286-O VELORIO DE DONA MARIQUINHA-

A notícia veio por telefone:

— Dona Mariquinha morreu.

— Coitada. Descansou.

Com quase noventa e cinco anos, há cinco anos padecia, entrevada na cama. Descansou ela e descansam agora as filhas que cuidaram dela nos últimos anos.

— Onde vai ser o velório?

— No Cemitério da Saudade.

— Olha, Bené, já são quase seis horas, hoje não vai dar pra ir ao velório. É longe pra burro, esse cemitério da Saudade. Mas amanhã cedo estarei lá, com certeza.

O velório foi pouco concorrido. O cemitério longe, a noite fria de junho e o adiantado da hora do falecimento, ocorrido às cinco da tarde, levaram pouca gente a passar a noite com a estimada defunta.

Estimada depois de morta, pois todos os mortos são santos. Mas em vida a mulher tinha sido uma verdadeira megera. Quando o marido era vivo, então, o coitado comera o pão que o diabo amassou. Deixou-a viúva aos sessenta anos, com numerosa família, felizmente todos já encaminhados na vida.

A noite caiu sobre o cemitério. Das capelas mortuárias, somente aquela com o corpo de Dona Mariquinha permaneceu aberta, pois os dois outros defuntos tinham sido enterrados entre quatro e cinco horas. Com o avançar da noite, algumas pessoas deixaram o velório, no qual ficaram apenas os filhos e filhas, noras e genros, e alguns netos. Talvez dez ou doze pessoas se propunham a passar a noite velando. Era um tempo em que os cemitérios permitiam o velório a noite toda, não havia o perigo de assaltantes, como hoje existem em todos os lugares.

Noite fria. O café das garrafas térmicas acabou-se, bem como os biscoitinhos de polvilho, aliás muito impróprios pois faziam um barulho danado ao serem mastigados. Uns cochilavam, outros se levantavam e iam até à cabeceira da defunta, davam uma olhada, voltavam para seus assentos, enrolavam-se nos agasalhos e caíam, também, no cochilo.

Lá pelas duas da madrugada, um homem chegou à capela do velório de Dona Mariquinha. Alto, magro, muito pálido; elegante, todo vestido de preto, inclusive com um chapéu negro. Silenciosamente, adentrou-se e dirigiu-se para o caixão. Depois de uns momentos de concentração, quando parecia estar fazendo uma prece à falecida, o distinto senhor levou as mãos aos ombros da morta e sacudiu-a violentamente. Com tanta força que algumas flores caíram ao chão.

Não fez nenhum ruído. Mas Cláudia, uma das netas ali presentes, de apenas dezesseis anos, pressentiu algo e despertou da sonolência. Viu quando o velho senhor de negro chacoalhava a avó defunta. Não sentiu medo nem surpresa. A cena desenrolava-se como em um sonho. O visitante olhou para Cláudia, aproximou-se, deu-lhe um sorriso, e enquanto beijava-lhe a face esquerda, ciciou:

— Deus a abençoe, minha netinha. — E saiu, tão silenciosamente quanto entrara.

Quando o velho saiu, ela levantou-se, agora já completamente desperta e foi catar as flores que o estabanado visitante havia espalhado pelo chão. Outras pessoas também se animaram com a movimentação da moça.

— Que foi, Cláudia?

— Cê num viu? Teve um senhor aqui, visitando a vovó.

— A essa hora?

— Pois é. Deu até uns chacoalhões na vovó. Venham ver.

E viram, todos, que o corpo da defunta estava virado no caixão, as flores amassadas, tudo desarrumado.

O terror tomou conta do pessoal, menos de Cláudia. Calisto e a mulher não agüentaram, abandonaram o velório mesmo naquela hora tardia.

— Deixa aí, Cláudia. Carece arranjar não. Amanhã, antes do enterro, a gente pede pro funcionário da funerária arrumar tudo.

— Mas quem era esse homem? — Alguém perguntou.

Cláudia, a única testemunha da visita, com muita calma, explicou:

— Não sei. Mas me beijou, me abençoou e me chamou de netinha.

ANTONIO GOBBO =

BELO HORIZONTE, 29 DE MAIO DE 2004 –

CONTO # 286 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 08/07/2014
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