482-ZÉ PREGUIÇA-Drama rural
Não conheci José Justino, mais conhecido por Zé Preguiça e também Zepré. O que sei foi por ouvir dizer, principalmente no velório do rapaz. Uma judiação, ver um jovem tão forte estendido no caixão. Parecia estar dormindo.
Dormindo...Acho que passou a maior parte da breve vida entre cochilos e dormidas. Segundo me contaram, foi preguiçoso desde o tempo em que passou na barriga da mãe. Nasceu dez meses depois do casamento de Vivalda com Lotário. Talvez noiva não estivesse grávida, na ocasião do casamento, tendo sido apenas um expediente usado para segurar Lotário = o que jamais conseguiria se deixasse por conta do noivo.
Para vir à luz demorou doze horas, contadas a partir das primeiras dores, do amanhecer até meia noite. O parto, embora demorado, não foi difícil. Mas a demora parece ter influenciado no desenvolvimento do menino.
Conto o que ouvi.
Cresceu sempre atrasado e atrasando-se. Não se tratava de lerdeza, pois tinha lá o seu nível de inteligência. Mas a preguiça não o abandonaria nunca.
De uma curandeira ouviu o motivo de tanta leseira. O menino tinha bichas e receitou um forte purgante. No dia seguinte, chamou a mãe para ver o monte de “cobrinhas” que tinha posto pra fora, atrás do paiol. Mas nem por isso a preguiça passou.
Na infância tinha preguiça para fazer tudo, até de lavar os pés para dormir. Embromava até a última hora e em muitas noites foi dormir com os pés sujos. Pés e tudo o mais.
Tinha uma desculpa ou pretexto para adiar tudo o que tivesse para fazer. Na escola, foi um problema. A professora tentava explicar a repetência do Zé, não pela idiotice, mas pela preguiça que tinha de estudar.
Terminado o grupo escolar, ficou em casa, com preguiça de continuar estudando. Na fazenda nada fazia, era um estorvo.
A mãe, de maneira complacente, ameaçava contar ao pai, quando ele chegasse de viagem, se o filho continuasse naquela inhana.
Como o pai era um vira-mundo, só aparecia de vez em quando na fazenda, o garoto foi crescendo sem um corretivo paterno. Só preguiça e mais preguiça.
Chegando a época de servir o exército, teve preguiça de se apresentar. No ano seguinte, foi chamado na sede da região Militar, onde, sem mais tardança, foi incorporado como “refratário”. Entre os companheiros de caserna, destacou-se pela preguiça e ganhou o apelido de Zepré = pela preguiça e pela incapacidade de estar com os demais, a tempo e a hora, como exigia o sargento.
Saiu do exército com o competente documento, no ano seguinte. Não havia como adestra-lo nem agilizar seu modo de ser, de eterno preguiçoso. Dizem que o comandante assinou de bom grado a baixa do Zepré das fileiras do exercito, afirmando que era melhor ele fora do que dentro.
De volta ao lar, à fazenda, nada o animava, nada o tirava da preguiça.
Não teve namorada. Sequer perseguiu alguma das serviçais da casa, caboclinhas brejeiras. A preguiça não permitia vontades e desejos que exigissem esforço.
Quando o pai voltou de suas viagens, doente, Zepré não teve coragem de ajudar a mãe no cuidado do enfermo nem percebeu as manobras dela para abreviar os dias do velho.
Acompanhou, com os olhos lânguidos, a substituição, na vida da mãe e na fazenda, do pai pelo capataz. Não se deu conta, por pura preguiça de raciocinar, das intenções do administrador, quando este tomou posse definitiva dos bens do falecido, inclusive da mãe.
Quando o novo chefe da casa falou com a mãe que Zepré precisava tomar um jeito na vida, que já estava homem feito e já tinha passado a hora dele sair de casa e ter sua própria vida, Vivalda não disse nem que sim, nem que não. O Filho era, de fato, um estorvo, mas ...fazer o quê? Um dia, o capataz, procurando um modo para Zé sair daquela vida sonsa e inútil, lhe propôs arranjar um lugar para morar na cidade. Ofereceu-lhe quinhentos mil réis para gastar com Joana Flordeliz, que, segundo ele, estava doida pelo Zepré.
A princípio, Zé não gostou da idéia, mas o capataz não desistiu. Sem disposição para discutir, aceitou a sugestão. Pegou uma trouxa com roupas, preparada pela mãe, e saiu, com uma preguiça sem tamanho.
Conta-se que ao chegar no córrego da Paca Cega, uma sombra acolhedora de imenso pau d´óleo foi o bastante para que a preguiça tomasse conta de Zepré. Deitou-se, fazendo da trouxa travesseiro, para um cochilo.
Chegou até ouvir o chocalhar de guizos aos seus pés. Mas, com preguiça de verificar o que era, voltou-se para o outro lado e nem sentiu a picada.
Foi a sua última preguiça na vida.
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Preguiçoso, mas as pessoas gostavam dele. A professora do grupo escolar, o sargento, alguns colegas, os empregados na fazenda, que compareceram ao velório.
O capataz apareceu, quando trouxe o corpo. Organizou o velório, marcou a hora do enterro e encomendou as flores e uma coroa que fiz com muito carinho. Mais tarde, chegou antes mesmo do enterro, pegou a viúva pelo braço e arrastou-a para fora do velório.
Foi enterrado numa tumba ao lado do pai. O preguiçoso ao lado do vira-mundo.
O rapaz não merecia estar morto. Até hoje, passados muitos anos daquele funeral, me pergunto como pode uma pessoa não encontrar um sentido para vida. Um motivo para viver.
Enfim, apesar da preguiça, deve ter chegado ao Encontro na hora que lhe fora marcada.
ANTONIO ROQUE GOBBO
BH, 28.02.2007 –
conto # 482 Da Série 1OOO Histórias –
Versão para livro "Senhora das Coroas"