A rádio que ninguém escutava
Era uma vez, numa vila, uma rádio comunitária. Ela era comunitária no papel, mas na verdade, o dinheiro para montá-la vinha do bolso de um velho goleiro de futebol de segunda divisão. Nesta vila, portanto, a rádio era dele. E ele a controlava com mão de ferro.
Quando a rádio entrou no ar, foi aquele entusiasmo. Muita gente pegou responsabilidade pelos horários, muitos programas surgiram, muitos talentos revelaram-se.
E a tudo isso, o velho goleiro parecia aplaudir.
Só que tinha um problema: o cara tinha sérios problemas. Num dia, acordou dizendo que era comunista e que iria derrubar o sistema usando a força de sua rádio. No outro, desceu o cacete no pessoal do MST, acampado a poucos quilômetros da rádio. Numa manhã, resolveu só tocar música regionalista e no outro dia, quebrou os CDs destes cantores e meteu um rock pauleira.
Era um sujeito ciclotímico. Não clinicamente desequilibrado, uma vez que não fizera exame e por isso não haviam laudos dando conta do problema. Mas ele era visível.
Xingava políticos em pleno ar, mas quando eles telefonavam para argumentar contra, sua voz ficava doce e ele os elogiava. Às vezes, atacava jornalistas dos jornaizinhos impressos, editados por outros moradores da vila.
À medida que seu comportamento errático o fazia perder o respeito das pessoas, sua rádio ia decaindo em termos de credibilidade. Mas os políticos da cidade onde ficava essa vila, desapercebidos disso, ofereceram um cargo importante ao velho diretor da rádio. Um desastre: o homem ficou ainda mais descontrolado. Demitiram.
Ferido em seu orgulho, o já desequilibrado homem começou a identificar seus verdadeiros inimigos: os aproveitadores que usavam da rádio, montada com seu rico dinheirinho, para fazer fama e deixá-lo para trás.
Começou com um programa matutino que passava música amena e leitura das manchetes dos jornais e revistas mais importantes. Ora, se o apresentador do programa simplesmente botava músicas a rodar, e lia jornais, por quê era tão famoso? Por quê tanta gente telefonava para o programa? Por quê o apresentador era mais requisitado na rua do que ele, o grande “dono” da rádio?
E disse ao apresentador: “Ponha-se daqui para fora”, assumindo ele mesmo a atração matutina a partir de então. Passados alguns dias, os telefonemas no horário diminuíam, o prestígio e a audiência do programa caíam… e o velho guerreiro não entendia. Afinal, o programa tinha música e jornais. E ele havia mantido a fórmula inalterada! Por quê o sucesso se esvaia?
Descontente, percebeu que ainda haviam outros apresentadores ofuscando-lhe o brilho. E começou a roubar os programas deles, um a um, expulsando-os da rádio. Dali a um tempo, estava ao microfone noite e dia. Lia até horóscopo.
E descia o cacete nos órgãos públicos. Na companhia de água, na de luz, na de telefone. No prefeito. Todos estes respondiam-lhe em notas, ou o interrompiam, no ar, com telefonemas. Polêmica! Quebra-pau! Uma maravilha para quem quer audiência.
Só que… eis que com o tempo, até estes telefonemas e notas, antes frenéticos, começaram a escassear.
Na conversa informal com o dono do bar, um alto dirigente de órgão público confessava: “de início, rebatíamos o que o radialista dizia… mas com o tempo, descobri que ninguém escuta o que ele diz, e portanto, parei de me dar ao trabalho”.
E assim seguia a rádio. Cada vez mais irritadiço e bipolar, o velho diretor ia espantando seus funcionários. Foram saindo até os trabalhadores mais técnicos. Logo, o dono estava operando todo o maquinário sozinho.
Essa história aconteceu há vários anos. Dizem que o velho ex-goleiro/radialista/empresário ainda está vivo, e que mudou-se para dentro dos estúdios da sua velha emissora de rádio.
Uma faxineira cuida de sua velha casa. Mensalmente, vai ao estúdio para receber seu salário. E jura ao patrão que escuta seus programas todos os dias. Mas na verdade, não o ouve há vários anos, preferindo a emissora de música sertaneja.