Depois daquele dia exaustivo, pousou-se sobre o leito macio de sua cama e assim deitou como uma pluma entregue ao ar.
Suspirou vagarosamente, e haurido expulsou todo o cansaço que permanecia em seu corpo. Então como ritual, logo fechou os olhos aguardando aquele que lhe buscaria para sonhar.
Lá fora dentre árvores e jardins, uma sinfonia regia aquela noite serena, era a chuvinha mansa de outubro que servira de convite ao bom sono para toda a vizinhança.
Mas Heitor não conseguira dormir. Perdurou em sua cama por algumas horas, essas que moviam-se lentamente. O jovem rapaz não sentira sono, seu corpo clamava por ele como um condenado a dormir, mas não conseguira.
Ficou em silêncio, apenas observando o teto de seu quarto, permaneceu acordado até o último instante, até o sol anunciar sua aparição diária.
Os raios solares guerreavam com as tropas de nimbos, que enfurecidas tomaram conta daquele pedaço de céu, deixando-o escuro como a noite.
Heitor apanhou o despertador para conferir as horas, mas logo percebeu de que o aparelho não estava funcionando.
Pulou da cama para buscar seu celular, que em algum lugar da casa ele havia deixado. – Que escuridão! Reclamou ainda sonolento. Tentou acender as luzes da sala, mas o interruptor parecia não funcionar, como nem um aparelho eletrônico da casa, nem mesmo o velho relógio a pilha da sala, ele também havia parado.
- Meu Deus eu preciso trabalhar!
Então Heitor abriu a porta da casa para recorrer à vizinhança.
Estático, o jovem desnorteado não acreditava naquilo que estava diante de seus olhos. Não havia vizinhança, não havia pessoas, não havia nada.
A porta da sala dava entrada a um imenso abismo, em meio as névoas de solidão, surgiu uma silhueta masculina, a imagem ia transparecendo aos poucos que a névoa desaparecia. Um homem elevou-se com suas asas imensas e brancas da cor de marfim.
- Eu sou Morpheus, deus dos sonhos, filho de Hypnos.
Heitor observava o homem, cujas feições angelicais, transmitiam tranquilidade e sonolência.
- Eu vim para leva-lo aos seus sonhos mais profundos, dispersos pelo seu inconsciente eterno. Apesar de sua carne, efêmera, um dia morrerá, mas seus sonhos e pensamentos, esses sim se eternizarão, junto a alma que vos faz sonhar.
O deus, soberano senhor dos sonhos, envolto a uma luz radiante que mais parecia os primeiros raios do sol em um gesto afável, estendeu sua mão cálida ao insone mortal.
- Venha, vou conduzi-lo aos seus sonhos.
Um pouco deslumbrado, o rapaz não podia acreditar que ali diante, um deus mitológico conversava com ele, a fim de leva-lo a um passeio pelo mundo dos sonhos.
Heitor em um relapso fora de si fechou os olhos, sentiu a paz serena, o repousar que tanto desejava. Estava ao lado de Morpheus sobrevoando algo muito familiar, era sua casa vista do alto.
- Sou eu ali! Exclamou Heitor, apontando para seu corpo dormitando em seu leito aconchegante.
- Sim, és tu. Creio que após esse passeio onírico ao meu lado, tu não terás problemas para me encontrar. Estarei próximo a ti, mortal. E assim tu poderá novamente sonhar.
Heitor contemplava cada detalhe daquele passeio, questionava silenciosamente a razão de sonhar, a fantasia daquela realidade transitória, que se desfazia logo ao despertar.
- Essa é sua natureza, andar pelo mundo dos seus sonhos e delirar em sua realidade frações daquilo que presenciou na eternidade.
Heitor não se conformava com aquela afirmação de Morpheus, quisera levar seus sonhos para seu cotidiano, era tão belo e tranquilo, não era justo pertencer em seu inconsciente, agora atordoado, Heitor franziu a testa, inconsolado.
- Consegue ver aquele cavalo? Apontou o deus para o Pégaso alado, que dentre os arbustos e lírios, servira de apoio as borboletas e rolinhas. – Um ser tão dócil como Pégaso, não sobreviveria no seu mundo, ele seria abatido pela ganância e crueldade humana. Seus semelhantes possuem um lado negro, movido pela ambição e não pelo amor.
O jovem abaixou a cabeça e sentiu profundamente as palavras do deus, concordando com o que ouvira. ‘’ Mas existem pessoas boas no mundo, eu sei que existem’’, pensou ainda cabisbaixo.
- Sim, existem. Elas fazem a diferença, por isso o Criador regente de toda a natureza vos presenteia com sabedoria. Respondeu o deus ao pensamento de Heitor. – Tamanhas maravilhas são despercebidas aos olhos humanos. Completou o Morpheus.
Heitor nunca se sentiu tão leve como naquele passeio, eram as palavras de Morpheus que o faziam refletir, era a atmosfera daquela brandura, cujo horizonte emanava junto as cores do céu, a mansidão que Heitor tanto desejou.
- Parece um sonho de tão perfeito! Suspirou o rapaz, apreciando docemente todo os seres que avistava, as flores que encontrava. O aroma do campo, o perfume de jasmim permanecia em seus pensamentos.
- Percebe-se que o mortal, pouco sabe sobre os sonhos. Essa sua afirmação és um grande paradigma no seu mundo. Muitos de seus irmãos afirmam, outros mundos além daquele que habitas, esses homens dedicam-se sua digníssima vida para obter respostas e compartilhar com todos. Muitas descobertas foram feitas, mortal. Vocês conhecem perfeitamente o grande regente de todo o universo.
- O Criador? Indagou Heitor, ajoelhado na grama verdinha, observando as formigas trabalhando.
- Sim, uma de suas artimanhas, o tempo. Todos os seres têm uma razão de viver, fazem parte do ciclo da vida, inclusive essas formigas, seres dedicados.
- Esse que muito me falta, não tenho tempo de fazer nada além de trabalhar. Reclamou Heitor.
Morpheus abaixou ao lado de Heitor e o encarou, - E se você tivesse ‘’ tempo’’ o que faria dele, Não é você o dono de sua vida?!
Após a pergunta de Morpheus, fez-se silêncio, apenas o piar dos pássaros ecoavam longe. – Eu descansaria! Respondeu Heitor com toda a certeza do mundo. O que arrancou o sorriso de Morpheus. – Dormiria? o mortal deveria acompanhar Dionísio, tens um espirito bem humorado! Tu tens a noite para repousar, não lhe basta? E se pudesse dormir o tempo que quisesse, seria feliz?
- Sim... Quero dizer não!Eu ando muito solitário, ás vezes não tenho com quem conversar dormir ajuda a esquecer dos problemas. Confessou Heitor, agora deitado na grama.
- O mortal é responsável por suas escolhas! A vida segue conforme você a comanda, ela é sua, você faz dela o que bem entender, ninguém intercede nisso. Acredito que você, talvez não tenha percebido o quão maravilhoso é estar vivo, seguindo seu caminho, concretizando suas idealizações.
- É justamente isso, eu faço tudo errado e acabo afastando as pessoas.
- Todos nós buscamos a felicidade, como se ela fosse um lugar pra se chegar, mas vocês se enganam. A felicidade é justamente o caminho que você percorre, é a maneira como você caminha por essa estrada, com dignidade, sabedoria e amor.
Heitor ouviu com atenção as palavras proferidas por Morpheus, elas soavam como um verdadeiro despertar para sua vida inteira, as palavras confundiam-se com o som estrondoso do seu despertador, posicionado estrategicamente na cabeceira de sua cama.
O rapaz pulou da cama, ofegante, gritava – Foi um sonho?! Eu dormi! Ainda desacreditado, Heitor se lembrou das palavras de Morpheus, sentiu o doce perfume de jasmim e decidiu, - Não foi um sonho, foi realidade. Eu sou dono da minha vida, vou fazer do meu caminho minha felicidade.