Fotografia

Baseado em um sonho.

FLASH!

Não sabia como havia chegado lá, muito menos o motivo de estar ali, mas ali estava... Então era onde deveria estar.

A bruma circundava a balsa, e era de um branco tal qual o leite que tomava na fazenda em minha infância. Em meio à coleção de memórias, lembro-me de uma determinada em que minha mãe me acordou como fazia todas as manhãs – tão cedo quanto os primeiros raios solares encostavam-se às grossas folhas de milho, na metálica fálica estrutura do silo –, então me forçou a sair da cama, sendo o mais rispidamente dócil que poderia ser. Na mesa da cozinha, meus outros dois irmãos sentavam, já comendo bolachas fofas e tomando café de ontem. Em dias antigos havia pão; minha mãe os recheava de queijos, presunto e manteiga. Em dias mais antigos havia ovos; esses que só meu pai fazia, e os encharcava de leite ao fazê-lo, dando uma ilusão de maior densidade e volume à comida; em dias ainda mais antigos... Já foram. Ao me sentar na cadeira pude ver meu pai andando do lado de fora da casa, olhando o horizonte infértil das terras enquanto fumava seu cachimbo. Sua postura ereta, forte como uma anciã árvore, em uma floresta mais ancestral ainda. Podia parecer um avô, mas era meu pai. Mesmo com a pele enrugada, os cabelos brancos, os olhos que virão muitos passados, era meu pai.

Eu não sabia se a balsa estava parada. A névoa passava; isso era uma certeza, mas eu nunca me senti tão estático em meio a tanto movimento. O mundo mudava mesmo que ainda permanece o mesmo; mudava mesmo tudo ainda sendo uma branca cortina; mudava mesmo minha vida permanecendo. A embarcação não era nova: a tinta descascava; os metais enferrujados; a carga estava estragada – frutas e especiarias do oriente, eu presumo –; madeira rugosa e velha, como se já muito tivesse navegado. A Dona Lagarta sempre esteve ali, com seu corpo de humana usando um vestido amarelo de flores vermelhas, e cabeça de lagarta, fazendo jus ao nome. Seu olhar era de um estranho afeto; os olhos negros tinham um brilho desconhecido, já que nenhuma luz realmente infligia neles. Ela sentava em uma mesa perto das correntes que delimitavam a beirada da barca, perna esquerda dobrada sobre a direita, dedos tricotando rapidamente e perfeitamente; ela não encarava as agulhas e linhas em nenhum momento, sua atenção estava perdida em meio à bruma. No outro lado da balsa, perto da cabine do capitão, que nunca vi ser aberta, estava o Senhor Vermelho; um pássaro de penugem vermelha no peito, e resto do corpo mesclado entre cinza e negro. Ao seu redor corriam seus filhos, brincando; os dois eram a imagem do pai. Ele andava com o peito meio estufado, passadas firmes e calmas, geralmente olhando para o sol, mas encarando a direção que navegávamos de tempos em tempos; parecia inquieto, queria sair da balsa, talvez? Usava uma roupa típica de burguês, inclusive com monóculo e cartola, mas não passava o ar de elitista; a roupa estava gasta. Uma vez lhe questionei o motivo de ser “Vermelho”, quando é em sua maioria cinza e preto; ele me disse que somos reconhecidos por nossas peculiaridades.

As águas eram densas, densas como a névoa; como se fossem a névoa; como se a balsa deslizasse sobre a própria existência que a rodeava. Era dessa mesma forma que me sentia no verão, enquanto boiava no lago, tendo somente o céu como cenário. Sentia-me sendo empurrando em direção ao inalcançável; a densidade me empurrando de seus domínios, e ao mesmo tempo sustentando enquanto mantivesse estável. Até que em um determinado dia do verão, eu respirei de forma descompassada. Senti quando o intenso abstrato dominou minhas pernas, e então meu torso, e por fim meus olhos; senti quando me afoguei na existência, e eu poderia ter terminado ali, ficado ali, eternamente existencialmente, mas eu tinha uma balsa para pegar, não tinha? E havia alguém... Alguém que não desistiu tão facilmente de mim quanto eu mesmo.

A bruma foi partida por uma estranha forma, essa que era semelhante a uma fosca figura geométrica. Após tanto tempo, era algo tão estranho que meus olhos não acreditaram. Algo além do branco, algo além do usual; eu sorri. Mas quanto tempo faz... Dona Lagarta largou as agulhas, e deixou o suéter incompleto. Senhor Vermelho se surpreendeu e soltou um som de surpresa, então chamou seus filhos e seguiu a companheira; os pequenos pássaros demonstraram tristeza e decepção ao deixar a balsa. Eu estava no mesmo lugar desde que notei que nessa jornada estava; o mais próximo possível da saída. Agora a matéria desfocada revelou ser um velho píer. A balsa parou (ou o mundo?) com um solavanco, e pude ver uns pedaços de tinta descascada tremendo – estranhamente não me surpreendi, pois o impacto fora previsto pelo meu bom senso há algum tempo; tempo... Pisamos fora da balsa, e a existência corriqueira foi se dissipando. Ninguém estava no píer esperando a balsa; ninguém estava ansioso para voltar, talvez porque não somos supostos a isso? Voltar... Não que eu creia que seja possível; nem onde voltar deve existir, somente a balsa... A balsa, a bruma e a existência. Uma sirene soou, e quando olhei para trás só pude ver a balsa se afastando (ou nós nos afastávamos?). Adeus, tinta descascada; adeus, ferrugem; adeus, madeira enrugada; adeus, tudo que eu jamais conheci.

O branco sumiu completamente da nossa frente. Os raios de sol conseguiam nos tocar, conseguíamos sentir algo mais. O píer não era novo, mas estava em um estado melhor que o da barca. Nada havia nele, exceto por barris perto de onde estávamos, e um quadro de avisos. Nele havia um cartaz para o filme Expresso da Mudança, junto com o número de um professor de piano, e um cartaz de desaparecido, mas não havia rosto. A madeira em nossos pés era a estrada de tijolos amarelos a ser seguida, que levava até o que parecia ser uma caverna, não, uma mina. Do lado esquerdo o caminho estava bloqueado pela formação rochosa, do direito havia o caminho da praia, e em frente, a mina. Pisávamos em areia, não branca como filmes utópicos fazem parecer, mas areia de praia comum. Os filhos do Senhor Vermelho pareceram adorar a novidade, e começaram a correr por onde podiam, enquanto nós continuávamos indo até a entrada da mina. Algumas ferramentas se acumulavam em um barril, e os trilhos estavam em bom estado. Em cima da entrada, uma placa que dizia FALÍDO. Na parede rochosa à esquerda estava uma caixa de força, com fios que adentravam a escuridão da mina. Fui até lá e a ativei, “let there be light”, e a luz inundou o que parecia um túnel infinito, mesmo algumas delas não tendo acendido completamente. Perguntei o que faríamos agora, e a Dona Lagarta respondeu que nada eles fariam; somente eu. Teria que entrar na mina e procurar um objeto de valor. Perguntei o que era, e o Senhor Vermelho disse que era um simples visor. Despedi-me de ambos, que pareciam tristes ao me verem partir em meio às luzes da incerteza, mesmo sabendo que era necessário. Esse é o caminho a ser seguido, e felicidade não é exigida para fazê-lo. Entrei na caverna, sem olhar para trás.

A resposta do Senhor Vermelho me fez lembrar algo que aconteceu alguns dias antes do café de ontem e bolachas fofas. Meu pai estava feliz, muito feliz. Tão feliz que entrou em casa sem tirar as botas, o que fez mamãe ficar com raiva por causa do carvão marcado no chão, mas por pouco tempo; só até ela ver o motivo da felicidade. Uma câmera fotográfica – novidade na época. Eu e meus irmãos ficamos fissurados; era um dos objetos mais interessantes e lindos que já tínhamos visto, mas só eu fui realmente afetado por aquilo. Minha mãe e meu pai riam do tempo que eu perdia tirando fotos. A parede de nossa sala de estar inteira estava cheia de fotos, fotos e troféus da escola, fotos e porcelanas, e fotos; um papel de parede de memórias.

A escavação fora bem feita, a parede da mina estava praticamente lisa. Algumas das luzes não estavam funcionando direito; piscavam, ou nem mesmo ligavam, fazendo alguns momentos da caminhada algo incerto; acho que assim é melhor. Meus passos ecoavam; água acumulada em algumas determinadas baixas no relevo, especialmente por entre os trilhos; pequenas e desconhecidas criaturas transitavam nas áreas mais escuras, o que me causava certo frio ao adentrar as trevas de minha jornada. Algumas pedras preciosas pareciam brilhar nas paredes, mesmo o lugar estando falido, ainda aparenta ter algumas riquezas. Carvão é mais facilmente encontrado nas paredes da mina, pra mim eles são memórias.

Na noite do antigo dia que meu pai encarou o horizonte infértil, nós brigamos. Ele era um homem orgulhoso, assim como eu, e acho que a situação financeira não me dava ao luxo de querer ir embora da fazenda, ou a ele o luxo de manter a calma, mas tolo jovem que fui; tolo e rebelde comecei a gritar sobre como eu me sentia inútil ali. Estava segurando uma antiga foto que tirei deles em uma de nossas viagens. Apontava para a imagem, e berrava como eu queria ir para a cidade grande; sobre como ser fazendeiro, ou mineiro, ou qualquer coisa do tipo, não era para mim. Eu queria ir para cidade grande ser cineasta. Eu queria manufaturar sonhos. Minha mãe estava no quarto com meus irmãos, tentando distrai-los da briga. Meu pai disse que se não conseguia ficar em um rio sem me afogar, não tinha condições de viver sozinho; ele sempre joga os erros passados na minha cara. No fim, eu joguei a foto no chão; fazia oito anos.

As luzes da mina se tornaram mais escuras, falhas, inseguras; comecei a ter medo, e corri. Corri pelas poças, pelas pedras, pelos trilhos, pelos pedaços de minério; corri como nunca antes havia corrido, minto, já assim corri. Quando decidi fugir de casa, na noite que oito anos foram atirados ao chão em uma dramática cena. Pulei da janela do meu quarto, e escorreguei. Cai do telhado, bem em cima das latas de lixo. A luz do quarto dos meus pais ligou, mas eu não me importei. Estava com uma mochila que tinha uma câmera e um pouco de dinheiro, e corri em direção a minha bicicleta. Corri assim como faço agora no túnel, em direção à possibilidade. Montei, e meu pai abriu a porta; pedalei em direção ao amanhecer, enquanto meu pai gritava meu nome; pedalei em direção ao horizonte infértil, enquanto meu pai chorava meu nome, e eu posso não ter olhado para trás, mas chorei também.

As luzes, estáveis agora. Agora é seguro, eu acho, mas incerto. Existem dois caminhos, um mais largo e escuro, e outro mais fino. Recuperei o ar e decidi adentrar o mais fino e menos chamativo, por motivos que desconheço. Não demorei muito até encontrar um vagão, mas não de uma mina, mas de um trem inteiro. Era negro; janelas limpas; e, aparentemente, cheio de pessoas como eu. Fui até a porta e a abri. Dentro da estrutura metálica havia várias pessoas dormindo, todas sentadas em suas cadeiras. Dei um passo, dois, e eles continuavam a dormir, continuavam a sonhar. Lembro-me de ter visto o vagão parado, mas ao olhar pela janela, vejo um planeta de macacos, vejo guerras nas estrelas, vejo o apocalipse agora; vejo um homem cantando na chuva, vejo uma metrópole sem cor, vejo uma janela indiscreta; vejo um cisne negro, vejo um clube da luta, vejo uma odisseia no espaço. São tantos passageiros e tantas visões; uma pena não haver espaço para tantos outros se sentarem, ou ao menos mais janelas.

No fundo do vagão eu vejo uma parede de tijolos, e uma câmera pendurada; esse era o visor? Talvez. Decido levar, então estendo a mão e a agarro. O peso é tão bom, ela é tão bonita; o acabamento de esmalte negro a deixa tecnológica. Coloco o olho no visor, não, hesito, então vou até o fim, e sonho. Vejo um grupo de amigos em uma viagem de trem, os vejo se divertindo, vejo um defeito, vejo que o trem não mais pode andar, vejo que eles têm problemas, vejo que dois já foram amantes, vejo que dois querem ser amantes, vejo que um deles está doente, vejo que um deles está cansado, vejo gritos, vejo que descansam, vejo que o trem volta a andar, vejo que não são mais amigos. Como devo chamar... Expresso da Mudança? É, serve. Dirijo-me para a saída do vagão, cautelosamente cruzando para não acordar os outros. Abro a porta, e caio. Caí bem em cima da câmera, e a lente rachou. Não faço ideia de como explicarei ao Senhor Vermelho.

Mais uma vez estou em frente ao grande e escuro túnel, e não tenho coragem de voltar com a câmera para o Senhor Vermelho... Posso ao menos explorar um pouco antes de voltar, certo? Já não sinto mais calafrios ao transitar em meio às trevas. Como se elas agora me acolhessem, como se fosse parte delas, e não acho que isso seja ruim; ou então eu me iluda achando que me acolham, só para que eu não tenha que voltar. Som... Som? Sim, um som de piano, mas de onde... Perto da entrada do largo túnel eu encontrei um hamster gigante, e ele toca o piano com maestria. Perguntei a ele como aprendeu, e ele me disse que nasceu sabendo. Fiquei um tempo ao seu lado, ouvindo-o tocar; fiz um amigo, eu acho. Em um dado momento ele se virou para mim, e olhou para a câmera. Disse que era engenheiro e poderia consertar, eu deixei, e ele rapidamente o fez, então voltou a tocar. Agora nada me impede de voltar para o Senhor Vermelho... Bom, nada exceto eu mesmo. Disse ao hamster que voltaria, e fui em direção à saída, mas não sem antes olhar para trás.

Nenhuma luz piscou no caminho da volta, nenhuma incerteza ou duvida, mas ao mesmo tempo o local não era o mesmo; o mundo havia mudado. Pude ver o peito vermelho ao longe, assim como também um suéter terminado. Os pequenos pássaros agora estavam grandes, mas os pais continuavam iguais. Mostrei a câmera para eles, e disseram que era ótimo que eu havia conseguido o que queria. Havia tristeza em seus semblantes, assim como no meu. Existência começou a escorrer por nossos rostos. Eu os chamei até a ponta do píer, eles me seguiram. Coloquei os quatro no mesmo lugar onde a balsa nos ancorou, preparei a câmera; fazia vinte e oito anos.

Não sabia como havia chegado lá, muito menos o motivo de estar ali, mas ali estava... Então era onde deveria estar, mas não só isso, como era onde queria estar.

FLASH!