café ou achocolatado

*

filé de tilápia arroz branco purê de batatas vinho seco.

sábado. noite de sábado. jantar de sábado.

rum cigarros aquele livro bobo de autoajuda q jamais consegui ler.

sábado. noite de sábado. todo sábado.

amanhã é domingo: não há mercado não há comércio não há patrão.

noite de sábado. se embriagar em casa.

a única diferença é o inverno. chove muito em maceió: tudo alaga.

joguei o livro num canto. eram 23h. estava suficientemente bêbado.

já dormia quando o telefone tocou.

sábado. madrugada de sábado.

inda tonto percebi q dormi pouco mais de duas horas somente.

para meu espanto uma voz de mulher no telefone

chamava-me pela abreviação de meu segundo nome – pen.

meus pais acharam por bem nomear-me cáber topen.

há muito não ouvia pen. depois dalguns instantes de silêncio perguntei quem era.

não reconheces minha voz? – a mulher já chorosa retrucou.

definitivamente não reconheci. como conhecia-me por pen?

o vento soprava arremessando a chuva como tijolos na janela do quarto.

o q queres de mim? – perguntei veemente.

onde dormir hoje querido pen. – respondeu-me.

aterrado lembrei. caram quem me ligava. maldita.

depois de tanto tempo. depois de tudo. pedindo-me abrigo?

desejei manda-la aos diabos. não tive forças.

pega um táxi. vem. – covardemente falei.

estou morando no bairro do prado. na rua... – interrompeu-me aqui

dizendo de cor meu endereço. e q não tinha dinheiro para táxi.

vem. eu resolvo. – conclui desligando o telefone.

andei dum canto a outro de minha quitinete.

chutando e socando o ar. berrei toda sorte de palavrões.

ascendi os cigarros do sábado seguinte. enchi o copo de rum.

afundei no sofá me sentindo o mais vil dos idiotas.

a qualquer instante ela tocaria a campainha lá em baixo.

entra. pegarei algumas roupas secas. – disse sem olhá-la nos olhos.

foi tudo o q consegui dizer depois de tantos anos.

o q mais poderia dizer? tudo o q queria era manda-la ao inferno.

mas só peguei roupas secas uma toalha e um casaco.

ela estava destruída. hematomas nos olhos. cicatrizes nos braços.

estava suja como não se banhasse há dias. talvez semanas.

hálito de álcool. suas pernas cheias de marcas de cigarros.

aquela não era caram. ao menos não a q conheci.

enchi minha caneca de café. fiz-lhe achocolatado quente.

sei q detestava café. nossa primeira e grande discordância.

enquanto a esperava terminar de sair do banho.

não conseguia pensar em nada. não conseguia dizer-lhe nada.

saiu nua. olhei-a fixamente. de quem era aquele corpo?

não sei o q senti. acho q pena. mas meu ódio inda era muito maior.

sua pele estava acinzentada. não havia vida.

somente a carcaça vazia. uma ausência interminável.

confesso q regozijei-me em vê-la naquelas condições.

vestiu-se ali mesmo. como sempre fizera.

mas sem levantar o olhar em instante algum.

sua altivez tão elevada estava arrasada.

toda vez q me deito com alguém penso em ti...

não quero saber de tuas aventuras. – interrompi-a.

sempre antes de dormir – continuou. ignorando-me –

lembro de tuas mãos de teu cuidado de tua voz.

o mundo não foi generoso comigo depois de nosso fim.

larguei o emprego. abandonei o tratamento.

bebi todos os dias. acabei na rua.

tranzei com quem encontrei pelo caminho:

homens drogados mulheres travestis bêbados putas crianças.

encontrei toda espécie de gente.

em cinco anos definhei a passos largos.

por q procuraste-me? logo a mim? como sabias onde moro? –

perguntei depois dum gole grande de café.

já te disse – respondeu inda sem olhar-me nos olhos – queria onde dormir.

há dias durmo sob aquela marquise do outro lado da rua.

olho-te todas as manhãs sair ao trabalho.

saio logo depois procurar o q comer no mercado.

as vezes trocando por sexo. assim não morri de fome esses anos.

a princípio não senti compaixão. caram merecia muito mais.

mas depois de abrir o vinho. de finalmente caram olhar-me.

depois dos demônios trazer as lembranças dos infernos...

quando dei por mim: já a tinha em meu colo. olhando-a na peste de sua alma.

em poucos instantes estávamos nus embolados trovejando mais q a tempestade lá fora.

a odiava tanto quanto a desejava tanto quanto a amava tanto quanto a desprezava.

domingo. noite de domingo. comumente durmo cedo.

são 23h. fumo os cigarros do mês q vem.

o vinho acabou. o rum está no fim. caram está morta.

atravessei a faca em sua garganta. caram sabia. eu sabia. sabíamos desde o início.

para q mais ela me procuraria senão para acabar com sua vida lastimável?

sabia q a doença q ela me passou estava nos matando.

eu mesmo acabo com a vida.

último copo de rum.

último cigarro.

derramarei meu sangue sobre caram

– quem me matou antes mesmo de mim.

*

geovanne otavio ursulino
Enviado por geovanne otavio ursulino em 24/07/2014
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