349-O MELHOR AMIGO DO CÃO
— Homem de Deus, vê se arranja alguma coisa pra fazer!
A mulher implicava constantemente com o marido, Eugênio, que, aposentado há alguns anos, vivia dentro de casa, sem ter o que fazer, zanzando do quintal para a sala, o quarto e a cozinha. Nem um passatempo, nada de leitura, não gostava de televisão e não ajudava a mulher nos pequenos serviços caseiros.
— Se continuar assim, vai bater as botas logo, logo.
Mas quem bateu as botas foi ela, durante o sono. Quando acordou naquela manhã de inverno, Eugênio estava viúvo. Não quis ir morar com a filha e o genro, no apartamento no centro da cidade.
— Podem ficar descansados, eu me viro. — Orgulhoso ou teimoso, queria ser independente, apesar dos oitenta anos nas costas. Aceitou apenas a manutenção da faxineira Ziralda, que vinha uma vez por semana, limpar a casa, lavar e passar a roupa. Ele próprio fazia sua comida.
Numa tarde de sol, acordou do cochilo com ganidos de cachorro vindos da rua. Abriu a porta e lá estava o cachorro, junto à grade, encolhido, sangrando. Movido pela compaixão, recolheu o animal e cuidou de suas feridas. Era uma cadela vira-lata, fulva e magra, judiada e de olhos lacrimejantes. Deu-lhe nome de Tita, sem saber que estava prenhe.
Tomou-se de afeto pela cadelinha. Ficou surpreso quando, algumas semanas depois, ela pariu cinco cachorrinhos. Ele, que nunca havia criado cachorro, se viu, de repente, às voltas com uma pequena matilha. Tudo foi acontecendo muito naturalmente e o velho encontrou uma razão de viver. Passou a ensinar bons modos aos cachorrinhos, saía com eles caminhando pelo bairro, ia ao açougue e à quitanda comprar ossos e ração. Jamais cogitou de dar os bichinhos, mesmo porque, sendo vira-latas como a mãe, ninguém se interessou por eles.
Construiu no quintal uma casinha para os cachorros. Entretanto, eles viviam dormindo nas cadeiras e sofás da casa. Ziralda, a faxineira, fatigava-se com a limpeza.
— Assim não dá, seu Eugênio. Os bichos não respeitam nada.
— Se quiser pode procurar outro serviço. — O velho retrucou.
Os tempos eram difíceis para a mulher, que permaneceu prestando serviços ao velho. Mas avisou à filha:
— Dona Aurora, seu Eugênio tá ficando muito estranho.
A filha visitava o pai aleatoriamente e já havia constatada a confusão em que estava virando a casa, com os cachorros ocupando todos os espaços e todo o tempo e atenção do pai. Notou que a confusão também tomava conta da mente do pai. Insistiu na mudança para o apartamento.
— Deus que me livre! Estou muito bem aqui, com Tita e meus cachorros.
As crias da cadela já tinham um ano quando ela escapou da casa e sumiu por alguns dias. Voltou e, na sua companhia, veio um outro vira-lata, que foi acolhido pelo velho. Pouco tempo depois, recolheu um enorme dogue-alemão, muito manso, que circulava pela rua, sem coleira.
Eugênio ficou maníaco por cachorros. Foi recolhendo cães abandonados, que zanzavam pelo bairro e chegou à quantia espantosa de quinze cães no seu quintal. Pretendeu ensinar-lhes coisas. Conseguiu pouco resultado. Então, completamente obcecado pelos cães e já com laivos de caduquice, pensou em aprender a linguagem deles. Passava o dia inteiro no quintal convivendo com os animais, imitando-os, brincando e rosnando com eles.
Aurora, em suas visitas, ficava condoída com aquela situação, mas nada podia fazer ante a recusa do pai em mudar-se dali, ou, pelo menos, deixar de pegar cachorros na rua. Papai está viciado, está dominado. Se não deixar essa mania, não demora muito acaba virando cachorro. Tentava em vão afastar tais pensamentos.
O velho, agora com quase noventa anos, vive recluso com seus cachorros. Homem e animais repartem todo os espaços da casa. Alguns dormem com ele, na cama de casal. Apesar da promiscuidade com os animais, procura manter a limpeza local, tanto da casa quanto do canil. Mantém os bichos bem alimentados.
A faxineira, depois de tantos anos, já se acostumou com a cachorrada. Mas estranha o comportamento de seu Eugênio. Relata o que observa para dona Aurora.
— Ele tá ficando muito esquisito. Fala pouco, vive rosnando e — a senhora me perdoe – está cada vez mais parecido com um cachorrão.
Da última vez em que esteve com o pai, notou-lhe acentuada diferença tanto no comportamento quanto no porte. O marido, que olha as coisas objetivamente, foi curto e grosso:
— Seu Eugênio tá parecendo um lobisomem.
— Ai, Luiz, para com essas comparações. – Aurora se aborrece com o marido mas reconhece que ele tem razão.
Certa manhã, pelas nove horas, Aurora atende ao telefone. É a faxineira, apavorada:
— Dona Aurora, é bom a senhora ir ver o que tá acontecendo com seu pai. Fui lá hoje de manhã, fazer a faxina. Quando bati a campainha, a cachorrada toda veio pra frente da casa. Estavam todos muito brabos, latindo como uns danados. Ainda bem que a grade da rua é alta, eles não conseguem pular. Mas o que me fez sair correndo de lá e vim aqui no orelhão da esquina, foi quando vi seu Eugenio. Ele veio correndo, de quatro, atrás da cachorrada e latindo como se fosse um deles.
ANTONIO GOBBO =
BELO HORIZONTE, 5 DE JULHO DE 2005
CONTO # 349 da série MILISTÓRIAS