EM UM FUTURO NÃO MUITO DISTANTE

É 2000dc: Ambos estão na sessão de progressão, como voluntários, na ONG de sua confiança. Contribuem com um grande amigo, pois há um concorrido prêmio internacional para futuros cientistas. Minha função é acompanhá-los e registrar tudo.

Sophy e Thiago viajam no futuro. Sophy, ex-militante da BIFI - Brigada Internacional contra o Futuro Inserto, deseja muito partilhar tão rica bagagem com a comunidade científica e, aproveitando a viagem, apresentar ao filho alguns resultados evolutivos da civilização ocidental.

Como parte do projeto experimentam um meio de transporte proibido para menores de 1,60 de estatura. É bom dizer que o transporte era físico, porque o teletransporte ainda lhes mete medo. Sentimento justificável: vai que acontece algum imprevisto durante a rematerialização, não é mesmo?!

Pelo Calendário Gregoriano, em uma enorme tela, os habitantes se orientam: "7.27.2900;quarta-feira;11AM".

Ao relato, então!

Estão em um pavimento que parece localizar-se acima do gigantesco tubo por onde as cápsulas transportadoras se movimentam. O clima é agradavelmente fresco, assim como deve ser nas cavernas. Eu volito pelas proximidades.

O ar deslocado pelo túnel de vidro sopra seus cabelos e roupas estranhos. A bem da verdade, são inteiramente estranhos e bizarros na opinião dos "jet"-humanos; pudera: quase um milênio ... ambos têm cabelos, dentes, nariz, orelhas e olhos proporcionais, e membros inferiores simétricos.

Apesar disso tudo, vê-se que poucas coisas mudaram. Dentre os habitantes que ainda sofrem no transporte público, raros são os que caminham com normalidade, ou com o charme de há nove séculos; raros! Porém, há uma vantagem: todos são portadores de pernas bonitas, muito embora, estranhamente, haja ocorrências do tipo: pernas masculinas em corpos femininos e pernas femininas em corpos masculinos. Isso, por uma questão natural e pré-histórica de gosto estético, tal e qual no passado; neste nosso passado que hora se antecipa.

Mas espere... me acompanhe.

Trava-se nesse momento um diálogo que, tanto pode ser esclarecedor, quanto filosófico para o menino:

- Mãe, a gente deve passar por entre postes que têm setas verdes?

- Sim, menino. Claro que sim. E não são postes, são totens.

- E se a gente passar por entre os totens que têm um "xis" vermelho?

- Vamos ficar como estas pessoas ...

- Credo! Não. Não quero ! O que aconteceu com elas, mãe?

- Foram desobedientes às regras tecnológicas e sociais.

- Como assim, mãe?

- Se ignorarmos o "xis" como sinal de advertência, um feixe muito fino de laser será disparado e cortará nossas pernas.

- Uau! Quanto derramamento de sangue já deve ter tido aqui...

- Fique tranquilo; não é bem assim, porque junto ao laser são disparados também dois outros raios: um, cicatrizante dos tecidos: carne, ossos... coisas assim; e o outro é cauterizador, quer dizer, não deixa que espirre sangue. E todo o processo é indolor, filho.

- E de que jeito elas continuam a viagem?

- O próprio sistema as leva àquelas esteiras aonde poderão embarcar com segurança.

- Segurança ?! Só pode estar de brincadeira, hein, mamis. E o que se faz com as pernas decepadas?

- Tem dois destinos: as melhores ou as mais bonitas ficam naquele departamento público ali. As feias ou maltratadas vão para a fábrica de ração humana.

- Olha... tem gente sem pernas ali no depósito sendo atendidas com senhas ! o que estão fazendo? procurando suas pernas como se fossem objetos perdidos?

- Explico, filhote: cada um está escolhendo um par de pernas que melhor lhe sirva ou que agrade a Grande Chefia.

- Não seria melhor e mais fácil se estivessem com as suas próprias?

- Talvez.

- Não acho "talvez". Eles deviam preservar as suas originais. Por que são assim tão descuidados?

- Isso exigiria das pessoas cautelas em todos os seus passos: fossem sentimentais, ideais ou práticos. Seria até prudente, para não se atropelarem uns aos outros em seus caminhos muitas vezes coincidentes com os de outras. Mas, enfim, não há tempo para esses coisas... buscam a sobrevida; primam pelo agora.

- Que louco, cara ! E a tal ração humana? Vira comida para animais?

- Não, não... Não existem animais. Extinção, sabe?! As pernas que são recolhidas vão fazer parte de um excelente complemento alimentar para os cidadãos. Inventaram uma maneira de fazer com que o material genético responsável pela formação dos membros inferiores, presentes nas pernas decepadas, retornem para as pessoas durante as refeições, como ração triturada.

- Por quê??

- A finalidade é aproveitar essas "mancadas" para melhorar a herança genética: pernas perfeitamente nascidas "enchem os olhos" dos turistas e são facilmente conduzidas.

- E os corações?

- Bom ... esses, por piedade, vão continuar protegidos nos peitos e indagando: "Por quê?"...

Eles não viram o que minhas lentes captaram enquanto discutiam. No depósito, um dos habitantes, irracionalmente, arremessa para o alto, precisamente 4m 2cm 8mm, um fêmur com data de validade vencida. O pedaço de perna com restos de músculos girou verticalmente três vezes, vindo a cair na testa do próprio "sem razão", que morreu naquele instante.

Rastreei inúmeras vezes minha memória, a fim de confirmar uma lembrança sobre um clássico do cinema, uma trilha sonora ou algo assim; qualquer coisa que explicasse aquele "déjà vecu", mas... ela é volátil.

E assim foi o meu único dia de trabalho, registrando o experimento "sui generis", salvando e enviando cenas e áudios, porque para esse fim fui reprogramado.

Aqui também encerra minha fria existência, mas eu, como testemunha instantânea e breve, não poderia passar sem contar a você, em "off", um pouquinho do que soube sobre ...a evolução(?)... a autonomia humana(?)... enfim, sobre a lamentável odisseia.

Desculpem... Isso tudo isso me lançou ao mar das doces recordações. Poeta: perdão poeta, mas tenho que transcrever.

"O bonde passa cheio de pernas:

pernas brancas pretas amarelas.

Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.

Porém meus olhos

não perguntam nada.'

(Carlos Drummond de Andrade em Poema de Sete Faces).

"Esta mensagem autodestruirá em 10s: 10...9...8...7...6...5...4...3..

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Marisa Silveira Bicudo
Enviado por Marisa Silveira Bicudo em 26/10/2014
Reeditado em 06/02/2015
Código do texto: T5012849
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