Nascente

Quando olho em direção ao nascente, me lembro daquele dia. Acordei antes do primeiro canto que anuncia a Alvorada, e é como dizem por aí; as horas mais escuras são, justamente, aquelas que precedem a Aurora. Não sei o que me acordou tão cedo, mas assim que despertei não consegui voltar a dormir, havia alguma perturbação no ar, como um preludio de tempestade, mas não havia nuvem no escuro céu da madrugada, apenas a lua crescente e as frias estrelas, tudo era silêncio e escuridão.

Saí da cama e decidi sair de casa, andar um pouco, acendi um cigarro e comecei a vagar, como é meu costume quando estou insone - Perto de casa existe um pequeno arvoredo, que há muito tempo fora um bosque e, antes disso (antes dos Bandeirantes), era uma floresta, que ia daqui até o Pernambuco, ou, quem sabe, até a Amazônia. Andei até as árvores, toquei o tronco da primeira ao meu alcance, senti-a viva, quase ouvi a sua voz, era triste e doce.

Foi então que avistei uma mulher, primeiro pensei que delirava, pois estava nua, lembrei da deusa Vênus no quadro de Botticelli que nascera das brumas, coberta apenas por seu cabelo, pois era assim a mulher, por isso chamei-a Vênus, embora seu nome verdadeiro há muito morreu com o último da raça que morou aqui antes da invasão européia.

Era Floresta e vinha a mim - Ela aparece de modo diferente à cada um que a vê, para uns é o Curupira, para outros a Caipora, para mim, Vênus. A mata abriu-lhe caminho e ela avançava inexoravelmente até mim, não lhe temi; chegou ao meu lado e olhou-me.

Seu olhar era terrível de suportar, via através da minha pele, viu minha alma e pensamentos, não me disse palavra, mas compreendi-a, ela seguiu seu caminho, me deixando parado ali, abismado com seu poder, que, embora minguasse dia-a-dia, ainda era suficiente para intimidar um homem.

Voltei para casa e sentei-me no degrau da escada, pensando na visão que tivera e no que poderia significar, enquanto eu pensava, minha esposa despertou e, não me encontrando ao seu lado saiu em minha procura, encontrou-me na escada, sentou-se ao meu lado e perguntou:

- Insônia?

-Não, acordei cedo desta vez...

-Está tudo bem? Você está com uma cara...

-saí para caminhar um pouco, fui até o arvoredo ali; apontei para o "bosque", e ...

- E?

Faltavam-me palavras para contar-lhe minha visão e o poder dela ainda estava presente em mim, era como se revelar o que ou quem eu tinha visto fosse uma tarefa muito penosa, mas minha esposa insistiu.

-E?

- Você não vai acreditar no que eu vi.

-O que você viu, algum animal raro? - Minha esposa é bióloga e adora animais, se eu dissesse que tinha visto um Cervo, por exemplo, ela vestir-se-ia rápida como um raio e insistiria que eu a levasse para o lugar, mas a aparição que eu avistara era mais bela e mais terrível que qualquer Cervo possa ser.

-Eu estava acordado, bem acordado, não imaginei e tampouco devaneei, eu a vi!

-Quem?

-Vênus...

-Vênus? Disse ela sem entender. Mas para ver Vênus basta sair no quintal e olhar para o céu...

-Não, o planeta não, eu vi Vênus, a deusa... como no quadro de Botticelli...Era a floresta...

Eu gaguejava, não sabia como convencê-la de que minha visão não fora criada por minha mente, nem pelo sono, me faltavam novamente as palavras, tentava contar-lhe tão bela e terrível visão, não podia ou não sabia, a época, descrever como o olhar me penetrara a alma e como fui intimidado por seu poder, pela fixidez do seu olhar, pela terrível ternura em seu rosto, pela doce tristeza de sua voz, nunca antes me faltaram palavras para dizer coisa alguma, agora todo o lexico de um dicionário não me ajudaria a fazê-lo, abri a boca para tentar explicar, mas, desisti, suspirei e isso falou mais alto à minha esposa que multidão de palavras.

-Entendo, você a viu não foi? Eu também já vi, mas para mim era Pã.

A revelação de minha esposa, de que vira, como eu, Floresta; me acalmou, mas ainda restava me o pedido que me fez: "Anuncia, que morro, todos os dias, que os homens matam quilometros de mim dia-a-dia, em breve deixarei de existir".

Como poderia anunciar a morte da Terra? Sendo escritor, não me seria dificil narrar uma história à la O dia em que a Terra parou, mas achei melhor fazer um relato de tudo que vi naquele dia e da história de como a humanidade vem destruindo, dia-a-dia, o único planeta que pode sustentar a vida humana.

A maioria das pessoas sempre acharam que a Terra fosse indestrutivel, que nada que fizessemos a ela poderia matá-la, mas a Terra tem, sim, um ponto fraco, um calcanhar de Aquiles: a humanidade.