brasileira, havia entornado, por antecipação, um litro de “51”, com churrasquinho, que um camelô vendia, na esquina.

-- Acho que foi do Kaká! Respondeu um gay, revirando os olhos e acrescentando: Ele não é lindo? Viu só, que olhos, que dentes?

-- Eu não vi o gol! Você viu? Como foi? Foi de placa ou tabela? Respondeu o bebum.

-- Ah! Moço! Eu estou falando do Kakaaaaá! Você não acha que ele é um gato? Com Kaká na minha frente eu vou lá me interessar no gol do Brasil? Me poupe! Me deeeeeixeeeee!

-- Que lindo porra nenhuma! Quero lá saber de lindeza do Kaká? Vá se danar, seu gay de merda! Quero saber é do gol do Brasil!

-- Xiiiiiii! O bofe ficou braaaabo! Onde é que está o guarda? Vou dar parte de você, seu cachaceiro de uma figa! Você está ofendendo os meus “direitos humanos”! Você está atacando o meu direito de ser, preconceituando a minha opção sexual! Vou reclamar meus direitos! Agora é Lei! Viu? Todo mundo pode ser homossexual! Até os militares se quiserem podem sair dando pra todo mundo por aí! Entendeu? Principalmente os bebuns, pois “o deles” não tem dono, mesmo! Agora é Lei! O Tribunal já decidiu e pronto! Foi no STF!

Um marinheiro aposentado que estava chegando naquele momento, indagou:

-- O que? É verdade que o Kaká é viado? Puta que o pariu! Bem que eu desconfiava! Bem que eu desconfiava! Vocês ouviram isso aí na televisão, é? Foi o Galvão Bueno quem falou, né? O Galvão sabe das coisas, “meu”! Vou contar lá para o pessoal do quartel que foi o Galvão que falou, na Globo! É capaz de dar no Jornal Nacional, hoje à noite! Vou ficar antenado!

Andando pelo corredor, com uma chapa de raios-x, erguida contra a luz, um dos operadores da Radiologia, tentava decifrar que diabos de manchas eram aquelas na radiografia de uma velha que tinha o hábito de fumar cachimbo.

Essa já morreu e esqueceu de deitar! Pensava o rapaz imaginando o que havia no pulmão da mulher. Isso não é pulmão! Isso é ...

-- O quê? Gol do Brasil? Com quantos minutos de jogo? Tem parada “gay” no Soccer City? Até na África do Sul? Até lá já chegou a viadagem? O Mandela liberou geral, é? Caramba, “meu!

Uma enfermeira veterana, gorda e de cabelos grisalhos, sem perda de tempo, dedilhava o teclado do celular chamando uma amiga na Secretaria de Saúde;

-- Zuleide! É Lindalva! Você está vendo a Globo?

--Não? Morreu algum conhecido? Tsunami? Deu na “edição extraordinária?

-- Não! Muito pior, minha filha! O Galvão Bueno disse, na Globo, que lá no quartel dos marinheiros tem um cara chamado Cacá que é viado! Todo mundo conhece ele! O Cacá, teu marido, não é marinheiro lá, naquele quartel? Você nunca desconfiou de nada? Ele não é “enrustido”?

-- Que maluquice é essa? O que é que esse filho da puta do Galvão tem a ver com o meu marido? Vai ver que o viado é ele mesmo e anda espalhando que é o meu Cacá! Eu é que sei se meu marido é macho ou não! Quem dorme com ele sou eu! Né?

Por falar nisso, você bem que andou, um tempo, olhando meio de lado e arrastando asa para ele! Fala sério! Não foi? Como ele não deu bola, agora fica querendo falar mal? Toma jeito, sua perua sem vergonha! Vai procurar homem noutra freguesia! Deixa o meu em paz! Vaca de uma figa! Piranha sem pregas!

Zuleide desligou o celular na cara de Lindalva e tratou de ligar para o marido, no quartel.

-- Quartel Naval! Bom dia! Atendeu o telefonista de plantão.

-- Quero falar com o cabo Acácio no Aprovisionamento!

-- Senhora! Desculpe! Mas o cabo Acácio não poderá atender agora! Está com o sargento Militão fazendo um serviço dentro de um submarino submerso. Estão lá, desde cedo! Só devem voltar bem à tardinha! Já faz uma semana que os dois estão cuidando da manutenção da nave que deverá entrar em manobras no mês que vem!

Um fio de suspeita rondou a mente de Zuleide. O que estariam fazendo aqueles dois, sozinhos, dentro do tal submarino e, ainda por cima, embaixo d´agua? Que diabo de “manobra” era aquela? Será que não tinha mais ninguém lá? Tinha que ser, logo o Cacá? Será que a vaca da Lindalva sabe de alguma coisa e disse que era o tal de Galvão?

Hummm! Aí tem coisa! Vou ficar ligada! Depois do Rick Martin, tudo é possível nesse mundo de Deus! Vá lá saber o que se passa na cabeça ou na bunda dos outros! Será?

Um espanhol que costumava vender churros, na porta do hospital, estava passando com um pacotinho do produto para entregar a uma “nutricionista” que dava consultas no ambulatório, quase não acreditou no que ouviu.

O homem era torcedor fanático do Real Madrid, time em que Kaká é titular, na Espanha. Foi logo abrindo o verbo numa linguagem com sotaque aportuguesado.

-- Quenes fue el hijo de una perra que dijo que Kaká es un maricón? En mi equipo de futbol solo hay machos, hombres de verdad! Kaká coje todas lãs hembras que se enamoran de ello! Maricones son ustedes y los que juegan en Flamenco o Corinthians! Mas que mierda de gente nescia!

Indignado com aquela ofensa a um jogador do seu time, na pátria amada, o espanhol nem se apercebera que, com as mãos crispadas, acabara por amassar o pacotinho de churros que foram reduzidos a migalhas... Saiu resmungando, possesso de raiva para refazer a encomenda...

No saguão, esperando a chamada da senha, uma fila sem tamanho de pacientes necessitados de consulta ou curativos. Dentre eles, torcedores do Flamengo e do Corínthians. Não gostaram, nem um pouquinho ouvir dizer que a maioria dos jogadores e das torcidas desses dois times era de viados. Que lá dentro, nos vestiários, a viadagem era federal. Partiram para cima do espanhol...

Não demorou muito, ouviu-se um falatório exacerbado e, logo em seguida, apareceram o gay, um soldado e um cabo da PM. Eram os tripulantes de uma patrulhinha que veio em atenção ao chamamento do homossexual ofendido.

--Quero justiça! Berrava, com os cabelos desgrenhados, gesticulando e revirando os olhos, num frêmito de surto. Jus-ti-çaaaa! Os brincos de pingentes estavam a ponto de soltar das orelhas do reclamante.

O cabo, com a mão no coldre, protegido pelo soldado, foi logo indagando:

-- Quem foi que chamou o moço, aí, de “viado”?

-- O que? Perguntou um porteiro meio esquisito. Não vi ninguém chamar o moço de viado! Foi só o Galvão Bueno que disse que o Kaká era viado! Só Isso? É crime ser viado, “seu cabo”? Agora é Lei! Não tem mais bronca não! Tá cheio de jogador baitola, na área! Quem quiser, agora já pode ser viado numa boa! Daqui a mais um tempinho, os caras lá do Congresso vão criar uma outra lei que vai obrigar a todos os homens serem gays alguns dias no ano! Já tem um deputado mexendo com isso lá na Câmara. É da comissão de Direitos Humanos e não sei mais o quê! Viva a viadagem! Liberou geral!!!

-- Cadê esse tal de Galvão Bueno? Perguntou o cabo, irritado.

Soldado! Veja onde está esse cara e passa as algemas nele! Vamos lá para a delegacia! Ele que se explique com o delegado! Cadê? Onde está o cara?

-- O cabo, dirigindo-se ao ofendido, indagou:

-- Seu Kaká! O senhor sabe onde foi se esconder esse tal de Galvão Bueno? Ele trabalha aqui no hospital?

-- Por que é que o senhor está me chamando de Kaká?

-- Ué! Não foi o tal de Galvão Bueno que andou espalhando por aí que o senhor é viado? Não estou entendendo nada disso! Afinal, cadê o porra do Galvão? Chama esse filho da puta, aqui, agora!

O senhor está dizendo que lhe ofenderam! Mas, o único que eu estou vendo, aqui, com jeitão de boiola é o senhor mesmo! Então, pra mim, o senhor é o tal do viado do Kaká que todo mundo está dizendo que é um espanhol que vende churros lá na porta do Real Madrid, na Espanha! Porra! E agora o senhor me diz que não é o viado do Galvão?

Soldado! Algema esse baitola mete no camburão e vamos desovar ele na cela daquele negão que andou “estrupando” a mulherada lá no matagal do Varjão! Vai ver o que é bom pra tosse!

-- O queeeeeeê? Negão do Varjão? Cruuuuzzeees! Estou perdida!

-- Socooooorrrroooo! Me larrrrgggaaaaa! Eu não sou Kaká! Eu sou a Salomé”! Saaa-loooo-meeeeé!

-- Depois de acalmada aquela baita confusão, o jogo havia iniciado o segundo tempo e, com quinze minutos de bola rolando, Galvão Bueno berrava a plenos pulmões pelo alto falante da TV:

É Goooooooollllll! É Goooooool! É Goooooool!

É do Brasiiiiiiiiiiiilllll! Brasil, um! Argentina, zerooooo!

É do Brasiiiiiiiiiiiillll! É Kakaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaá!

Amelius
Enviado por Amelius em 30/11/2014
Reeditado em 30/11/2014
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