313-LOUCURA E MORTE NA RODOVIA

O capinador levantou a enxada e deixou-a cair frouxamente, assustado com o silvo agudo de uma máquina. Virando-se para trás, viu a grande terraplainadeira subindo pela estrada, levantando poeira, rodando rumo à usina do Morro do Ferro.

Luizão vibrou com a visão. A enorme máquina de cor alaranjada era novidade para ele, acostumado a ver, todos os dias, os caminhões transitando pela estrada. Gostava do movimento da estrada, por onde subiam levando carvão e desciam carregados de minério, grandes caminhões e, ultimamente, até carretas.

Ainda vou ser chofer de caminhão. Custe o que custar, mas vou, sim. Embora desejasse dirigir um daqueles possantes veículos, jamais tomara qualquer iniciativa para a realização de seu grande sonho. Entretanto, naquele momento, ao ver a estranha máquina, seu desejo reacendeu. E pelo resto da tarde, enquanto acabava de carpir o eito de feijão, não teve outro pensamento senão trabalhar naquela máquina, cujo nome nem sabia.

— Ara, Luizão, deixa de besteira, sô. Cê vai procurar sarna pra se coçar. — Estranhou o dono da fazenda, quando o empregado lhe falou em procurar serviço na usina de ferro para dirigir aquela máquina poderosa.

— Tou decidido, seu Leôncio. Vou lá ver cumo é que faço pra guiá aquela geringonça. Amanhã bem cedinho tou indo.

A Usina do Morro do Ferro estava em fase de grande atividade. Instalada há mais de trinta anos no morro que lhe dava o nome, extraiu todo o ferro e aplainou o topo do morro, exaurindo a mina do minério. Estava prestes a encerrar as atividades, quando sinais de outros minérios afloraram. A Usina não só revitalizou como se transformou: passou a produzir níquel e zinco, cujos veios deram indícios de grandes reservas. O movimento da estrada intensificou-se. Ficou estreita e imprópria para tanto veículo transitando. Novas máquinas, instalações, mais operários, tudo passando pela estreita e íngreme via de acesso, que, por muitas vezes, congestionava-se com o tráfico.

— Cê deu sorte, camarada. Estamos justamente procurando gente. Para trabalhar no asfalto da estrada. — Luizão foi fichado e começou a trabalhar naquela manhã, como peão.

Sem desistir de seu sonho, o caboclo, que era analfabeto mas não era burro, entendeu que tinha, sim, de começar por baixo, pegando na pá e no carrinho de mão, suando em bicas devido ao calor do sol, das máquinas e do próprio asfalto, massa negra a ser trabalhada ainda quente.

Nas paradas para almoço e lanche, procurava os condutores das máquinas. Aprendeu os nomes e a serventia de cada uma, e fez amizade com Nelico, o que dirigia a terraplainadeira. Não demorou muito para que o amigo lhe desse as primeiras dicas sobre como dirigir a máquina, e até algumas instruções sobre a manobra.

— Parece um burro brabo! — Exclamou Luizão, quando, pela primeira vez, pegou na direção e experimentou os controles, alavancas e pedais, mãos agarradas ao volante.

Com a anuência do capataz, um engenheiro de tez vermelha, bonachão e amigo dos peões, passou a trabalhar por algumas horas, cada dia, na direção da terraplainadeira. Enfiava a máquina pelos barrancos, desmontava as beiradas de terra vermelha, enchia a imensa pá, despejava nos caminhões, tudo isso dentro de uma poeira que diminuía a visão e ardia nos olhos. Mas para Luizão, era a consagração, mesmo que por algumas horas, de vez em quando.

As obras avançavam, a usina ampliou seus trabalhos, mais máquinas chegaram. Luizão conseguiu, em menos de um ano, ascender da condição de peão à de manobrista de terraplainadeira. Era a realização de seu sonho, o sucesso de sua vida.

Um dia, a máquina emperrou.

— O braço da lâmina tá com defeito. Carece consertar. — Luizão levou a terraplainadeira até o galpão, a fim de ser consertada.

— Que aconteceu. Luizão? — O encarregado da manutenção das máquinas era Nelico, promovido que fora pela sua capacidade de entender das mutretas mecânicas de cada uma delas.

— Deu zebra. O braço da lâmina não desce. Tá Vendo? A lâmina tá encrencada, lá em cima.

— Encosta ela lá nos fundos do galpão. Vamos ver. Fica por aqui, cê pode me ajudar.

Nelico trabalhou na máquina por mais de uma hora. Desmontou a pesada barra, o “braço” que fazia a lâmina movimentar-se para a frente, para cima e para baixo. Os pistões foram lubrificados, parafusos reapertados, e a pressão do óleo nos mancais verificada. Luizão ali, ajudando Nelico. Subia e descia da cabine, fazia as manobras que o amigo indicava e, por fim, a máquina estava consertada.

— Tá boa de verdade. Parece até que tá nova. — Luizão, da cabine, gritou para Nelico.

— OK. Pode ir. Espera aí, que vou tirar os calços, pra você sair.

Saltando de um lado para o outro, Nelico arrasta os pesados blocos de madeira, que ajudavam a imobilizar a máquina. Luizão, entusiasmado, mexe nos controles. Está ansioso para sair com a máquina do galpão, voltar à rodovia, ao trabalho.

Nelico tropeça e cai. Luizão, não vendo mais o amigo, imagina o caminho livre e deixa a lâmina descer, para movimentar a máquina.

—AAAAAAAiiiiiiiiiiiiii.... — O berro foi ouvido por todo o galpão, e além, muito mais além.

Luizão fica paralisado ao ouvir o grito de terror. Em seguida, percebendo que foi Nelico quem gritara, desliga a máquina e pula da cabine. .

No chão, sob a pesada lâmina está o amigo, numa poça de sangue. O corpo, completamente secionado em dois à altura do estômago, já está sem vida quando Luizão se agacha para socorrer Nelico.

Correndo às tontas, Luizão sai do galpão, sem sequer olhar para trás. Disparou pelo pátio, entre outras máquinas, saiu desvairado pela estrada, depois, como animal ferido de morte, subiu pelo pasto afora, entrando pelo capão de mato fechado, levando de roldão galhos e macegas.

Três dias depois, foi encontrado, desmaiado, às margens do Córrego da Várzea, distante mais de uma légua do local do acidente. Quando voltou a si, babava, não dizia coisa com coisa e tinha o olhar de demente.

ANTONIO GOBBO –

BELO HORIZONTE, 15.11.2004

CONTO # 313 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 19/07/2014
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