507-A MORTE DE ZEZINHO-

Versão de "O Gato Preto" (conto # 504), com morte do pequeno Zezinho.

Quase no fundo do cemitério, numa quadra de sepulturas simples, está enterrada dona Helena Ramos. Ao seu lado, num tumulo menor, de seu neto, Zezinho. Escondidos pela copa densa de um ipê, os túmulos modestos encerram um mistério ligado às mortes da avó e do neto.

Muito do que sei fiquei sabendo por que Rafael, o coveiro, na sua simplicidade, gostava de contar o que acontecia lá dentro. A minha flora ficava pertinho do cemitério e ele passava sempre mor lá, para prosear — e olhe que coisas muito estranhas ele me narrava, algumas vezes até de fantasmas que , dizia, rondavam entre as campas.

Helena e eu havíamos sido colegas de escola primária e nossa amizade continuou depois que tiramos o diploma. A cidade era pequena e a gente se encontrava de vez em quando. Casou, teve uma filha e perdeu o marido. Depois de viúva, passou a viver com a filha.

Quando esteve internada no hospital onde trabalhei como enfermeira, fiquei conhecendo a família: Mariana, a filha, casada com Nicanor, e os três netos, que a chamavam de vovó Lena. E Zezinho, sobrinho afastado de Mariana. Estava anêmica e desidratada e ficou no hospital por poucos dias.

Depois que Helena voltou para casa, visitei-a diversas vezes. Era uma doçura de senhora. Amava a vida, as pessoas, e, principalmente, seu gato Pretim. O nome já diz tudo: um gato preto como noite sem lua.

Estava deprimida e muito doente e só deixava a cama nas tardes mais quentes, quando passava algumas horas sentada na velha cadeira de vime, que já adquira a forma de seu corpo caquético. Então, ficava horas e horas olhando para o nada, afagando o Pretim dormia preguiçosamente aconchegado em seu colo, ronronando de prazer. Dizia, como que falando consigo mesmo: — Quando morrer, o Pretim vai comigo. Tem de ser enterrado comigo.

Nicanor, o genro, respondia com benevolência, querendo agradá-la: “Pode deixar, vovó, a gente enterra o gato com a senhora”.

Uma tarde, enquanto Vovó Lena cochilava na sala, e nós tomávamos chá na cozinha, Mariana, a filha, disse para Nicanor:

— Quero ver quem vai cumprir essa promessa. Não acho certo ficar enganando a mamãe.

Nicanor respondeu:

— Vamos fingir que vai ser assim. Você sabe, sua mãe é teimosa como uma mula e já está caducando.

Mariana reagiu com um olhar furioso para o marido e disse: — Nico, olha o respeito...

A casa era cheia de vida, pois os três filhos de Nicanor e Mariana, estavam em idade escolar, eram irrequietos e agitados. O Zequinha, o sobrinho “torto” de Mariana, não, pois era meio lerdo ou retardado. Não freqüentara a escola e ajudava a tia nas compras do dia-a-dia, na faxina da casa, e até na cozinha, lavando e guardando a louça após as refeições. Brincava com os primos, mas era calado e não entrava a na algazarra.

Eu ficava observando, quando visitava Vovó Lena, a dedicação de Zequinha, ajudando-a a se levantar e a caminhar até a cadeira de vime. Também gostava do gato. Era sensível, dedicado, e, depois do gato, era a companhia preferida da avó.

Acho que foi quem sentiu, mais que todos, a morte da avó. No velório, chorou muito, parecia inconsolado. Rafael, o coveiro, me contou que, depois do enterro, ficou por muito tempo sentado no chão ao lado da cova, soluçando baixinho. Foi preciso Nicanor puxá-lo pelo braço, levando-o com a família.

Uma semana depois do enterro, vi quando Rafael saiu agitado do cemitério, logo de manhã, e voltou um pouco depois, acompanhado de Nicanor. Os dois entraram apressados no cemitério.

Fiquei intrigada. Fechei a porta da flora e fui pro cemitério, pensando o que poderia ter acontecido.Caminhei, disfarçadamente, olhando para os lados, um pouco distante dos dois, mas não tão longe que não escutasse o que falavam. Rafael dizia para Nicanor:

— Pra mim, fizeram macumba na cova de dona Helena.

— Deixa de besteira, respondeu Nicanor. Nossa família sempre foi religiosa, nunca acreditamos nestas coisas.

Caminhavam depressa e tive que apertar o passo também. Chegamos quase juntos ao local onde dona Lena havia sido enterrada. O terreno estava ainda com terra fresca, amontoada. Ao lado, estavam tijolos e areia, para ser feita a laje.

Sobre o monte de terra recém-amontoada, onde há poucos dias fora enterrada a vovó Lena, estava o corpo degolado de um gato preto. Uma estaca de madeira, penetrando no corpo de animal, prendia-o ao solo macio.

Nicanor ficou agitado quando viu aquela coisa esquisita que parecia mesmo ser um feitiço ou macumba, sei lá... Falou alto para Rafael:

— Mais esta! É o Pretim, o gato da velha! Mas, que quer que eu faça?

Rafael estava sem jeito, parecia com medo. Disse para Nicanor:

— O senhor é quem sabe. Aí é que ele não pode ficar. Mas a tumba é de dona Helena...o gato também...O senhor é que decide.

Nicanor se enfezou e se afastou, gritando para o coveiro:

— Não acredito em macumba nem em feitiço. É tudo bobagem. Tira esse gato daí, joga em qualquer lugar. Eu é que não quero essa coisa comigo.

Rafael me contou que foi com muito medo que pegou o gato e jogou atrás do cemitério, numa plantação de eucaliptos.

Mariana costumava visitar a sepultura da mãe quase todos os dias. No dia que o gato foi encontrado, ela não apareceu. Não sei se o marido a proibiu de ir lá e encontrasse o gato sobre a sepultura da mãe. E ficou alguns dias sem ir ao cemitério. Pelo menos, não a vi entrando lá. Já tinha passado uma duas semanas, quando a vi. Ela me cumprimentou ao entrar e, na saída, fui ao seu encontro. Estava muito triste e parecia nervosa.

Cruzando e descruzando as mãos, sem parar e enxugando as lágrimas que escorriam pelo rosto, me contou:

— Lá em casa estão acontecendo umas coisas estranhas. Primeiro, foi a queda do candelabro de madeira, parafusado no teto da sala de visitas. Estava na sala fazendo a limpeza dos móveis, e por pouco não me acertou. Os objetos estão desaparecendo dos lugares onde ficam guardados para aparecer no quintal ou no jardim da frente de casa. Ouço barulhos estranhos à noite no forro e no telhado. Nicanor falou que estou sofrendo dos nervos. Mas o Zezinho também escuta. Contei isto tudo pra dona Nazaré, que vem lavar a roupa uma vez por semana, diz que isto é coisa do diacho e que tem a ver com a morte de mamãe. Mandei ela calar a boca, fiquei até com raiva dela.

Perguntei, assim como quem não quer nada:

— E o Nicanor...?

Ela me respondeu que o marido não acreditava em sobrenatural, achava que devia ser coisa do Zequinha. Me falou que desconfiava que foi o Zequinha quem tinha matado o gato e colocado ele sobre a tumba da mãe.” Isto tudo está me deixando nervosa, nem sei o que pensar.” Finalizou.

As visitas de Mariana à tumba da mãe voltaram a ser mais constantes, quase que diárias. Todas as vezes que saía do cemitério, passava pela minha lojinha de flores, para um dedinho de prosa. Me falava dos estalos, barulhos inexplicáveis de noite, pela casa toda, que estavam mexendo com seus nervos.

Um dia Mariana me contou que o Zequinha estava muito triste, sentindo demais a morte da avó e com medo das “assombrações” que “via”. E então confessou que tinha sido ele quem matara o Pretim e colocado na tumba da avó.

— Fiquei muito zangada com ele. Falei que era pecado e que tinha de confessar e comungar. Zequinha não queria, mas tanto falei com ele, que foi. Confessou e comungou durante a missa de domingo.

Alguns dias depois, Mariana entrou pela minha loja, com os olhos fundos e numa voz desanimada, foi me contando.

— As coisas estão piorando lá em casa. Na quinta feira passada: o fusca do Nicanor, estacionado na garagem, rodou, sem ninguém empurrar, e bateu contra a parede, dois metros à frente. Fez um buraco na parede e ficou bem amassado. O Zequinha, depois da confissão, ficou doente. O doutor Renato diz que é fraqueza, mais os fortificantes não fazem efeito. Está que é pele e osso. Estou com medo, dona Beatriz.

Fui visitar o garoto naquela tarde. Ele estava tão fraco que mal conseguia falar. Mas, em tom baixo, entre arfadas, como num cochicho, disse :

— O Pretim...tenho de levar... pra vovó... Lena.

Mariana olhou assustada para mim e lhe respondeu:

— Mas sumiu. Ninguém sabe onde pra onde ele foi.

Zequinha, num esforço supremo, disse:

— No fundo do cemitério... debaixo... dos... eucaliptos.

Mariana segurou as mãos do menino entre as suas. Foi quando a cabeça tombou, num movimento final da vida que abandonava Zequinha.

Não sou supersticiosa mas também não tenho preconceito contra nada. A voz de Zequinha ficou martelando dentro de minha cabeça, ao voltar para a loja de flores. Procurei Rafael, o coveiro, e perguntei-lhe o que tinha feito com o gato que fora encontrado em cima da cova de dona Helena.

Ele me respondeu, olhando-me de modo estranho:

— Joguei atrás do cemitério. Debaixo daqueles pés de eucaliptos.

Não lhe disse mais nada. Dias após o enterro de Zéquinha, fui ao local indicado pelo coveiro Rafael e encontrei, por entre as folhas, a carcaça: o pelo seco e os ossos descarnados, brancos. Com cuidado, coloquei o tudo numa pequena sacola que havia levado a propósito. Na volta, entrei nó cemitério e coloquei tudo sobre o túmulo da minha inesquecível amiga.Helena.

Que sua alma possa descansar em paz..

Muitas coroas foram dedicadas à doce Vovó Lena. Tinha muitas amigas, e apesar da doença , ou por isso mesmo, sua morte fora suave. Fiz uma especial para ela, com rosas vermelhas, pois acho que eram apropriadas para ela.

A tarde de seu enterro estava triste, como se a Natureza estivesse sentindo a sua morte. Quem poderá explicar as estranhas ligações entre as pessoas, os animais e à Natureza? Na história de dona Helena, é um mistério que permanecerá para sempre.

Já o velório de Zequinha foi simples,apenas alguns meses depois do de sua avó. só a família de Mariana e alguns poucos amigos compareceram. Fiz uma coroa adornada com lírios brancos, pois Zezinho ainda era um menino puro e inocente.

Num momento do velório, quando apenas eu e Mariana estávamos presentes, passei para ela a sacolinha, amarrada bem firme e pedi-lhe que a colocasse dentro do caixão. Ela nada me perguntou, apenas fez como eu pedi. E assim, Zequinha, mesmo morto, cumpriu a missão principal de sua curta vida.

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 09/11/2014
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