435-PRESO POR HOMONÍMIA
PRESO POR HOMONíMIA
Acordou com o barulho de uma janela sendo fechada. O arrastar de caixilhos metálicos por guias que há muito careciam de boa lubrificação. Ainda estremunhado, olha para o relógio digital na mesinha de cabeceira: 03:22:17.
O vizinho está chegando tarde.
Vira-se, procurando cobrir-se com o lençol e a colcha. Os números pulsantes do relógio, como semáforo piscante, ativam seus neurônios, acordando-o completamente.
Mas é o barulho da janela do meu escritório!
Miguel Arcanjo da Silva tem sessenta anos e seus reflexos são instantâneos. Levanta-se sem fazer ruído, a fim de não acordar a esposa, imersa em profundo sono. Passa a mão pela testa, afastando os cabelos brancos que tombam sobre seus olhos. Calça os chinelos e dirige-se à cozinha. Pelos vidros do vitrô, observa o quintal e o pequeno cômodo, que funciona como seu “escritório”, onde passa a maior parte do dia, lendo, escrevendo e navegando na Internet. A luz está acesa.
Puta merda, tem alguém lá. Um ladrão!
Miguel é um homem pequeno: baixo e magro, sem qualquer preparo para enfrentar um adversário. Mas jura que nunca teve medo de nada. Abre a porta da cozinha e se posta no vão iluminado, no topo da escada de doze degraus, protegido por uma mureta de meio metro. Nota um movimento dentro do cômodo.
O filho da puta tá roubando alguma coisa. Desgraçado.
Dona Conceição, a mulher, acordada pelo movimento do marido, aproxima-se.
— Que foi? — Cochicha.
— Tem um ladrão no escritório. — O marido responde, também em voz baixa.
— Meu Deus! Entra pra dentro, Guel. O bandido pode estar armado.
— Psiu! Fala baixo! Telefona pra polícia. Diz que tem um ladrão acuado aqui em casa.
A mulher tenta puxar o marido pelo braço, mas Miguel insiste em ficar na soleira da porta.
— Vai! Disca 190 e chama a polícia.
O sargento Tobias atende ao chamado.
— Polícia Militar. — A voz ao telefone é forte, clara, autoritária.
— É da polícia? — Ela cochicha. — Tem um ladrão aqui em casa.
— Qual é o endereço?
— Rua Dr. Ananias, 127. Fica no Jardim dos Ipês.
Imediatamente, o oficial aciona, pelo rádio, a viatura que está mais próxima do local indicado. E volta a conversar com a mulher.
— Quem está falando?
— É da casa de Miguel Aranjo da Silva. Sou a mulher dele. Conceição.
O diligente sargento digita o nome no teclado do computador à sua frente. Imediatamente aparece na tela uma lista de nomes começando por Miguel. Mais alguns momentos e a lista fica reduzida a três nomes, todos idênticos. Miguel Arcanjo da Silva repete-se, constituindo uma relação de homônimos. Na frente de cada nome, um número de onze dígitos – o CPF respectivo – e algumas palavras indicam a natureza dos registros.
Tobias, policial experiente, corre os olhos rapidamente pela lista e lê as ocorrências: todos os três têm passagem pela polícia, sendo que o terceiro relacionado é foragido da penitenciária estadual. Só poderá saber se o chamado vem de algum dos três, ou de outro cidadão, através do CPF.
— Senhora, qual é o CPF do seu marido? — Pergunta o policial de plantão.
Mas a mulher já havia desligado o telefone.
Imediatamente o sargento comunica-se pelo rádio:
— Atenção, viatura 157.
Um chiado, estalidos de estática e a voz chega pelo pequeno alto falante.
— Viatura 157 a caminho do Jardim dos Ipês. Atendendo chamado.
— O nome do residente é Miguel Arcanjo da Silva. Provavelmente fugitivo da penitenciária. Elemento perigoso, condenado por assassinato. Ajam com cuidado e procedam de acordo com a regra 111.
— Copiado e desligando, sargento.
O ladrão, ouvindo o barulho quando a porta da cozinha foi aberta por Miguel, apaga a luz do escritório e olha pela fresta da janela. Vê o vulto do homem desenhado contra a luz que lhe chega pelas costas.
Puta que pariu! Melou! Vou ter que passar pelo baixinho para fugir.
Sem titubear, salta pela janela, com agilidade e se dirige à sombra no alto da porta. Nota que o homem mantém as mãos sobre a mureta.
O palhaço num tá armado. Vai ser fácil. É só pular o muro.
Miguel está petrificado, não por medo, mas por raiva, ao ver o ladrão aproximar-se. É um mulato alto, forte, que avança com firmeza. Aproxima-se e olhando para cima, olhos nos olhos, faz um sinal silencioso. Indicador sobre os lábios, como dizendo: Fica quieto que nada acontecerá. Em seguida, corre para um corredor lateral e, ágil como um gato, sobe no muro divisório entre as casas, salta para o telhado e desce pela frente da casa, ganhando a rua.
Os agentes da polícia na viatura 157 se aproximam do endereço. Ambos sabem que devem agir com cautela. A regra 111 determina que o suspeito seja detido sem mais delongas e encaminhado imediatamente à delegacia. Se não estivessem tão preocupados com a possibilidade de prender um provável criminoso foragido da prisão, teriam visto o vulto de homem correndo e se escondendo por entre as árvores da rua.
O veículo estacionou defronte ao número 127 da rua Dr. Ananias. As luzes do alpendre estão acesas e uma mulher abre o portão eletrônico. Os dois agentes, empunhando revólveres, passando pela mulher, adentram-se pela casa, em movimentos estudados, apontando a arma em diversas direções ao mesmo tempo.
— O Miguel! — Grita um deles — Onde está o Miguel?
Atarantada, ela fica muda. Do fundo da casa chega Miguel, de pijama, arrastando os chinelos, cabelos desgrenhados.
— Calma, podem baixar as armas. O ladrão já fugiu. — Disse aos policiais.
— Não tem calma nem meia calma. Levanta os braços. Está preso.
— Mas...o ladrão não sou eu, não. Sou o dono da casa.
— Miguel Arcanjo da Silva? — pergunta o guarda mais próximo.
— Sim, sou eu mesmo.
— Está preso. Vamos levá-lo à delegacia.
A mulher começa a chorar, mesmo sem entender o que está acontecendo.
— Vocês estão enganados.
— Vai se explicar pro delegado. Fugiu da penitenciária e ainda teve o desplante de chamar a polícia! Essa não!
O outro policial pega o rádio portátil e se comunica com a Central:
— Aqui, Cabo Miraldo, Viatura 157. Prendemos o foragido Miguel Arcanjo da Silva. Estamos indo para a Delegacia. Missão em andamento.
Vendo que o marido vai mesmo preso, grita com os policiais:
— Pelo amor de Deus! Me deixa ir junto com Miguel.
— Negativo, dona. Ele vai sozinho. Amanhã, a senhora pode ir à delegacia.
Dona Conceição senta-se na calçada e desfaz-se num pranto desesperado.
Belo Horizonte,25 de maio de 2007- Conto # 435 da Série Milistórias