366-NOTAS DE UM ESCRITOR ALIENADO

Manuscrito encontrado no bolso de um morador de rua,

encontrado morto sob um viaduto.

— Rê, rê, rê. Vocês pensam que estou louco, né? Minha família também acha que estou maluco. Aliás, lá em casa, sempre me acharam meio desequilibrado, com esta minha mania de escrever, escrever, escrever sem parar. Mais louco é quem pensa que sou louco. Conforme diz a canção. Se estou sujo, barbudo e com os cabelos cheios de piolho, se não me lavo nem faço a barba, é porque quero.

Cansei de ser certinho. Aliás, cansei de tudo: dos horários, das fofocas, das pessoas, dos livros. Estou tremendamente enfarado com tudo e com todos. O mundo organizado me aborrece.

Não sei quem vai ler esta “mensagem”. Mas, pelo amor de Deus, quem souber que eu existo, quem me vir na rua, por favor, não procure me “salvar”. Já estou de saco cheio com as tentativas de parentes e amigos, que tentam me “ajudar” de todas as maneiras.

Sabem como querem me ajudar? Me pegam aqui na rua, nos desvãos das portas ou debaixo das pontes, me levam para casa (que um dia eu dizia “minha casa”), me forçam a tomar banho, barbear-me, pentear-me. Que saco! E o pior é que me sujeitam a uma rotina de horários – para comer, para dormir, para consultar médicos e psiquiatras (uns caras mais malucos do que eu, só que não assumem nada). Não agüento mais!

Foi por isso que me alienei. Eles falam que fiquei desequilibrado. Só falta me chamarem de louco. Não sou louco nem desequilibrado, mas alienado, isto sim, sou e assumo. Não quero mais saber de horários, assistência, ajuda, auxilio, piedade. Não quero mesmo. Prefiro a liberdade que conquistei quando abandonei “minha” casa, “meus” parentes, “meus” amigos. Tive que me livrar de tudo o que era “meu” para me tornar livre.

Eles falam que estou alienado — outros falam mesmo que enlouqueci. Engraçada, esta palavra alienado.

Quando alguém não se interessa por assuntos “sociais”, como política, artes, novidades, boatos e fofocas, atualidades, é logo tratado por alienado.Como se alienado fosse um pária, um irresponsável, um maluco, enfim.

Você aí que está lendo esta página (sim, porque mais cedo ou mais tarde alguém vai ler esta mensagem), vá ao dicionário, veja o significado de alienado. Eu sei porque vi. Como já li TODAS as palavras do dicionário. Você encontrará: enlevado – como primeiro significado. Depois lerá: louco; o que endoideceu. E, finalmente cedido.

Doido...louco...pra mim, louco é quem abandona sua liberdade pessoal e se submete à rotina de um escritório, de uma fábrica, de uma loja. Doido é quem passa o dia todo trancafiado, fazendo o que não gosta, em troca do miserável dinheiro, ou, às vezes (o que é pior) em troca de poder. Alienou sua liberdade.

Com o dinheiro e o poder obtidos em troca da liberdade, compram-se coisas maravilhosas: carros, casas, iates, aviões, mulheres (e homens), viagens, etc. etc. Coisas estas que demandam mais dinheiro, mais trabalho, mais aborrecimento, causando stress, enfartos, cânceres, alzaimers, aids e toda a série de desgraças que acompanham o “sucesso”.

Em outra folha, uma série de símbolos misturados às palavras,

revelando ser posterior ao escrito anterior.

Após esforço de diversos especialistas,

conseguiu-se traduzir o manuscrito:

— Rê, rê, rê... Isto sim, é o máximo! Cada símbolo, cada risco representa muitas palavras na língua de vocês. O que escrevo nenhum de vocês vai entender... mas eu entendo, e meus amigos que estão sempre ao meu lado...tão vendo eles aqui? Tem mais de dez ao meu redor...meus amigos me entendem.

— Alguém aí falou em louco? LOUCO, EU? Nunca. Mas alienado, sim! Totalmente ALIENADO.

— Rê...rê...rê...

De uma terceira folha, ainda mais incompreensível,

com garranchos mal feitos, símbolos soltos misturados com letras conhecidas,

ideogramas orientais e símbolos diversos, extraiu-se:

— Rê...rê...rê... Meus amigos estão em minha volta...vieram me levar, pra onde eu num sei... num tenho medo deles, nem de nada...tão falando que vão me levar... pro paraíso dos alienados, um lugar de liberdade total.

ANTÔNIO GOBBO –

BH, 10/OUT/2005

CONTO # 366 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 09/08/2014
Reeditado em 09/08/2014
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