Doce Abraço
Existe um lugar para onde todos vão um dia, no seu último dia. É possível sentir a morte se aproximar, e perante a morte se pensa na vida como nunca antes. Um destino inevitável que todos dividem, o dia do último planejamento.
Hoje acordei com um piano sobre meu peito. Os próximos 10 minutos se passaram com cada respiração parecendo o último suspiro, o mais doce de acordo com uma fonte desconhecida, apesar de em nenhum instante eu ter gostado da experiência. Decidi pôr os tênis e fazer uma corrida matinal, às duas e meia, o que facilitou bastante estes últimos suspiros até que meus pulmões voltassem a querer trabalhar naturalmente.
Deve ter sido a pizza que comi no jantar, é sempre assim. Recentemente venho tendo problemas desse tipo após me divertir com um dos poucos prazeres da vida. Chegando em casa abro a geladeira e lá está, uma sacola transparente com a gordura reluzente de uma pilha de presunto sendo a primeira coisa a tentar meus olhos. Devoro com os olhos para rapidamente associar o peso sobre o peito com a delícia proibida, olho para a porta da geladeira e vejo uma garrafa pela metade de coca-cola que faz o mesmo com minha sede. Dizem que a geladeira aberta é o momento de reflexão mais importante do dia, basta abrir e ficar lá observando as opções enquanto pensa sobre a vida, afinal, você é o que você come. Eu também gosto de dizer que dizem por ai sobre algo que acredito para não me sentir sozinho no mundo, apesar de ser sempre agradável quando outros concordam comigo. Esta noite em particular, nunca pensei tanto sobre a vida quanto aqui em frente a uma geladeira aberta, e de repente a vida parece menos deliciosa, muito menos.
Estou morrendo, pensei. O que vou fazer? Caso conte para alguém serei aconselhado a ir para um hospital, e lá reclamarei sobre como um homem prestes a completar 30 anos acredita que o coração fosse parar após a próxima refeição. Eu, de todas as pessoas, cujo único julgamento para ingerir algo era seu gosto, sou obrigado a beber água e me distrair entre refeições com biscoito de água e sal, caso contrário posso dormir sem acordar para o café da manhã. De qualquer forma, não é como se água pudesse ser classificada como café da manhã.
O centro da cidade é um péssimo lugar para passar uma tarde de sábado, assim como em casa onde a geladeira é o sol e eu sou um planeta girando ao seu redor, um planeta perto demais do sol prestes a derreter. Minha jornada para distrair-me de um estômago indomável me levou às ruas menos frequentadas que nunca tive razão para visitar, provavelmente pela falta de fast-foods e restaurantes. Gostaria de passar o dia inteiro perambulando não fosse pela resistência limitada dos meus pés, já desgastados pela corrida matinal, então fui forçado a entrar no primeiro estabelecimento comercial cuja placa não era uma explícita tentativa de despertar-me fome. A decoração certamente era agradável, como a entrada de uma residência oriental, apesar de não fazer a menor ideia sobre o que estava à venda.
Ouço uma voz feminina do outro lado me convidar para o que parece uma porta corrediça. Admito que tinha esperânças de ver do outro lado um barco em miniatura com 100 peças de sushi, sashimi e makimono acompanhado de um bote com molho shoyu, wasabi e fatias de gergilim, mas não. Além de uma mulher sentada em uma poltrona vermelha, a única coisa consumível no local era o vinho em sua taça e uma quantidade exorbitante de garrafas de vinho às suas costas, preenchendo completamente as estantes que cobrem completamente uma das quatro paredes. Hora essa, penso, é uma adega?
- Sente-se – ela me convida. Há um sofá em frente a sua poltrona cuja cor é inexistente comparada à poltrona, acentuando ainda mais a forte cor escura daquela metade da sala.
- Me desculpe por não ter hora marcada, algum problema?
- Espero que sim. Vai se sentar?
Que resposta perturbadora, mas sento assim mesmo. Nunca visitei uma adega antes, sem contar com a de restaurantes, mas há algo peculiar sobre a coleção que me deparo.
- Com licença, mas por quê nenhum desses vinhos tem rótulo?
Após me observar com meio sorriso e balançar o líquido de sua taça, ela olha de lado para sua coleção com orgulho.
- Conheço cada um, são todos únicos. Neste mundo não existe uma réplica sequer de cada exemplar que vê aqui. Mas estes são uma excessão particular, já os comuns mas não menos saborosos eu os guardo na adega subterrânea.
- Entendo... – na verdade não entendo nada – Nesse caso imagino que nenhum destes vinhos esteja à venda, ou se estiverem aposto que seu preço seria absurdo.
- Do que está falando? Não há nada à venda aqui, tolinho.
Neste caso deve ser uma colecionadora rica aficcionada por vinhos sem nada de melhor para fazer além de beber o dia inteiro. Francamente, acho que é por isso que nunca visito esses lugares reclusos da cidade.
- É uma coleção impressionante, deve ser apaixonada para não precisar de rótulos. Não consigo me imaginar reconhecendo tantos vinhos somente pelo cheiro e sabor. Por acaso herdou de algum familiar? Você parece bem jovem para beber tanto, ah ha.
- Não, eu adquiri cada um sozinha, um por um.
- Sério? Você parece muito jovem, quanto tempo levou?
- Até quando vai ficar mudando de assunto?
Droga! Ela percebeu que não faço a menor ideia do que estou fazendo aqui, que vergonha. Entrar sem mais nem menos e sem nem saber a função deste lugar, eu realmente devo estar desesperado em me distrair.
- Me desculpe senhora, acho que estou perdido.
- Não se preocupe com isso, em breve não terá que se preocupar com nada. Vamos falar de negócios.
Uma folha é estendida à minha direita, quando percebo a presença de outra pessoa na sala pela primeira vez. Por um breve instante agradeço pelo meu coração ser fraco somente com comidas deliciosas. Chegar de fininho assim é brincadeira sem graça, principalmente alguém tão mal encarado quanto este homem, mordomo, sei lá.
Pego o papel de sua mão e vejo sobre o que se trata. A princípio me parece uma tentativa frustrada de acumular o maior número possível de informações sobre uma pessoa, acabando no final sem saber nada de útil. Há várias perguntas enfileiradas aqui com um pequeno espaço em branco no final para preencher, futilidades como cor favorita, hobby, comida predileta... picanha. Mais uma vez me assusto quando percebo que o homem que me entregou a folha não estava mais presente na sala, não que seja importante.
- Então... você é uma cartomante ou algo do gênero? – Ela olha para mim como se eu acabasse de matar sua família, e em seguida solta uma gargalhada alta e perturbadora enquanto mostra seus dentes brancos rodeados por lábios manchados de vinho.
- Cartomante, eu?! Hah! Está vendo alguma carta que diga seu futuro aqui? Isso é completamente desnecessário.
- O quê? – olho novamente para o papel e suas perguntas sem entender – Mas essas futilidades aqui não são tão diferentes do que eu esperaria de uma adivinha ou espírita, ou algo do gênero.
- A vida é fútil até certo ponto, então futilidade é um método razoável de aprender sobre alguém. Mesmo que a informação seja incorreta ou ambígua, ainda serve para caracterizar a pessoa como indecisa ou com péssimos hábitos. Caso você não preencha nada é possível dizer que despreza futilidades a ponto de tornar a vida chata como uma eterna perturbação, não acha? Mas tem razão, grande parte disso ai é pura baboseira.
- Então para quê?
- Você vai morrer, seu bobo. Por qual outra razão faria uma visita a uma agência funerária?
Agência funerária? Parece brincadeira, uma piada forçada e de muito mau gosto do destino, ou talvez coincidência, muito difícil de acreditar. Aqui estou eu fugindo de um desconforto causado pelo meu maior conforto, quando bato de frente com alguém que por acaso sabe que ando de mãos dadas com a morte, e ela é uma alcoólatra com zero respeito pela vida alheia, pior que isso, deve ser telepata e está lendo minha mente mesmo agora. Talvez eu devesse pensar em pornografias perturbadoras na esperança de expulsá-la da minha cabeça, ou pelo menos caçoar da morte nos meus últimos momentos de vida.
- Você ficou tão calado de repente. Sobre o que está pensando?
- Nada... como você sabe?
- Sei do quê?
- Sobre meu problema.
- Dívidas com a máfia? Câncer? Pensamentos suicídas? Cheguei perto?
- ... Colesterol alto.
- Droga! Não acerto uma, mas nunca é tão importante.
Vendo ela errar em prever minha futura causa de morte me fez perceber que acertei em cheio sobre a importância que ela dá para seus clientes.
- De qualquer forma – continuou ela – eu não trato de qualquer um com o pé na cova. O importante é que você está aqui e você sabe que vai morrer, como um cachorro.
- Olha, eu já entendi muito bem o respeito que você tem pelas pessoas em geral, e não me sinto mal já que sou calmo e não me desespero fácil mesmo quando o assunto é morte, mas não precisa esculachar e me chamar de cachorro.
- Não é isso. Quis dizer que chachorros tratam a morte com planejamento. Quando um cão sabe que vai morrer ele foge de casa, busca solidão e aguarda seu último suspiro. Algo semelhante ocorre com os elefantes. Já ouviu falar sobre o cemitério de elefantes?
Paro por um segundo e imagino um elefante prestes a morrer nas savanas da África. Realmente, comparado a um cachorro o elefante também planeja seu local de morte, mas no seu caso é muito pior. Durante toda a vida ele passa se alimentando quase sem parar, desgastando seus dentes antes de atingir a velhice. Seu corpo seria capaz de sobreviver por muitos anos além do normal, não fosse pelo hábito alimentar. Para sustentar seu corpo colossal é necessário comer muito, e esse hábito destroi seus dentes mais rápido que seu corpo envelhece, chegando ao ponto de ser incapaz de se alimentar. O elefante então se dirige para zonas pantanosas em busca de alimentos mais macios, mas no fim ele não será capaz de sobreviver por muito mais tempo.
Odeio me comparar a um caso destes, e tão jovem. Nem um elefante morreria tão cedo, e olha o meu estado degradante. Eu daria meus dentes para um elefante bangela se em troca pudesse comer um churrasco.
- O que acontece em seguida?
- Hora essa... – ela diz com surpresa na voz – vai desistir tão fácil?
- Há uma alternativa?
- Não, você definitivamente vai morrer.
Então por quê me perguntou em primeiro lugar?!
- O importante é que você tenha em mente o que significa aceitar meus serviços. Já deve ter reparado que este lugar não é uma agencia funerária qualquer. Na verdade, independente de sua saúde, sua visita aqui ainda significaria morte certa.
- Sinceramente, eu não sabia que minha morte era tão óbvia quanto seu alcoolismo.
- Que mal educado – retrucou lambendo os lábios. Ela dá mais um gole com as bochechas contraídas sem tirar seu olhar perturbador de mim. – Eu tenho sorte de receber sua visita.
- Me explique, por quê é tão inevitável assim?
- É como o universo funciona. Tudo tem data de validade, todos morrem um dia, isso se aplica com absolutamente tudo sem excessão. Os vivos associam a morte com a carne, mas eu atuo além da carne, e você, meu caro, acaba de expirar sua data de validade. Sua alma está morrendo.
- Minha alma tem data de validade...
De repente começo a imaginar minha alma viajando de corpo em corpo, sempre em busca de um feto na barriga de uma grávida logo após perecer no corpo de um velho, reencarnando vida após vida tornando assim possível a teoria dessa estranha.
- Me diga... contando com minhas vidas passadas, quantos anos tem minha alma?
- Bom... eu poderia dizer com mais certeza após dar um jeito em você, mas geralmente uma alma começa a degenerar após mil anos de vida. Normalmente isso significaria, caso suas vidas passadas tivessem uma expectativa de 50 anos cada, 20 encarnações.
- Quer dizer que vivi vinte vezes?
- Não necessariamente. Certas almas envelhecem como leite, outras podem durar milênios. O importante é que você chegou ao fim da linha. Acho meio sem graça quando meus clientes são tão calmos quanto você, mas facilita o processo. Tem gente que nega seu destino e me visita dezenas de vezes até aceitar o doce abraço da morte. Caso tenha assuntos pendentes é melhor resolvê-los rápido, sua qualidade de vida a partir de agora só piora com o tempo, já que sua alma vai apodrecer em um corpo jovem.
- Eu tenho somente um último pedido.
- Que rápido! O que é? Agora quero saber.
- Tudo bem caso eu saia por alguns minutos?
- Qual o problema? Faz parte do meu trabalho oferecer últimos pedidos, eu faço questão.
- Sobre isso, não precisa se preocupar. Volto daqui a pouco.
- Teimoso...
Em pouco menos de uma hora retorno para o mesmo local carregando duas sacolas cheias. Ela ainda está lá, bebendo como antes, com um sorriso ao ver o que acabo de trazer. Sento-me no chão e, como um ritual sagrado, posiciono cada um dos itens ao seu devido lugar. No centro posiciono um prato com feijoada com pedaços de costela cobrindo arroz branco ao lado de seis fatias de picanha mal passada. À direita um barco de sushi exatamente como imaginei mais cedo em homenagem à decoração oriental da agência funerária. E à esquerda uma bandeja com uma dúzia de bombons de chocolate recheados com leite condensado e trufas.
- Gostaria de se juntar à mim?
- De jeito nenhum! – Diz ela rindo da minha cara – Essa refeição está de matar, ah ha ha! E também preciso guardar espaço para o jantar.
- Uma pena, gastei a maior parte do meu salário neste barco, e nem queria comida japonesa. Mas o que vale é a intenção.
- Este é seu pedido? Uma última refeição, clássico, mas parece um criminoso na véspera da cadeira elétrica.
- A comida não é meu último pedido.
- Saco, não acerto uma. O que é então?
Meus olhos despencam sobre o prato principal e agarro os talheres com o vigor de um selvagem. O veneno que apimenta minha vida é o mesmo que a finaliza. É como uma geladeira aberta, você é o que come, você morre pelo que vive.
- Quero que ponha um fim ao meu sofrimento.
Quando meus olhos abrem eu não acredito. Achei que nunca mais acordaria, não depois de comer a última picanha, e o último bombom... e o último sashimi. Devo ter exagerado na quantidade, mas sabendo que morreria de qualquer jeito... é como diz o ditado: tá no inferno, abraça o capeta. Me sinto estranho, tão leve, nem parece que comi tudo aquilo sozinho, na verdade nem parece que morri, também não sinto-me vivo. Que magia negra é essa?
- Está na hora do meu jantar.
Ouço a voz daquela mulher, ela está perto, perto demais, e sua voz recocheteia ao meu redor como uma caverna de cristal. Que lugar é este?
Meu senso de equilibrio inclina 45º graus, e antes de conseguir interpretar o que está acontecendo sinto cócegas na minha consciência e uma parte do meu corpo parece ser amputada.
- Ei! – grito com todas as forças – O que é isso? Onde estou?
- Você está caído ali, já se esqueceu?
De repente consigo distinguir a silhueta do sofá onde me sentei mais cedo, e aos seus pés uma imagem embaçada que parece um homem caído no chão. Mas como isso é possível, e onde eu estou neste momento se estou morto ali?
O mesmo ocorre novamente, sou inclinado de lado, mais que a vez anterior, e as cócegas amputam-me novamente não sei qual parte do meu corpo exatamente, mas definitivamente estou sendo devorado.
- O que está acontecendo?!
- Olá! Aqui em cima.
Olho para o alto e me espanto, como um pesadê-lo que nunca tive antes. Estou diante daquela mulher, uma versão gigantesca da agente funerária com uma enorme língua secando os lábios. Não somente isso, quando olho para baixo finalmente reparo no que me tornei, um líquido roxo com olhos na superfície, preso na taça desta alcoólatra.
- Ah! O que você fez, bruxa?!
- Continua mal educado como antes, mas eu posso apreciar suas más qualidades. Deve ser isso que lhe dá este sabor aderente.
- Você me transformou em vinho?! Minha alma em vinho?! E você está me bebendo?!
- Bom, eu disse que se esperasse mais você envelheceria como leite. Por isso faço questão que meus clientes envelheçam como um bom vinho.
- Ai meu deus! Estou sendo devorado! Alguém me salve desta alcoólatra!
- Ah, não estrague este momento, é o seu último, lembra?
Por mais assustador que seja a ideia de ser devorado... ou bebido, comparado ao sufoco que passaria após esta refeição, ter apagado sem sentir uma dor sequer foi uma morte indolor que nunca imaginei ter o prazer de não sentir. Estranho... prazer em não sentir algo, nunca pensei sobre isso. Será que é possível sentir prazer em não sentir nada? Talvez morrer seja assim, o prazer de não sentir a vida, tão bom quanto dormir.
- Só entendeu isso agora? Bom... antes tarde do que nunca.
- Então você realmente pode ler mentes?
- Somente enquanto eu o consumo. Em breve sua consciência deixará de existir, e sua alma nunca mais reencarnará.
- Tudo bem. Há certas noites que nunca mais quero acordar. Antes de desaparecer, posso fazer três perguntas?
- Meu nome é Liva Alphonsina. Você tem 15.498 anos. E sim, você vai sonhar.
- Boa noite.
- Descanse em paz, Harsha Lalit.