363-BAILE FATÍDICO - Morto sequestra namorada

A orquestra atacava de beguines e os pares aproveitavam o ritmo lento para se enlaçarem com total languidez. Márcia acede ao aperto de Nelson em sua cintura, mas se esquiva quando ele tenta beijá-la.

— Aqui no salão, não. Todo mundo tá vendo.

— Que é que tem? Vamos ficar noivos daqui a pouco.

Ela pede para parar de dançar.

— Preciso ir ao toalete. Já faz tempo que estamos dançando.

Nelson segura no braço da namorada, dirigindo-a na direção dos toaletes. Ela entra na porta marcada com uma silhueta feminina, enquanto ele se encaminha na direção da sacada do clube. Acende um cigarro e mete a mão no bolso interno do paletó, sentindo o volume do pequeno estojo com o par de alianças.Está um pouco ansioso, já que, dentro de alguns instantes, quando chegarem os pais da namorada, ele fará o pedido de casamento. É um pedido pro-forma, já que o namoro de dois anos teria como conseqüência o noivado.

Relembra com ternura os primeiros lances do namoro, que foi diferente do que normalmente acontecia. Ele a conhecera durante um encontro de participantes da Liga dos Filhos de Maria, promovido pela paróquia da cidade de São Roque, onde ela morava. Ele residia em Monte Cristo e ficaram juntos, naquela ocasião, por apenas algumas horas, enquanto durou o conclave. Notou, no primeiro momento, quando se olharem pela primeira vez, uma profunda tristeza em seu semblante. E constatou que ela era, de verdade, uma moça triste. Tornaram-se namorados, trocaram cartas, mantiveram encontros semanais e o romance se consolidou. Com o passar dos meses, Márcia se tornou alegre, “voltou a ser o que era”, conforme disse a mãe. Mas Nelson jamais ficou sabendo a causa daquele estado de espírito que a dominava quando se conheceram. Havia um mistério ou um segredo que ele não conseguiu desvendar durante os anos de namoro.

Quem espera sempre alcança. — pensa, olhando a fumaça do cigarro dissipar-se.

Antes de terminar o cigarro, olha para o salão e na direção da mesa onde estão instalados. Não vê Márcia mas observa que seus futuros sogros já chegaram e estão assentados à mesa reservada.

Essas mulheres...como demoram com qualquer coisa. — pensa, enquanto acende outro cigarro. Vou esperá-la para voltarmos juntos à nossa mesa.

No segundo cigarro, vê a namorada dançando com outro homem. A surpresa se transforma em aborrecimento, ao ver que ambos estão em conversa animada, ela aninhada nos braços do outro. É um rapaz de uns vinte e poucos anos, cabelos pretos brilhantes de Glostora e bigode fino à Clark Gable.

Como é que pode? — Entretanto, dá um voto de confiança à quase-noiva. — Deve ser algum conhecido que topou com ela à saída do toalete, e ela não teve como se livrar..

Resolve ir para a mesa que ele mesmo reservara.

— Boa noite, Dr. Ivo, boa noite, dona Madalena.

— Boa noite, Nelson — Respondem em uníssono. — Onde está Márcia?

— Está dançando com alguém que não conheço. — Nelson não esconde o aborrecimento.

— Márcia dançando com um estranho? Parece impossível! — Dona Madalena é peremptória na afirmativa.

— Deve ser algum conhecido dela. Afinal, não moro aqui e não posso conhecer todas as suas amizades.

Ao mesmo tempo em que dialogam em termos não totalmente cordiais, a mãe se levanta.

— Me mostre onde ela está.

Nelson olha para o salão e perscruta entre os pares que giram pelo salão. Não vê mais Márcia com o homem estranho.

— Não consigo vê-los. Talvez estejam na sacada.

Nelson fica mais chateado. Dirige-se à larga sacada, que se estende por toda a frente do edifício. Percorre de um lado a outro, sem encontrar a namorada. Volta à mesa.

— Na sacada, não estão.

Agora, todos os três estão muito preocupados.

— Vamos procurá-la. — Dr.Ivo determina. — Quem a encontrar primeiro, traga-a para nossa mesa imediatamente. Vou para o saguão da entrada. Madalena, vá até o toalete feminino. Nelson, procure por todos os cantos do salão. Mas não crie encrenca com quem quer que seja, OK?

O baile segue animado, “Lalado e seus Jazz-banders” não descansam em serviço. Nelson percorre o salão, procura Márcia por todos os lugares possíveis, na sala de estar, restaurante, adentrando-se pela cozinha, no que é impedido pelo chefe.

— Estou procurando a filha do Dr. Ivo Santana. É uma moça loira, usando vestido cor-de- rosa, echarpe vermelha sobre os ombros, cabelos penteados para cima.

— Conheço dona Márcia. Mas aqui na cozinha não tá, não, doutor.

Volta ao salão, onde se adentra por entre os pares, já meio desesperado.

Volta à mesa, onde os pais de Márcia estão, de pé, conversando com outro homem.

— Este é o diretor do Clube. Dr. Jurandir Pimenta. — O doutor faz a apresentação. — Já lhe contamos que não conseguimos encontrar Márcia.

— Pela portaria ela não saiu. — Informa o diretor. — Já mandei averiguar na sala de jogos e outras salas, mas não tem ninguém por lá.

A noite de festa se transformou em noite de pesadelos. A notícia do desaparecimento da filha do doutor Ivo Scatena correu célere, e bem antes do final do baile, todos sabiam do ocorrido. Cidadão de peso e responsabilidade, o doutor Scatena foi o primeiro a pedir a presença do delegado, que chegou em seguida. Dado o conhecimento do desaparecimento, doutor Ivo e dona Madalena voltaram à casa, acompanhados por Nelson.

Em que pese todo o empenho desesperador da família e as diligências policiais, nada encontraram que fornecesse uma pista do desaparecimento da moça.

— Puxa, parece que ela evaporou-se no salão, no meio de centenas de pessoas. —

Nelson não se conformava. Permaneceu na cidade, a fim de ajudar ao máximo no que fosse possível. Inutilmente.

No lar dos pais de Márcia a desolação é total. Três dias depois do baile fatídico, Dona Madalena, inconsolada, folheia um velho álbum de fotografias.

— Veja, Nelson, esta é a festa de formatura de Márcia.

Um grupo de jovens, vestidos de toga e beca, sorriem para o fotógrafo. Nelson observa um dos rapazes.

— Mas parece que ela estava dançando com este aqui. A foto está pequena, mas acho que é ele, sim.

A mãe olha a foto e o moço indicado por Nelson.

— É o Arnaldinho. Eles foram namorados na faculdade. Aqui no álbum deve ter outras fotos dele.

Procura e acha uma fotografia em que Márcia e Arnaldo aparecem juntos, bem nítidos.

— É ele mesmo! Tenho certeza!. — Nelson aponta para a foto, lendo, sem querer, as palavras na parte inferior: “Márcia e Arnaldo – Amor Eterno”. não podendo disfarçar uma onda de súbito ciúme.

— É impossível! — Dona Madalena olha assustada para Nelson. — Arnaldinho morreu faz três anos, num desastre de carro!

ANTONIO GOBBO –

BELO HTE, 22/SETEMBRO2005

CONTO # 363 DA SÉRIE “MILISTÓRIAS”

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 08/08/2014
Reeditado em 08/08/2014
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