ANJO PINTADO

ANJO PINTADO

A cada vez que a encontro mais me inquietam os segredos que oculta, o silêncio, a indiferença, todo o impenetrável mundo que a cerca, afastando-a de mim.

Ela me surge, às vezes, exuberante; expande-se dela um deslumbramento, uma energia que me espantam. Seus olhos pintados brilham despudorados, sua boca vermelha exulta malícia...

Não que eu decifre nessas manifestações o seu mistério. Ainda que eu tente me apegar a tais evidências, mais me emaranho nas contradições do seu feitio, menos entendo o sentido dúbio de suas palavras e ainda que, quando extrovertida, sua jocosidade me atropele, nunca penetro o seu sigilo.

Ela, meu inverossímil arcanjo, com sua alegria me enternece; contudo, não aplaca a inquietação com seu destino; outra vez vêm oprimir-me seu silêncio, as sombras que obscurecem seu olhar diáfano, quando, surda aos meus apelos, se deixa arrastar aos abismos secretos que só ela conhece.

Descubro pela manhã seus olhos insones, com uma angustia que não decifro. Por mais que me insinue, esbarro na muralha indevassável do seu silêncio, uma obscura recusa ao diálogo, uma franca oposição ao meu apoio.

Sinto-a só, desamparada, e não ouso transpor suas defesas. Sei que se perde por caminhos sem retorno, sendo incapaz de estender-lhe a mão.

Meu pobre anjo desvairado na inconstância que a ameaça, vacila entre os cultos de Deus e seitas diabólicas. As mudanças cruéis que a perseguem, são como raios de um vendaval.

Desconheço o que busca nas obscuras predições das pitonisas, que interrogações aplaca no baralho das cartomantes, que respostas lhe dão a leitura dos búzios ou as falas premonitórias dos adivinhos; que caminhos lhe desvendam o conselho dos quiromantes, o interpelar aos astros, o temerário conjurar dos espíritos.

Aflige-me seu destino de luz e treva. Não sei se virá alegre ou surgirá cabisbaixa. Perco-me no mistério dela ser, num curto espaço de tempo, a bacante que me espanta e a mártir que me aniquila.

Quando a deixo, flor de desencanto ou ídolo enfeitado, não sei se no meu regresso, encontrarei a monja enclausurada com fundas olheiras, ou o anjo vadio que se arrisca na noite por estranhos caminhos, arrostando perigos sem conta.

Assusta-me sua pálida face tenebrosa, seus olhos fixos de insônia, seu ar de freira devotada ao silêncio; assisto à sua fuga para as fortalezas do seu desencanto, intimamente suplicando que ela volte desse mundo de sombras, que quebre o sortilégio dessa angústia com sua voz cantante, seu rosto de anjo pintado de escarlate, seus passos de dança num tapete de sonho.

Vou tropeçando na sua incoerência: alegro-me com seu inebriante riso transitório; finjo não ver suas cartas sem resposta, seus livros esparsos, seus poemas inacabados no álbum abandonado; lastimo seus vasos de avencas emurchecidas por falta de trato, seus cristais manchados pela poeira do tempo.

Aceito sua indiferença, sua ira inexplicável, desejando vê-la retornar á sua essência: a jovialidade, a faceirice, o diálogo. Vou sorvendo essa efêmera alegria, antes que o vento da desgraça a carregue para além de toda a esperança.

Ontem temi que a última barreira da razão tombasse ante os pérfidos horrores. Na enfiada da noite seus leves passos vagaram pela casa silenciosa; ouvi, com medo, o murmúrio de suas preces de encantamento, o ranger de dentes de sua destemperança e o crepitar das velas que iluminaram a insônia dos seus olhos enfeitiçados.

Fugi para a realidade de uma manhã ensolarada levando na lembrança o fogo morto de seus olhos e o toque gelado de suas mãos sem alma.

À noite voltei e trouxe comigo a coragem de enfrentar a evidência de seu último desajuste.

Eis que à minha chegada veio a meu encontro meu anjo pintado, de boca escarlate e olhos risonhos. Acariciou-me com os gestos suaves de suas mãos de ilusão e se foi pelo horizonte da minha perplexidade; com um andar ligeiro, afastou-se de mim pela rua deserta, deixando um ruído de seda atrás de seus passos e um rastro de perfume pelo seu caminho.

hortencia de alencar pereira lima
Enviado por hortencia de alencar pereira lima em 12/09/2014
Código do texto: T4959430
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