Papel de Parede

Após uma insônia brutal que durou toda a madrugada, consegui, finalmente, dormir, embalado pela leitura dos contos do Edgar Alan Poe já no início da manhã. Acordei, por volta das duas da tarde, tomei banho e já ia me vestir para mais um dia de ócio, quando tive uma forte sensação de que algo estranho estava prestes a acontecer ali mesmo. Resolvi, então, abreviar as preliminares e depois cair fora: sou sensitivo e sei dos desdobramentos desses presságios. Nessas horas, o melhor mesmo é ficar longe do raio de ação dessas energias flutuantes.

Vesti a primeira camiseta branca que encontrei e mais uma bermuda jeans; as minhas sandálias... não houve tempo: embora não houvesse mais ninguém em casa além de mim, a partir daquele momento comecei a ouvir sons que lembravam a fala humana e, pior, que pareciam sair do interior das flores estampadas do papel de parede que decorava o meu quarto.

Não querendo absorver o sentido daquele acontecimento, por não querer me comprometer, ou por não compreender a dimensão daquela suposta vibração energética, preferi imaginar que aquela espécie de sussurro fosse apenas mais um artifício mental e voluntário do meu consciente, buscando promover a minha catarse cotidiana, diante de um desejado e milagroso definhar dos meus opositores. Qual nada! Havia, sim, opositores, mas esses estavam não menos taludos, não menos ameaçadores que propriamente absolutos, mandando em mim de verdade já há muito tempo. E talvez a prova disso fosse mesmo uma grande e inexplicável explosão ocorrida em seguida, com todo o ar de dentro do meu quarto sendo sugado pra fora dele, saindo, misteriosamente, pela janela.

Inevitavelmente, o grande vácuo provocado por aquela explosão contribuiu para que eu ficasse por alguns segundos sem oxigênio, não conseguisse refletir e acabasse entrando em sintonia com toda aquela alegoria à minha volta.

Quando dei por mim, estava com uma vela de sete dias acesa em uma das mãos, enquanto ensaiava passos bizarros, algo que lembrava algum ritual cabalístico de que participei há algum tempo no quintal da minha casa sob a copa de um exemplar da Árvore do Tempo. Sem entender o que havia acontecido, ri bastante daquele meu gesto patético, mas aos poucos fui percebendo que, por mais surreal que aquilo tudo estivesse parecendo, deveria ter uma razão especial de ser.

Ainda sem saber que decisão tomar, aguardei algum próximo pronunciamento daquelas flores estampadas do papel de parede, sentando-me estrategicamente na cadeira giratória do meu quarto. Isso me possibilitaria vigiar em trezentos e sessenta graus todo aquele espaço que, a partir daquele momento, emprestaria ares de fábula ao que aqui escrevo. Inicialmente, porém, tudo se tornou improdutivo: bastou eu querer prestar atenção e as flores do papel de parede resolveram emudecer. Paciência... Paciência...

Subitamente, em algum momento mais tarde, talvez aí meia hora depois, uma violeta desbotada, quase azul, quase sem cor alguma, quase incolor, mas com peculiaridades anatômicas que não lhe negavam pertencer à família das Gesneriáceas, ensaiou um rápido movimento em uma estampa da parte superior do papel de parede que ficava atrás da cabeceira da minha cama. A visão daquela cena, apesar de furtiva, foi o bastante para, mais uma vez, me envolver por algum tempo. Quando, finalmente, despertei daquele transe, percebi que estava girando o olhar em torno daquela imagem, como a desenhar no ar uma espiral que ia aumentando, aumentando, aumentando... e, em seguida, logo se havia formado uma densa névoa entre mim e as coisas do meu quarto, tirando parcialmente o foco da minha visão.

Resolvi, então, tateando, caminhar na direção da minha cama - pelo menos eu poderia deitar e tentar dormir enquanto aquela situação não se reestabelecesse.

Para o meu espanto maior, não mais via a minha cama no meio daquela névoa toda, mas sim uma enorme banheira, com o Alfred Hitchcock lá prostrado. Fechei os olhos imediatamente, tentando fugir daquilo que só poderia ser uma alucinação, puro fruto do cansaço do tempo em que fiquei sem dormir, tentando desvendar o mistério das flores falantes do papel de parede do meu quarto, mas a minha compulsão imaginativa, obstinada e involuntariamente, me descrevia de forma clara e sem pudor a seguinte cena: o Alfred Hitchcock sentado dentro da banheira, alternando entre desfechar golpes com uma enorme faca naquele vazio lilás do seu lado esquerdo e amolá-la em seguida, totalmente ensanguentada, no beiral da banheira. Aos poucos, o sangue ia escorrendo pelo cabo da faca, caindo dentro da banheira, turvando ainda mais toda a água, deixando-a com um tom... violeta!

Tudo continuava meio desfocado para mim, mas mesmo assim, com a ajuda da minha compulsão imaginativa, obstinada e involuntária, pude perceber que do fundo daquela água turva e ao lado do Hitchcock, inacreditavelmente, o José Mojica Marins imergia, vazando em tons violetas. Apesar de completamente esfaqueado, não parecia sentir dor; sentou-se calmamente ao lado do seu colega de profissão e, ignorando a minha presença, os dois começaram a discutir em um jargão técnico os planos para um filme trash ali na banheira.

Por supor que Hitchcock não fosse muito chegado a esse tipo de filme, fiquei surpreso quando ele revelou que usaria sangue de galo de terreiro de macumba para imprimir um tom mais realista àquele projeto em questão, caso não encontrasse uma vítima doadora, enquanto o criador do personagem Zé do Caixão lembrava que catchup no cinema era como Bombril, tinha mil e uma utilidades.

Depois de todo aquele surto psicótico a que supostamente eu tinha sucumbido - não existe outra explicação para tanto delírio - já não me sobravam nervos para mais nada - insano, desferi vários socos no meu próprio rosto, indo direto a nocaute.

Quando despertei, percebi que no surto eu deveria estar em um estado de semiconsciência, pois naquele embate entre mim e "meus opositores”, lembro de ter me posto literalmente para fora de casa: inicialmente, um jeb de direita me fez resvalar do quarto para o corredor; alguns cruzados de direita e de esquerda foram me empurrando para a sala de visitas e, na sequência, alguns ganchos de direita e de esquerda, combinados com um último e certeiro jeb de direita e lá estava eu, grogue, no vão da rua.

Levantei atordoado sem saber o que fazer, pois durante o conflito eu tinha batido a porta de casa com as chaves lá dentro. Como se não bastasse, um conhecido aqui do bairro, ao me ver com aquele aspecto “alternativo”, foi logo perguntando: e aí, vamos ou não vamos arrepiar?! - hoje é sexta-feira 13!

Masé Quadros
Enviado por Masé Quadros em 05/11/2014
Reeditado em 16/11/2022
Código do texto: T5023667
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