336-GATO PRETO -Fantasmagórico

— Quando morrer, o Pretim vai comigo. Tem de ser enterrado comigo. — Vovó Garda (Hermengarda de batismo) vivia repetindo seu último desejo à filha e aos netos.

— Pode deixar, vovó, a gente enterra o gato com a senhora. — A fim de evitar discussões, Nicanor, o genro, prometia.

Com mais de noventa anos, muito doente, a avó só deixava a cama nas tardes mais quentes, quando passava algumas horas sentada na velha cadeira de vime, conformada com o corpo caquético. Então, ficava horas e horas olhando para o nada, afagando o Pretim aconchegado em seu colo.

— Quero ver quem vai cumprir essa promessa. — A filha, Mariana, não achava justo mentir para a mãe, mas o marido se justificava:

— Vamos fingir que vai ser assim. Você sabe, sua mãe é teimosa como uma mula e já está caducando.

— Nico, olha o respeito....

Nicanor era um marido displicente. Funcionário do Banco do Comércio, pouco ficava em casa. Trabalhava o dia inteiro e, após o jantar, ia direto para a sala de visitas, onde ficava horas e horas lendo revistas novas e antigas. Só de vez em quando dava algum palpite sobre a vida doméstica, e mesmo assim, era cruel, sarcástico e ninguém o levava a sério.

Os três filhos, todos em idade escolar, também não davam muita atenção aos problemas dos adultos e muito menos à ultima vontade da velha. Mas o Zeca, sobrinho torto de Mariana, observava com atenção o que ia pela casa. Talvez por ser um tanto lerdo, retardado. Tinha 18 anos, não freqüentara a escola, e vivia para ajudar a tia, nas compras do dia-a-dia, na faxina da casa, e até na cozinha, lavando e guardando a louça, após as refeições. Era muito dedicado à Vovó Garda, ajudando-a a se levantar e a caminhar até a cadeira de vime. Também gostava do gato. Era sensível, dedicado, a companhia preferida da velha.

Por isso sentiu, mais do que todos os outros, a morte da velhinha. Chorou, inconsolado, e foi o último a abandonar o cemitério. Ficou longos minutos sentado no chão ao lado da cova, chorando baixinho. Foi preciso Nicanor puxá-lo pelo braço, levando-o com a família.

Em casa, Zeca ficou amuado durante muitos dias. Afagava Pretim em todos os momentos em que podia. O gato o acompanhava por onde ia. Um dia, perguntou a Nicanor,com quem pouco conversava :

— O senhor num vai cumprir a promessa?

— Que promessa? — Nicanor estranhou a pergunta e o fato de Zeca estar lhe inquirindo.

— O senhor falou que Pretim ia com a vovó Garda.

— Ara, Zeca, aquilo foi só pra não contrariar a velha.

Dias depois, Nicanor é acordado cm a visita do zelador do cemitério.

— Preciso que o senhor vá ao cemitério.

— No cemitério? Pra quê? que aconteceu?

— Fizeram macumba na cova da dona Hermengarda.

Nicanor sai, acompanhando o zelador. No cemitério, fica assustado com o que vê. Sobre o monte de terra recém-amontoada, onde há poucos dias fora enterrada a sogra, está o corpo degolado de um gato preto. Uma estaca de madeira, penetrando no corpo de animal, prende-o ao solo macio.

— Mais esta! — Exclama Nicanor. Examinando de perto, verifica: — É o Pretim, o gato da velha! — Mas, que querem que eu faça?

— O senhor é quem sabe. Aí é que ele não pode ficar. Mas a tumba é de dona Hermengarda...o gato também...O senhor é que decide.

— Não acredito em macumba nem em feitiço. É tudo besteira. Tirem este gato daí, joguem em qualquer lugar...no lixo.

Coisas estranhas começam a acontecer na casa vazia de Dona Garda e de Pretim. Não fosse a seqüência dos fatos inusitados, ocorrendo quase que diariamente, a família nem ligaria um fato a outro. Primeiro, foi a queda do candelabro de madeira, parafusado no teto da sala de visitas. Quase acertou dona Mariana. Alguns objetos sumiram misteriosamente a seguir e, uma semana após, o Fusca de Nicanor, estacionado na garagem, rodou, por si mesmo, cerca de cinqüenta centímetros e bateu contra a parede..

— Isto é coisa do diacho— comentou dona Nazaré, que vinha uma vez por semana lavar roupa.

— Vira essa boca pra lá. — manda a patroa.

Nicanor, que não acreditava em sobrenatural, intui que “essas coisas misteriosas” estão ligadas à morte de dona Garda, e com o gato morto sobre a tumba, que ele mandara jogar em qualquer lugar. E desconfia de Zeca, a quem atribui a morte do Pretim.

Estalos, barulhos inexplicáveis, de dia e de noite, estavam mexendo com os nervos de todos

Zeca foi ficando muito calado, ensimesmado. Dona Marina percebe a tristeza do rapaz e tem com ele uma conversa. A conversa foi séria e, entre lágrimas, ele confessou que havia matado o Pretim e levado para o cemitério.

— Que pecado, Zeca! Você tem de confessar ao Padre Lineu.

— Não! Confessar pro padre, não. Ele vai me dar uma penitência muito grande.

Acabou sendo convencido pela persuasiva tia. Confessou-se e tomou a comunhão no domingo seguinte à conversa.

À saída da missa, dona Mariana encontra-se com o padre e pede:

— O senhor poderia nos visitar e dar uma bênção na casa? — Sem falar o motivo do pedido.

Naquela tarde o Padre aparece para atender ao pedido. Leva a estola e um frasco com água benta. Percorre toda a casa, aspergindo a água em cada cômodo e, eventualmente, sobre os moradores.

Já bem de tardinha, Zeca sai sem dizer aonde ia. Volta de noite, bem animado.

— Agora sei que Vovó Garda está feliz.

— Que é que cê andou fazendo?

— Vovó Garda queria o Pretim com ela. Ele tava jogado debaixo de uns eucaliptos, no fundo do cemitério. Fui lá, peguei os ossos e o couro, e enterrei tudo na cova da vovó Garda.

ANTONIO GOBBO – BELO HORIZONTE, 11 DE MARÇO DE 2005

CONTO # 3336 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 26/07/2014
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